Uma indústria sem controle e aberta a fraudes
Foto: Leonardo Savaris
Desde que o futebol começou a se profissionalizar, nos anos de 1930, a sua importância não parou de crescer. Mas nunca, como a partir da década passada, havia ultrapassado tanto a expectativa dos seus agentes, que não apostam mais no jogo apenas como um esporte, mas principalmente como um negócio – um ótimo negócio, aliás. A indústria da bola movimenta em todo o mundo cerca de US$ 200 bilhões ao ano, incluindo direitos de imagem, publicidade, venda de produtos, ingressos. Apenas as milhares de transações anuais de atletas têm potencial de movimentar US$ 4,5 bilhões a cada temporada, embora 40% desse montante – ou cerca de US$ 1,8 bilhão – nunca entrem nas contabilidades de clubes, empresários e federações. Por isso, não é difícil de entender por que os cartolas do futebol se apegam tanto a seus cargos, aqui ou do outro lado do oceano: a razão primordial é o dinheiro. Muito dinheiro.
As informações sobre a magnitude que o futebol atingiu em termos econômicos são da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que realizou um levantamento entre 25 países – incluindo o Brasil. O estudo é de 2011, mas espelha uma ideia precisa do volume de negócios que envolve a indústria do futebol: a Fifa registrou 5 mil transferências (compra e venda) de jogadores nesse ano, que oficialmente movimentaram US$ 2,7 bilhões. Mas a OCDE analisou uma centena de contratos e descobriu irregularidades em 20 deles, que resultaram em desvio médio de 40% nos valores lançados.
Quanto maior a transação, maior a ocultação de valores. Era apenas uma amostra, que serviu para embasar as conclusões da organização, com sede em Paris: atualmente, o futebol é uma indústria sem controle contábil, sujeita a todo tipo de fraude. E sustentado por um sistema de gestão vulnerável a todo tipo de oportunistas, mas resistente a invasões. A Polícia Federal (PF), por exemplo, está investigando desde o final de 2012 um esquema de remessas ilegais de dólares ao exterior envolvendo um conhecido empresário de jogadores do Rio Grande do Sul. O delegado Sérgio Eduardo Busato, responsável pela Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros (Delfin), diz que a dificuldade principal é obter provas materiais da fraude, já que as operações muitas vezes são feitas em espécie (dinheiro) e sem registro contábil – apenas por códigos. Há um ano e meio a PF pericia os arquivos recolhidos em quatro mandados de busca e apreensão. A Operação Bola de Ouro foi um desdobramento de duas outras operações da PF, a Hércules, de 2009, e a Heráclides, de 2011, que desarticularam uma organização criminosa que utilizava duas casas de câmbio em Porto Alegre para remeter dólares para o exterior.
O dinheiro era enviado através de um mercado paralelo de câmbio que funciona à margem do sistema financeiro regular, por meio de operações conhecidas como dólar-cabo. “Há indícios da movimentação de valores para o exterior sem que os recursos tramitassem pelos canais financeiros legalmente constituídos, conduta propícia à ocorrência de outros delitos como lavagem de ativos e sonegação tributária. Há inquéritos tramitando no Ministério Público Federal, mas ainda sem indiciamentos”, lamenta Busato. Outra tentativa de investigação de atividades irregulares na Federação Gaúcha de Futebol (FGF) esbarrou no Ministério Público do Estado (MP).
Movida pelo taxista Paulo Pulz, a ação requeria a instauração de um inquérito civil para investigar as atividades ilegais de um estacionamento, explorado pela FGF entre 2009 e 2011, em área cedida pela prefeitura e a consequente devolução dos recursos arrecadados irregularmente. A área vai abrigar a sede da Federação e o Memorial Luís Carlos Prestes, que estão em fase final de construção. O MP alegou que o inquérito não se justificava porque o serviço de cobrança ilegal já havia sido desativado. “Protocolei pedidos de investigação junto à Câmara de Vereadores, na Ordem dos Advogados do Brasil, no Ministério Público de Contas e não tive apoio nenhum. Vou recorrer ao Conselho Superior do Ministério Público, porque considero um absurdo que essa irregularidade não seja punida com a devolução dos recursos obtidos de forma fraudulenta”, reclama Pulz.
