Presidiárias sofrem preconceito em dobro
Foto: Igor Sperotto
As mãos que seguram as grades são delicadas. Os poucos enfeites nos dedos e resquícios de vaidade reforçam a natureza feminina de mulheres que cumprem pena nos presídios brasileiros. Na sua maioria, são jovens, negras, com idades entre 18 e 29 anos, têm de dois a cinco filhos, baixa escolaridade (muitas sequer completaram o ensino fundamental) e estão presas por envolvimento com o tráfico de drogas. Apesar das experiências pontuais de capacitação, assistência às presas e humanização das relações nos presídios, o sistema penitenciário é particularmente perverso com as suas populações femininas, pois multiplica o preconceito, a marginalização e a violação de direitos das mulheres e estende a discriminação aos seus filhos e familiares. No país, 40% das presidiárias sequer foram condenadas: elas estão encarceradas à espera de julgamento.
No total, existem 1,7 mil mulheres gaúchas apenadas, um número considerado não tão alto em relação ao resto do país. Muitas presas cometem os mesmo delitos que os homens, mas cumprem penas bem mais longas. As visitas são raras e o retorno para o mercado de trabalho, mais difícil. O estado tem quatro estabelecimentos prisionais: as penitenciárias Feminina Madre Pelletier, Estadual Feminina de Guaíba, o Presídio Estadual Feminino de Torres e o Instituto Penal Feminino de Porto Alegre.
Foto: Leonardo Savaris
E, ainda, mais de 60 estabelecimentos prisionais nos quais predominam apenados do sexo masculino, porém com população mista e, no caso da Penitenciária Modulada de Montenegro, com um anexo feminino. De acordo com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), dois projetos estão em construção, um em Passo Fundo e outro em Rio Grande, além da Cadeia Pública de Alegrete (prisão mista) e o Anexo Feminino de Lajeado. A diferença entre o Madre Pelletier e a Penitenciária Feminina de Guaíba é o perfil das apenadas.
No primeiro, as presas só trabalham ou só estudam, ou se dividem entre o estudo e o trabalho dentro da prisão. No segundo, as aulas acontecem somente no período diurno. Em todos os estabelecimentos são utilizados programas de inserção social e inclusão de cidadania. Em ambos, as mulheres têm o direito de ficar com os filhos durante 12 meses. “Muitas presas nunca tiveram acesso à educação e à capacitação. E hoje nós temos vários projetos em andamento, alguns dos cursos acontecem por meio do Pronatec e Mulheres Mil”, informa Anelise Pereira de Moura, da coordenadoria penitenciária da mulher da Susepe.
Segundo ela, somente neste ano mais de 70 mulheres foram capacitadas em várias áreas: construção civil, auxiliar de cozinha, computação, copeira etc. No de Torres, as detentas costumam ter aulas de hotelaria e confecção de cangas. “Costumamos inserir em cada região aquilo que será mais produtivo na volta ao mercado de trabalho”, revela Anelise. A Susepe também trabalha, desde 2012, com o projeto de prevenção ao aprisionamento. O foco principal é levar conhecimento para as mulheres que visitam os presídios, tanto femininos quanto masculinos.
Para tanto, é distribuído material contendo questões sobre violência doméstica, sobre os perigos de levar arma, droga e material ilícito durante as visitas para os filhos, irmãos, maridos ou companheiros. “Cerca de 40% já sofreram algum tipo de agressão, uma forma encontrada pelos homens de obrigá-las a cometer o crime”, acrescenta Analise. Outra iniciativa é o microcrédito prisional. O valor é utilizado na compra de insumos para a confecção de produtos a serem comercializados, como peças de artesanato, por exemplo. São formados grupos em que as apenadas se tornam avalistas umas das outras. A capacitação e organização permitem uma renda fixa para aquelas que não conseguem entrar no mercado de trabalho formal.
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No Paraná, uma prisão com creche e projeto pedagógico
Segundo as professoras Bruna Angotti, de Direito, da Universidade Presbiteriana Mackenzie; e Ana Gabriela Mendes Braga, da Unesp, aproximadamente 40% das apenadas no país ainda não foram julgadas. “Elas aguardam presas, apesar de existirem inúmeras medidas legais para evitar a prisão provisória”, diz Bruna. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações Penitenciárias, em junho de 2013 havia no país 36.135 mulheres encarceradas. E, ainda, segundo a Comissão Projeto Mulheres do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, existem atualmente no Brasil 80 presídios, sendo 288 unidades mistas que custodiam homens e mulheres, com a devida separação física.
“Atualmente o sistema prisional tem um déficit de cerca de 13 mil vagas. A demanda maior é em São Paulo (35%); Minas Gerais (9%); Paraná (7%) e Rio de Janeiro (6%). Nos últimos três anos, o departamento financiou a construção de 22 unidades prisionais femininas e todas estão em processo de construção para a geração de 8.138 vagas. Fora esse dado, os estados brasileiros possuem seus planejamentos em termos de geração de vagas”, informa Gisele Pereira Peres, coordenadora do Depen.
