Call Center: trabalhadores por um fio
Foto: Igor Sperotto
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Eles ganham um salário mínimo, trabalham de forma terceirizada, sob pressão constante para cumprimento de metas consideradas impossíveis, e por tabela, servem de escudo entre empresas dos mais variados tipos de comércio, prestação de serviços e produtos e as respectivas clientelas. De acordo com o Sindicato dos Telefônicos do RS (Sinttel/RS), atualmente, constituem mais de 2 milhões de trabalhadores legais e ilegais de telecentros pelo Brasil, mais conhecidos como call centers, atuando como braço terceirizado das grandes empresas, fazendo o telemarketing, seja Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC) ou na área de vendas.
“Eu trabalhei durante oito meses. Nesse meio tempo, sofri todo tipo de assédio no meu local de trabalho, por conta muitas vezes de querer realmente resolver o problema dos clientes. Cheguei, inclusive, a ser transferido de setor por conta disso, e com o tempo fui sendo pressionado a pedir demissão ou seria demitido por justa causa”, denuncia Paulo Ricardo (nome fictício), 22 anos, atualmente teleoperador terceirizado de uma empresa que presta serviços para uma empresa do poder público, mas se referindo ao emprego anterior, de onde saiu recentemente, em uma grande empresa que terceiriza trabalhadores para uma prestadora de serviço de TV a cabo que atua em todo o país e é líder em seu segmento.
Relatos como o de Paulo são comuns, tanto no momento das demissões, como em conversas com colegas ainda na ativa. Nossa reportagem visitou em várias ocasiões os arredores das maiores empresas do setor e teve a chance de conversar com inúmeros funcionários em seus raros momentos de folga. Cumprem 6h20min diários com pequenos intervalos para lanches e horários cronometrados para ir ao banheiro. A principal queixa dos trabalhadores é que são contratados sob a promessa de ganharem um fixo mais comissionamento por produtividade, porém, as metas impostas para atingir os patamares comissionáveis dificilmente são atingidos, graças a um esquema montado para ludibriar os trabalhadores.
No estado, estima-se que atuem, conforme dados da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel), cerca de 100 mil teleoperadores, porém, apenas metade com carteira assinada. “Temos 1 milhão com carteira e outro 1 milhão que não se sabe por onde andam. O adoecimento no setor é alto. Depois vão parar no SUS. É uma epidemia”, diz o diretor executivo da Fittel, Juan Sanchez, também membro do Sinttel/RS.
O INÍCIO – O diretor do Sinttel/RS, Marcone Santana do Nascimento, explica que esse tipo de trabalho realizado em telecentros ou call Center iniciou na década de 1990, no período pós-privatização. “Foi então que as empresas começaram a contratar esses profissionais, hoje chamados teleoperadores, que à época eram telefonistas. As empresas contratavam com a nomenclatura teleoperador. Então, aquela telefonista que era de uma estatal, cuja atividade estava sob uma legislação e protegida por normas trabalhistas, foi deixada de lado. Com isso, esses profissionais ficaram soltos e sem representação neste início, por conta de não existir uma legislação específica nem qualquer norma regulamentadora”, explica. O Sindicato e a Federação tiveram de travar toda uma luta para conquistar alguma regulamentação, que só veio em 2009, com a Norma Regulamentadora 17 – Anexo II, que normatiza as condições de trabalho desses trabalhadores.
Segundo ele, trata-se de um mercado de trabalho crescente, que proliferou sem proteção aos profissionais durante mais de uma década. E cada vez mais as empresas usando mais esse tipo de profissional e pagando menos. As maiores empresas do setor são a Contax e a Atento do Brasil. A Contax vem do grupo Telemar, e a Atento do Brasil provém da Telefónica. “São empresas que foram criadas para dar suporte de atendimento com profissionais terceirizados, com remuneração inferior, precarizada, com altíssima rotatividade. No início, um profissional ficava até dois anos. Hoje com a dinâmica de crescente número de atribuições, raros chegam a tanto tempo. A rotatividade é alta. A média hoje em dia chega a menos de um ano. Cerca de 2 milhões de trabalhadores de call center, na maioria jovens, sofrem com baixos salários, precarização do trabalho e adoecimento precoce em todo o Brasil”, relata Marcone.