O agravante, segundo o taxista, é que a sede da FGF e do Memorial terão vagas de estacionamento que serão exploradas comercialmente pelas entidades, justamente em área pública cedida pelo município. O potencial de arrecadação, segundo o reclamante, chega a R$ 1 milhão por ano. Nem a FGF e nem o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que administra a sede do Memorial, responderam aos pedidos de explicação sobre os estacionamentos.
ENRIQUECIMENTO – Um dos autores do recém-lançado O Lado Sujo do Futebol (Editora Planeta), o jornalista Leandro Cipolini credita o descontrole do esporte no Brasil a um sistema de gestão administrado por agentes movidos pelo lucro. “É uma máquina bilionária que se sobrepõe inclusive à política nacional. Os cartolas transformaram o futebol exclusivamente numa máquina de fabricar dinheiro. Nenhum presidente da República foi capaz de enfrentá-los nas últimas décadas no país”, sentencia.
O livro escrito a oito mãos (além de Cipolini, é assinado também por Amaury Ribeiro Júnior, Luiz Carlos Azenha e Tony Chastinet) é um petardo contra a cartolagem que domina o esporte mais popular do Brasil. O foco são naturalmente o ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, e o ex-presidente da Fifa, João Havelange – Teixeira é ex-marido de uma das filhas do longevo dirigente do futebol mundial.
Um pequeno exemplo do mecanismo de enriquecimento ilícito praticado pelos cartolas é narrado por Cipolini: em 2008, Teixeira se associou ao espanhol Sandro Rosell na criação da Ailanto Marketing – um empreendimento destinado a organizar eventos relacionados ao futebol no Brasil. O alvo era um só: amistosos da Seleção Brasileira. Teixeira, é claro, não aparece na empresa, que tem como sócia minoritária a empresária Vanessa Almeida Precht – na verdade, segundo apurou a Polícia Federal, uma “laranja” que fazia triangulações por meio da VSV Agropecuária para pagar Teixeira. A empresa tinha sede em uma fazenda do cartola no interior do estado do Rio de Janeiro. A negociata entre Rosell e Teixeira custou a cabeça do ex-presidente da CBF, que permaneceu no cargo por 23 anos. “Rosell chegou ao Brasil em 1999 como representante da Nike e a primeira coisa que fez foi se associar a Teixeira para usar a Seleção Brasileira como base de negócios, já que a multinacional fornecia os uniformes do Brasil desde 1996. Assim, enquanto a Nike e Rosell ganhavam dinheiro com a Seleção, o então presidente da CBF ganhava dinheiro com a Nike.
Só quem perdia era o torcedor”, narra Cipolini. Rosell era diretor de Marketing da Nike no Brasil e também foi presidente do Barcelona Futebol Clube, justamente quando se concretizou a compra de Neymar pelo clube catalão em 2013. O negócio tinha cláusulas secretas e há suspeita da ocultação de 38 milhões de euros no negócio (cerca de R$ 114 milhões). O dirigente renunciou à presidência para fugir do cerco da Justiça. Num amistoso entre Brasil e Portugal em Brasília em 2008, Rosell recebeu R$ 1 milhão da Ailanto, enquanto para Teixeira coube uma cota de R$ 750 mil – nenhum dos valores foi declarado. O jogo custou R$ 9 milhões ao governo do Distrito Federal. Vanessa Precht era a secretária do cartola espanhol – expediente comum usado para ocultar negócios.
No Rio Grande do Sul, o presidente da Federação Gaúcha de Futebol usou a mulher de um funcionário da Multisom – empresa de sua propriedade – para administrar um negócio ilegal de estacionamentos em Porto Alegre. A informação foi tornada pública na última edição do Extra Classe. Nike e Adidas monopolizam o futebol mundial. Na Copa do Mundo do Brasil, que começa no dia 12 de junho, as duas marcas detêm os direitos sobre 26 seleções – das 32 que se classificaram para o Mundial.