Segundo ela, existem diversas práticas positivas em desenvolvimento em algumas unidades federativas. Um exemplo é o estado do Espírito Santo, que investiu em infraestrutura nos últimos anos. Outros estabelecimentos femininos apresentam um bom padrão físico. “O do Paraná tem uma creche e projeto pedagógico para as crianças que lá se encontram. Também proporciona atividade laboral em grande escala, já que permite a entrada de empresas privadas nas unidades prisionais”, explica Gisele. O Ceará executa um projeto voltado ao estreitamento dos laços entre mãe e filhos; o de São Paulo publicou recentemente as diretrizes para a mulher presa e possui várias unidades novas, construídas em atendimento às especificidades da mulher.
Já a Paraíba instalou núcleos em várias unidades prisionais, incluindo os de prática jurídica, agricultura, construção de galpões, profissionalização, fábrica de tijolos, cozinha industrial, construção de quartos para encontros íntimos etc. A PUCPR desenvolve atividades em várias áreas na Penitenciária Feminina de Piraquara, como Dia da beleza, oficina de música, inicialização musical para bebês, estreitamento dos laços materno-infantis, profissionalizações, assistência jurídica. “Todos são de extrema importância para o sistema prisional feminino, seja no campo da assistência jurídica, profissionalização, ingresso da iniciativa privada em unidades, projetos com cunho religioso ou nas palestras orientativas”, completa Gisele.
Falta de acesso à Justiça é pior nas cadeias públicas
No entanto, o quadro exposto por Bruna Angotti é bem mais preocupante. Segundo a professora da Mackenzie, em primeiro lugar é importante ressaltar que não é possível falar de maneira universal das unidades prisionais brasileiras, pois há realidades muito distintas. Por exemplo, a das cadeias públicas, onde se encontram boa parte das presas provisórias do país é distinta das penitenciárias, onde, em geral, a situação é melhor. “Nas cadeias públicas a situação é, na maioria das vezes, precária.
Não há assistência médica regular, poucas são as oportunidades de trabalho e há grande dificuldade de acesso à justiça”, revela. Na opinião da professora, os presídios são muito diferentes entre si. Há unidades mais garantidoras de direitos e outros em que as presas ficam mais vulneráveis. A Penitenciária Feminina do Estado do Ceará é um exemplo de unidade prisional que cumpre com a Lei de Execução Penal (LEP), assegurando os direitos das detentas. O estabelecimento conta com plantão de defensores públicos, escola, curso de graduação em Filosofia, assistência psicológica e equipe de assistentes sociais. “Há creche para mães ficarem com seus bebês ao menos durante o tempo mínimo previsto em lei, ou seja, de seis meses. Já outras unidades não cumprem com o mínimo estipulado em lei”, ressalta.
Segundo a pesquisadora da Mackenzie, a penitenciária feminina de Salvador é a pior do país, já que dispõe de poucas vagas de emprego e o acesso à justiça não facilitado pela unidade. “A falta de defesa é o principal problema enfrentado por elas. Além disso, há, em geral, falta de equipe multidisciplinar que garanta às mulheres acesso à assistência social e à saúde”, ressalta Bruna. A dificuldade de manutenção de laços com os familiares também é um ponto importante – muitas delas são mães e não recebem a visita dos filhos, seja pela distância do local onde se encontram presas ou devido ao dia estipulado pela direção. Muitas cadeias determinam que os encontros devem acontecer ao longo da semana, dificultando a aproximação de familiares que estudam ou trabalham. Na opinião da especialista, são fundamentais as políticas que garantam às mulheres uma convivência com seus filhos e a participação em eventual processo e audiência de destituição de poder familiar para que não corram o risco de perder seus filhos para adoção. Outras demandas que ela defende são particularidades femininas, como produtos de higiene e atendimento médico ginecológico a que nem todas as presas têm acesso.
Privação da liberdade e direito à maternidade
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) participou no dia 29 de setembro do 3º Encontro Nacional do Projeto Mulheres, organizado pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ). O encontro reuniu profissionais do Sistema Penitenciário das 27 Unidades da Federação. A Coordenadora-Geral de Convivência Familiar e Comunitária Substituta da SDH/PR, Denille Melo, participou das discussões com enfoque na convivência familiar das mulheres em situação de prisão e de seus filhos. O evento teve por objetivo promover o debate sobre direitos e políticas sociais para as mulheres em situação de prisão e egressas e a implementação de políticas e serviços voltados para o atendimento da população carcerária feminina.