Pressão psicológica é forte
Arleide Baseggio, assistente social que atende os demitidos no Sindicato, recebe relatos diários. “Eles são muito jovens e sofrem alta pressão psicológica. As metas são abusivas, impossíveis de serem cumpridas, e com o tempo isso vai desencadeando doenças. Há casos extremos de cegueira pelo excesso de exposição à tela, de danos ao tímpano. Também apresentam problemas de voz, garganta e, principalmente, na parte psíquica. Não existe dia, aqui no Sindicato, em que não encaminhamos alguém para clínicas psiquiátricas. Além disso, há LER/Dort por digitação, sem contar problemas causados por falta de ergonomia. Muitas vezes trabalham com cadeiras quebradas e mobiliário improvisado, sem contar os head set com fones de ouvido compartilhado, devido à pressa nas trocas de turno”.
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Vários demitidos relataram situações idênticas. Não podem queimar pausas, por exemplo. Por um minuto a tela do computador pode ser bloqueada e ele só poderá voltar a trabalhar se liberada por um supervisor. Não há tempo nem de ir ao banheiro. “São profissionais que sofrem todo tipo de assédio e xingamentos tanto dos clientes quanto dos superiores. Em geral, o próprio espaço para lanches é inadequado e insuficiente ao grande número de funcionários”, explica a assistente social. Um caso emblemático foi de uma trabalhadora que necessitava fazer um procedimento cirúrgico de alta complexidade na coluna vertebral e foi demitida em função disso logo após comunicar à empresa sobre o fato. “No momento, ela está cumprindo aviso prévio”, relata a Arleide.
O sindicalista Marcone Santana do Nascimento explica que, mesmo com a NR 17 – Anexo II em vigor, ela é sistematicamente descumprida. “Quando as denúncias chegam ao Sindicato, encaminhamos ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A partir disso enfrentam um trâmite que é demorado. Na maioria das vezes aqueles profissionais que denunciaram já não estão mais na empresa devido à alta rotatividade, que chega a 85%. Então, a empresa maquia o ambiente e permanece tudo como era antes”.
Adoecimento: TST dissocia causa de efeito
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) no primeiro semestre deste ano, apresenta um estudo inédito que será publicado até agosto. Elaborado por Renata Queiroz Dutra, mestre em Direito do Trabalho, defende que a precarização no setor de call center resulta em adoecimento, porém, as decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST), apesar de muitas vezes favoráveis aos trabalhadores, dissociam causa e consequência.
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“Os trabalhadores de call center têm passado por um processo de precarização gradual e que tem resultado em adoecimento, e eu procurei analisar alguns acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho, que vão de 2005 a 2013, para avaliar como o poder Judiciário tem compreendido a relação de causa e efeito entre precarização e adoecimento. Então, analisei tanto os pedidos de trabalhadores que se referiam aos processos de precarização, contratos terceirizados, controle de uso de banheiros, assédio moral e cobrança de metas”, explica. Segundo ela, quando adoece, o trabalhador reclama uma indenização na Justiça do Trabalho, porém, há um “dado gritante na pesquisa”: ainda que a estrutura judiciária tenha oferecido alguma resposta nos casos de adoecimento, condena as empresas, mas com valores de indenização que ficam muito aquém do que seria minimamente necessário para compensar os danos sistemáticos de adoecimento num tipo de trabalho que tem atingido maciçamente os trabalhadores.
“Mas o mais grave de tudo é o poder Judiciário não estabelecer esta conexão entre o adoecimento massivo e a precarização do trabalho como causadora. Eu tive a oportunidade de ver muitos casos em que a Justiça do Trabalho entendia que a terceirização era lícita, que o controle dos banheiros era algo tolerável, que não havia excesso na cobrança de metas. No entanto, no que se refere ao adoecimento, penalizava o empregador. Ou seja, separa a causa do efeito, quebrando o nexo”. Na opinião da pesquisadora, isso reprime a empresa no que se refere ao adoecimento, mas não tem uma ação preventiva no que se refere às causas: conduta e modelo de gestão do empregador que precarizam e que produzem dentre outros fatores, o adoecimento.
Outra conclusão grave do estudo é o descumprimento da NR 17, e que o Judiciário tem dialogado pouco com a norma. Muitas das questões que são discutidas nos processos dos operadores de call Center vêm amparadas em violações da NR, em situações que já estão previstas na norma, mas o Judiciário tem tratado todas essas situações sem nem sequer se reportar ao texto da NR. “É uma das poucas normas que mais do que proteger a saúde, protege a integridade e a dignidade do trabalhador. Esta norma tem sido ignorada. Existe uma diferenciação entre os tribunais regionais e o TST, principalmente no que se refere ao reconhecimento da NR, por conta de uma restrição técnica. Os TRTs têm maior liberdade de entender os casos, quanto o TST só recebe esses fatos para enquadrá-los juridicamente. O que resulta disso é que ao invés de se perceber que é um problema coletivo, acaba sendo individualizado”. Renata destaca, porém, o marco firmado pelo TST em 2012, que reconhece a terceirização na atividade de call center como ilícita, gerando jurisprudência no reconhecimento do vínculo empregatício diretamente com a empresa concessionária.