Só estão fora da sanha arrecadatória das empresas times inexpressivos: as seleções de Honduras, Bélgica, Camarões, Bósnia e Equador. Além disso, dividem os contratos das principais estrelas do futebol mundial: Cristiano Ronaldo, Neymar e Ribéry para a Nike, Messi, Iniesta e Özil para a Adidas. Para funcionar, a máquina precisa ter apoio de empresários e federações. A CBF, segundo Cipolini,usa a bandeira do Brasil, o hino nacional e a paixão dos brasileiros pelo futebol para enriquecer. “O país não ganha nada”, diz.
A paixão, expressa justamente nesse apego aos símbolos nacionais no caso da Seleção Brasileira, é outro componente indispensável do futebol – e muito bem explorado pelos empresários. Clarice Setyon, professora da ESPM de São Paulo e estudiosa do marketing esportivo, credita a esse componente a principal fonte de renda, especialmente do futebol. “Como explicar que uma camiseta das fabricantes de material esportivo custe um valor com a marca da empresa e pelo menos duas vezes mais com o distintivo de um clube ou de uma seleção?”, provoca a especialista.
Esse apego “cego” dos torcedores está por trás da longevidade dos dirigentes do futebol e da desfaçatez com que os empresários burlam as leis para turbinar seus negócios. Comissões de 800 mil euros ou mais são comuns em transações de atletas para o exterior – quanto mais barato tiver custado o jogador para sair da base de algum clube do interior do país, mais polpudo é o ganho. Em muitos casos, a comissão é retalhada entre treinadores – que garantem a escalação de candidatos a craque na mira de empresários – e dirigentes. “Nosso negócio é obscuro mesmo, não tem regulamentação e abre espaço para muita gente inescrupulosa. Mas nem todos são assim”, admite um empresário de jogadores de ponta da dupla Gre-Nal, que não quis se identificar.
Foto: divulgação
Novo negócio de Ronaldinho Gaúcho fica em cima de área ambiental
O dinheiro da carreira do craque Ronaldinho Gaúcho nunca ficou parado – mas isso não é necessariamente uma boa notícia. Administrador da fortuna do irmão e líder do grupo empresarial que leva o nome da família, o ex-jogador Roberto de Assis Moreira já foi condenado em primeiro grau por sonegação e lavagem de dinheiro e em segunda instância por crimes ambientais durante a implantação do extinto Instituto Ronaldinho Gaúcho, na zona sul de Porto Alegre. De todas as acusações, saiu ileso até agora.
A mais nova empreitada da família, porém, tem tudo para acabar nos tribunais mais uma vez. A dupla está erguendo um condomínio de luxo em Laguna, no litoral de Santa Catarina – os 780 lotes, que podem render pelos menos R$ 50 milhões para os irmãos, estão localizados numa área de 47 hectares entre o Mar Grosso e o farol de Santa Marta, na localidade de Campos Verdes e a cerca de 2 quilômetros da praia da Galheta. Até aí, nada demais, se não fosse por um detalhe: o loteamento será construído em cima da Área de Proteção Ambiental Baleia Franca, abrangida por decreto federal desde setembro de 2000.
O caso é analisado pelo Ministério Público Federal (MPF), que suspendeu temporariamente a licença de instalação do loteamento em novembro de 2013 em busca de adaptações no projeto. A chefe da APA, Elizabeth Carvalho da Rocha, informa que a ocupação de parte da área de proteção, de 156 mil hectares, não é ilegal, desde que os empreendimentos sejam sustentáveis e preservem as áreas consideradas perenes. Não é o caso do loteamento Reserva do Farol de Santa Marta. “O local onde está projetado o condomínio tem pelo menos um sambaqui de grande interesse antropológico e dunas e lagoas que são vitais para o abastecimento natural dos moradores nativos, que vivem da pesca. Mas as prefeituras estimulam as ocupações irregulares, independentemente das recomendações legais. É um interesse meramente comercial, sem visão de futuro”, critica a dirigente.