Foto: Sandro Damasceno
Em sua intervenção, Denille falou sobre o direito à visitação em espaço saudável e a amamentação em lugar adequado. “Apesar do fato de a mulher estar privada de liberdade, o seu direito à maternidade não pode ser negligenciado”, destacou. Segundo ela, as crianças e os adolescentes não devem cumprir pena com as mães, visto que tal procedimento viola o direito à convivência comunitária da criança e ou adolescente. E, ainda, não é recomendada a permanência de meninos e meninas em uma unidade penitenciária por mais de um ano de vida, enquanto ocorrer a amamentação. Durante esse tempo, a criança também tem o direito de ser colocada em creche na comunidade. “Após esse período, ela deve ser encaminhada aos membros da família (pai, avós, tios, irmãos etc.). Apenas em último caso irá para o serviço de acolhimento institucional em localidade próxima à unidade prisional”, destaca a coordenadora.
VÍNCULO FAMILIAR – Em ambos os casos, deve ser assegurado o direito à visitação para fortalecimento do vínculo familiar entre mãe e filho. O mesmo se aplica às mães que ao ingressarem no sistema penitenciário já tenham filhos adolescentes. Também é proibido o encaminhamento de filhos de mães presas para adoção, pois a privação de liberdade não destitui o pátrio poder. O Ministério da Justiça, por meio do Depen, constituiu em 2012 uma coordenação específica para tratar da temática das mulheres em situação de prisão. O objetivo foi resgatar as discussões oriundas do relatório final Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino, elaborado em 2007 por um grupo de trabalho interministerial e sob a coordenação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).
A consequência desse trabalho foi a elaboração da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional, instituída pela Portaria Interministerial MJ e SPM nº 210, de 16 de janeiro de 2014. Sob o enfoque de gênero, a Política Nacional busca garantir, no âmbito criminal, o encarceramento como última medida de punição e, no âmbito penitenciário, uma execução penal menos estigmatizante e violadora de direitos ao ser direcionada às necessidades e realidades específicas das mulheres presas. São metas da Política Nacional, entre outras, a assistência material, acesso à saúde, educação, assistência jurídica, atendimento psicossocial, religiosa, laboral, específica à maternidade, a dignidade no ato de revista, tratamento adequado à mulher estrangeira e ações voltadas à presa provisória. “Estamos na fase do fomento para que as unidades da Federação elaborem as suas políticas estaduais com base na nacional e, assim, tenhamos melhorias das práticas do encarceramento feminino brasileiro”, afirma Rosangela Peixoto Santa Rita, da Coordenação da Comissão Especial Projeto Efetivação dos Direitos das Mulheres no Sistema Penal.
Foto: Igor Sperotto
SEPARAÇÃO – S. B. D, de 38 anos, está no Madre Pelletier pela segunda vez. Na primeira foi condenada por tráfico de drogas e pegou pena de quatro anos. Saiu em 2006. Voltou pelo mesmo motivo em 2010. “Fui condenada pelos meus antecedentes. Tudo isso aconteceu porque meu marido estava envolvido com crimes e acabaram me associando a ele”, diz S., com sua bebê de apenas um ano de idade nos braços. A menina nasceu no presídio e será separada da mãe em pouco tempo. “Estou arrasada. Vai ser uma barra para mim, não quero me separar dela, não estou preparada para esse momento”, confessa a apenada entre lágrimas.
Ambas ficam na Unidade Materno Infantil, uma galeria separada do resto da instituição. No total, são 13 mães e suas crianças, mais cinco gestantes. As presas são transferidas para essa ala quando completam sete meses de gestação. “Elas recebem atendimento médico em diversas especialidades, incluindo cuidados com ginecologistas, pediatras, clínico geral e infectologista”, explica a diretora do Madre Pelletier, Marília dos Santos Simões.
Além dos serviços de saúde, a instituição oferece qualificação profissional às detentas. Pelo Pronatec são ministrados dois tipos de cursos: maquiagem (com a participação de 39 alunas, 20 na parte da tarde e 19 à noite) e, em novembro, inicia o de informática – que já conta com 16 inscritas. Além de adquirir novos conhecimentos, existe a vantagem da redução da pena.
Foto: Igor Sperotto
Das 211 presas, cem trabalham e ganham, em média, R$ 580 por mês. L. G. F, de 42 anos, ficará presa por dez anos e seis meses, também por tráfico de drogas. Já cumpriu um ano e sete meses. As visitas são raras: somente uma dos seus seis filhos costuma aparecer na casa prisional para visitá-la. “Prefiro não receber ninguém”, confessa. Nos últimos 12 meses, ela vem trabalhando no local com embalagens de temperos e frutas. “Estou adorando. E assim aprendo a dar valor ao trabalho quando eu sair daqui. É importante saber que as coisas podem ser diferentes”.
A (mais) dura realidade das mulheres presidiárias Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Entre as maiores causas do aprisionamento de visitantes femininas está o tráfico de drogas, com 78%. A pena é elevada por ocorrer no interior do estabelecimento prisional. Deste índice, 60% dessas mulheres violam o próprio corpo com a introdução de materiais ilícitos ou, ainda, sofrem pressão das redes de tráfico; 40% delas afirmam que foram submetidas a agressões físicas ou morais de seus companheiros ou familiares para burlar o sistema prisional.
Fonte: Assessoria de Direitos Humanos Coordenadoria Penitenciária da Mulher.