“Isso significa um grande avanço no patamar de direitos desses trabalhadores, embora não estabeleça o vínculo com o adoecimento, já houve condenações exemplares no que se refere à terceirização, mas ainda há muito o que avançar”, analisa. Atualmente, conforme decisão do TST, esse tipo de terceirização praticada por essas empresas é ilícita. A subcontratação desses trabalhadores por grandes empresas para prestar serviços para terceiros ocorre de forma ilícita. E quando eles reclamam o vínculo empregatício na Justiça do Trabalho, o mesmo é atribuído diretamente à tomadora de serviços, no caso empresas como Net, Tim, Vivo, Telemar, entre outras, que terceirizam esse tipo de atividade. “O que existe no ordenamento jurídico hoje é que a terceirização de atividade-meio é tolerada e que a de atividade-fim é proibida, pois existe, no segundo caso, uma empresa interposta entre o tomador de serviço e o trabalhador somente para a intermediação de mão de obra e isso é uma forma de tratar o trabalho como mercadoria, o que não é admitido pelo nosso ordenamento jurídico, nem pela Constituição nem pela OIT”.
No caso, ela esclarece que a atividade de telefonia é a relação da empresa com o cliente e que isso faz parte da atividade principal. “O assunto agora está no STF, mas o que se espera é que não haja retrocesso nesse aspecto, pois pode gerar mais precariedade do que a existente”, projeta.
ENTREVISTA | Precarização é um problema de saúde
O Extra Classe ouviu Airton Marinho, médico do Trabalho e auditor fiscal do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, com atuação em Minas Gerais e com vários trabalhos publicados na área de call center.
Extra Classe – Como o senhor descreve as condições de trabalho dos teleoperadores?
Airton Marinho – Call centers são ambientes de trabalho nos quais a principal atividade é conduzida via telefone, utilizando-se simultaneamente terminais de computador. O operador ou teleatendente é o profissional que atende ou faz chamadas para atendimento ao público ou vendas e relacionamento com clientes de toda espécie. Esse setor de serviços é predominantemente terceirizado, ou seja, são grandes empresas que prestam serviços de atendimento e vendas para outras. O setor é caracterizado em todo o mundo e especialmente no Brasil por formas de organização do trabalho baseadas, em especial, no controle do tempo de atendimento, com imposição de metas rígidas e exigentes. A força de trabalho é jovem, frequentemente em primeiro emprego, com mais de 80% de participação de mulheres. Análises ergonômicas detalhadas mostram com clareza a carga cognitiva de trabalho, as pressões de tempo e a rigidez do controle sobre os teleatendentes. A avaliação do desempenho é feita tomando-se por base “a qualidade do atendimento, tempo médio de atendimento (TMA), assiduidade e pontualidade, tempo “logado” e relacionamento interpessoal”. São frequentes os estímulos à produtividade através de campanhas motivacionais e oferecimento de folgas vinculadas a metas quantitativas de vendas ou ligações. O contato com o público envolve a recepção de queixas e escuta de problemas diversos e variáveis, gerando continuado esforço cognitivo de concentração, compreensão e síntese. Outras queixas são relatadas pelos próprios trabalhadores e por estudiosos, como a manutenção de posturas inadequadas, utilização contínua da voz, exposição aos sons gerados pelo fone de ouvido e ruído ambiente, desconfortos térmicos, iluminação deficiente e restrições à satisfação das necessidades fisiológicas.
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EC – Quais as principais doenças provenientes desse tipo de atividade?
Marinho – A literatura relaciona variados componentes da atividade de telemarketing/teleatendimento à geração de sofrimento e doenças (distúrbios mentais, disfonias ocupacionais e distúrbios osteomusculares), como exigências cognitivas, forte solicitação da memória e atenção, grande volume de informações, pressões de tempo, ritmos acelerados e ausência de pausas, controle rígido de desempenho, monitoramento eletrônico constrangedor, scripts, estímulos à produtividade, prêmios, competição entre colegas e conflitos. As pesquisas demonstram: LER Dort (sigla que engloba diversos quadros ortopédicos e neurológicos, como tendinites dos dedos e da mão, tenossinovites do punho e dos cotovelos, bursites, síndrome do túnel do carpo, cervicalgias, entre outros); distúrbios vocais como nódulos nas pregas vocais, disfonias; distúrbios de ordem psicológica (estresse, insônias, depressões, irritabilidade, distúrbios do humor); distúrbios auditivos como zumbidos, perdas temporárias de audição por choques acústicos, perdas auditivas induzidas pelo ruído (PAIR), entre outras.