O empreendimento está registrado na prefeitura de Laguna e tem aval da Fundação Lagunense do Meio Ambiente (Flama). O Movimento Natural e Cultural de Laguna acusa que o consórcio empreendedor – formado pelas empresas Projetar Imóveis, Ideal e Terra Nova Loteadora, além do grupo Assis Moreira – obteve as licenças de forma fraudulenta. “A venda de lotes nas atuais condições configura, além de crime ambiental, também estelionato, já que os compradores nunca vão obter licença para construir no local”, alerta o ambientalista Júlio César Vicente.
A prefeitura de Laguna alega oficialmente que concedeu as licenças porque “desconhecia as limitações da área”. Mas, alertada sobre a imperfeição, não tomou nenhuma providência. O prefeito Everaldo dos Santos (PMDB) sonha ainda mais alto. Sem saber que estava sendo entrevistado, informou que o grupo Assis Moreira estuda a possibilidade de construir uma ponte sobre o canal da lagoa Santo Antônio dos Anjos, que liga a cidade ao Farol de Santa Marta, mediante uma concessão para a cobrança de pedágio pelo prazo de 20 anos. “Existe essa possibilidade em médio prazo. Como é uma obra cara, cerca de R$ 90 milhões, a prefeitura não tem como bancar. Eles [Ronaldinho e Assis] estão interessados no investimento. Serão necessários todos os trâmites de licitação, um projeto adequado, mas estou confiante que possa dar negócio”.
O representante dos irmãos Ronaldo e Assis junto ao pool de empresas que projetam o loteamento, Aristovaldo Guterres, negou que as licenças tenham sido obtidas de forma fraudulenta e diz que o projeto ainda está em fase de estudo. “Por enquanto, não vendemos um lote sequer. Ainda estamos aguardando os licenciamentos necessários e vamos fazer tudo dentro da lei, pode estar certo disso”, defende-se Guterres.
A Projetar Imóveis, entretanto, desmente a informação. Segundo a corretora Denise Carvalho, que comercializa o empreendimento, pelo menos 100 dos 780 lotes já foram vendidos – o terreno mais barato, de 300 metros quadrados, sai por R$ 65 mil. “Tem bastante procura, o negócio está valorizadíssimo. E não precisa se preocupar com a questão legal porque todas as licenças e alvarás já estão assegurados, tudo garantido. Não haverá nenhum problema para construir”, propagandeia a vendedora.
O procurador da República Daniel Ricken informou que a suspensão da licença de instalação continua valendo e que qualquer movimentação no terreno em litígio é irregular neste momento. O loteamento Reserva do Farol de Santa Marta será lançado oficialmente ao mercado imobiliário em julho deste ano. Os negócios envolvendo Ronaldinho Gaúcho sempre foram controversos. Além das duas transferências tumultuadas envolvendo o Grêmio, a empresa montada sob a fama do craque teve mais fracassos que sucessos.
O Porto Alegre Futebol Clube, que deveria funcionar como um entreposto para a formação de jogadores, está licenciado por tempo indeterminado desde 2012. O Instituto Ronaldinho Gaúcho, empreendimento social do grupo, também foi desativado, em 2011, depois que o Tribunal de Contas do Estado apontou desvio de recursos públicos.
A longevidade dos principais dirigentes do futebol Foto: Wilson Dias/ABr Foto: Wilson Dias/ABr
Nicolás Leoz (85 anos) – Foi presidente da Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol) por 27 anos, desde 1986. Deixou o cargo em abril do ano passado devido a problemas de saúde.
Ricardo Teixeira (66 anos) – Ficou 23 anos no cargo de presidente da CBF. Renunciou à presidência da Confederação em 2012, depois do escândalo envolvendo um amistoso entre Brasil e Portugal.
Francisco Noveletto (59 anos) – Está há 11 anos à frente da FGF. Em 2015, quando acaba seu terceiro mandato, vai se candidatar a um novo período de quatro anos.
João Havelange (98 anos) – Presidente de honra da Fifa desde 1998. Antes de ser laureado, presidiu a Federação por 24 anos, tendo assumido a cargo em 1974.