EC – E na parte psicológica?
Marinho – Os problemas de fadiga mental são importantíssimos. Os mecanismos de controle são usados pelas empresas de forma constante e intensiva, para aumentar a produtividade. Incluem gravações das ligações, marcação de tempos, sinalização na tela do tempo em segundos que dura cada chamada, alertas de filas de espera, entre outros. Não atender a esse controle gera redução de remuneração e penalizações, gerando grande stress, medo e tensão; a quantidade de dados a memorizar, a velocidade de raciocínio, interpretação constante e rápida de dados são motivos de grande sobrecarga cognitiva e mental, que geram adoecimentos mentais e psicológicos; a lida apressada com o cliente nervoso e mal atendido gera, obviamente, conflitos e desgaste emocional, que vêm se somar ao esforço mental constante.
EC – As mudanças de legislação são efetivamente cumpridas?
Marinho – A regulamentação do MTE está em fase de implementação e vários problemas são encontrados: limitação de uso de banheiros; uso de mecanismos de controle abusivamente; excesso de horas extras; falta de pausas corretas; insuficiência de armários, banheiros, refeitórios; programas médicos incompletos que negam os riscos de adoecimento do ; programas de ergonomia incompletos e pouco efetivos; trabalho aos domingos sem autorização do MTE.
EC – É um problema cultural do empresário brasileiro?
Marinho – Infelizmente não há no Brasil uma cultura do trabalho seguro e saudável. Assim, percebemos que na maioria dos casos as empresas tentam aplicar a norma no mínimo possível, considerando, não raro, um entrave a seu funcionamento. De modo geral, é mais frequente encontrar empresas menores com problemas ainda na parte de mobiliário e equipamentos adequados, enquanto as maiores já resolveram essa questão, e descumprem mais os aspectos ligados à organização do trabalho, como pausas, jornada e formas de controle do trabalho. O principal ganho da legislação relativamente recente sobre call centers foi o fato da regulamentação em si, que dirimiu muitas controvérsias sobre a aplicabilidade de normas ao setor. Em seguida, as melhorias ambientais, com a adequação do mobiliário e equipamentos, além das pausas, já aplicadas em boa parte dos estabelecimentos, que podem reduzir significativamente o risco de LER/Dort.
EC – O que fazer para mudar esse quadro?
Marinho – O principal avanço necessário é que as empresas do setor apliquem o Anexo II da NR-17 completo e adequadamente. Identificamos empresas que aparentam cumprir a norma, mas não resistem a uma análise mais detida da organização do trabalho. As questões relativas à organização do trabalho, controle da produtividade e do desempenho, cobrança de metas, entre outras, ainda são um sério risco de adoecimento no setor.
EC – Como o senhor classificaria essa categoria no ranking das doenças ocupacionais?
Marinho – As estatísticas de adoecimento no telemarketing são falhas uma vez que dependem de registro de Comunicações de Acidentes ou Doenças do Trabalho (CATs) no INSS, que as empresas usualmente não emitem para quadros que não gerem afastamentos de mais de 15 dias. As estatísticas disponíveis são irreais. Se fossem computadas as queixas e atendimentos dentro das empresas e nos ambulatórios do SUS, com certeza teríamos dados assustadores de adoecimento. Estudo sindical francês mostrou em 3, 5 mil operadores de telemarketing ansiedade, estresse e fadiga em 71% dos entrevistados, problemas visuais e auditivos (16%) e dorsalgias (6%). O Brasil tem 1,3 milhão de teleatendentes. Se os números brasileiros correspondessem à realidade francesa (e provavelmente são piores), imagine o número de casos que teríamos. No entanto, a rotatividade altíssima nas empresas de call center, 12% a 15% ao mês, são um indicativo muito forte de condições ruins de trabalho e não temos pesquisas sobre o adoecimento da população que esteve trabalhando no setor e foi demitida.
EC – Bastaria que se aplicasse a NR 17?
Marinho – A aplicação do Anexo II, em todos os seus itens, com certeza pode melhorar em muito essas condições, apesar da lógica de produção semi-industrial que, em suma, é a responsável pelas condições existentes. Daí a necessidade de mobilização dos trabalhadores do setor, por meio de seus sindicatos, e aprimoramento dos mecanismos de Estado no controle dessa atividade.
>> Leia a íntegra da Norma Regulamentadora 17 Anexo II