Foto: Igor Sperotto
Apesar de todos os avanços, a doação de órgãos, gesto que pode proporcionar nova vida ou sobrevida com qualidade a outras pessoas, ainda está longe de atender à demanda de mais de 40 mil pacientes que, de acordo com o Ministério da Saúde, aguardam na lista de espera por um transplante em todo o país. Experiências como a da Espanha, referência em doação e transplante de órgãos no mundo, mostram que é preciso capacitar os profissionais de saúde para identificar potenciais doadores, fazer as notificações e ter sensibilidade para falar com os familiares sobre doação de órgãos. No entanto, o conteúdo transplantes, com toda sua complexidade, não é abordado na formação de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde nas universidades. “A técnica não resolve o principal problema da oferta de órgãos. Pensar em lidar com a morte precisa estar nos currículos dos profissionais de medicina e nas escolas”, alerta o médico e professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Alcindo Ferla.
“No mundo inteiro, a doação de órgãos faz parte dos currículos escolares, em todos os níveis de ensino. Vemos isso no Canadá, em Israel, na Inglaterra. Nesses países, eles trabalham muito especialmente com adolescentes. Infelizmente, o Brasil está aquém”, avalia também a nefrologista pediátrica Clotilde Garcia. Para além das profissões ligadas à saúde, ela pondera que a questão poderia ser tratada nas faculdades de Direito, Publicidade e Propaganda, Jornalismo, Sociologia, entre outros. “Aí nós estaremos trabalhando a sociedade civil, os direitos humanos, a solidariedade e até mesmo a inteligência”, projeta.
O médico e professor de Saúde Coletiva da Ufrgs reforça que os transplantes – desde o momento da suspeita do óbito até a doação e a recepção do órgão pelo paciente que está na lista de espera – acontecem no âmbito da saúde pública. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem princípios e diretrizes constantes no artigo 198 da Constituição Federal e sua Legislação específica (Leis 8080 e 8192/90), que estabelecem a universalidade (garantia de atendimento para todos os cidadãos brasileiros, sem discriminação), a integralidade (conjunto de ações possíveis e disponíveis para os cidadãos) e a equidade (tratar as diferenças na busca da igualdade). Os defensores do SUS, explica, costumam dizer que há um princípio não escrito em lei, que é a sua principal marca: a solidariedade. Para Ferla, o caráter público dos transplantes e a solidariedade envolvida na doação de órgãos estão em conflito com certo elitismo da classe médica e dos cursos de Medicina, o que explica o distanciamento da academia em relação ao tema.
O fato de cursos de Medicina – bem como das demais profissões ligadas à saúde – não trabalharem o tema doação de órgãos e transplantes em seus currículos “é um reflexo da sociedade individualista”, constata Ferla. O conhecimento sobre o assunto mudou, e a sociedade não foi preparada para isso. “Até 1997, quando entrou em vigor a Lei dos Transplantes, a morte era declarada pelo silêncio do coração. A partir desse marco, fica estabelecido que o óbito se dá pela parada do cérebro e isso causou estranhamento, pois o coração, historicamente, é o órgão do afeto, do amor, uma construção de séculos. Aí vem a ciência e, de forma arrogante, avisa que a morte sai do coração e vai para o cérebro”, provoca. Conforme Ferla, não basta uma excelente técnica de transplantes. É preciso desenvolver valores de solidariedade e humanismo. “Há estudos que mostram que profissionais que lidam mais com a morte, ou sua proximidade, especialmente de crianças e idosos, desenvolvem um vínculo de solidariedade diferenciado”, ressalta.
Foto: Igor Sperotto
Desde que começou a lecionar Nefrologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde (Ufcspa), amparada na sua experiência com os transplantes em crianças, Clotilde Garcia decidiu que era preciso falar sobre doação de órgãos em suas aulas. Aproveitou que Valter Garcia vinha promovendo cursos sobre doação de órgãos por todo o país, e passou a convidá-lo para lecionar sobre o tema na Universidade. A parceria vem de longa data: Clotilde e Garcia participaram da equipe responsável pelo primeiro transplante renal pediátrico na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, há 40 anos. Graças à iniciativa de Clotilde, a Ufcspa inseriu uma disciplina de doação de órgãos a partir de 2006. “Não é obrigatória, porque odeio obrigação. Sou eu que administro, ela é semestral e a procura é sempre 100%, tenho lotação máxima”, comemora.
Inspiradas na Ufcspa, outras duas universidades passaram a fazer o mesmo: a Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e a Universidade Católica de Pelotas (Ucpel), instituições nas quais leciona como convidada. Mas a inclusão do tema transplantes no currículo dos cursos de Medicina e áreas relacionadas não vai além desses exemplos. A Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) chegou a ter uma disciplina do curso de Medicina, mas a matéria não consta mais da grade curricular.
HIATO – A avaliação dos alunos da disciplina de Clotilde é feita através de projetos que busquem o aumento de doação de órgãos, geralmente voltados para campanhas de educação como, por exemplo, transplante de pele. “Quando aconteceu a tragédia da Boate Kiss (em Santa Maria), em 2013, o único site que abordava o assunto tinha sido desenvolvido por nossos alunos”, recorda a médica. A doutoranda Tathiana Tavares Menezes, epidemiologista pediátrica que cursa esta disciplina, sentiu necessidade de se especializar porque o tema não foi abordado na graduação. “Faz falta no currículo. Minha ideia é trabalhar com transplante em crianças, pois quem tem imunodeficiência acaba evoluindo para transplante de medula óssea”, avalia. Já Alberto Chitolina Nesello, estudante do primeiro ano de Medicina, diz que, considerando a evolução da medicina, a questão dos transplantes despertou seu interesse. “A disciplina é bastante útil para a futura prática médica”, aposta. Ele defende que estudos sobre transplantes deveriam estar em todos os cursos. “É preciso suplantar o hiato entre o mundo acadêmico e a doação”, aponta. Para o acadêmico de Medicina, tão importante quanto uma disciplina específica sobre essa questão é a abordagem do tema pelos professores em todos os espaços.
RESIDÊNCIA – Com 40 anos de experiência na área de transplantes, o nefrologista Valter Garcia admite dificuldades na aquisição de novos profissionais para o setor. “Há menos profissionais do que se precisa, porque hoje os jovens preferem trabalhar em lugares com melhor qualidade de vida. Transplante é 24 horas por dia à disposição e, além disso, exige mais estudo. Tem que ter perfil”, destaca. Hoje, em muitos lugares, as equipes de transplantes estão envelhecendo sem conseguir reposição de profissionais. O médico informa que foi aberta a residência médica em transplantes, mas a procura é pequena em todo o Brasil.
O médico Spencer Camargo concorda que são poucos os profissionais seduzidos para o trabalho na área. Cita como empecilhos os aspectos econômicos e mesmo de formação, pois se trata de uma atividade de alta complexidade que exige envolvimento. Segundo Spencer, o curso de Medicina já é longo, e formação em transplantes envolve, pelo menos, mais cinco anos de residência médica. “Além disso, trabalhamos com pacientes que vivem no limite da vida, então, há um envolvimento enorme”, pondera. Ele acrescenta que a remuneração não estimula profissionais a seguirem por esta área, e os próprios hospitais muitas vezes têm prejuízos com os transplantes. “Deve haver um esforço conjunto para formar profissionais para a área e estimular os hospitais a promoverem programas de transplantes”, aponta.
Desigualdades regionais acentuadas impedem avanços
Foto: Igor Sperotto
Enquanto Rondônia não tinha doador nem transplante até 2014, os estados da Região Sul têm quase o dobro de doadores por milhão de população do que toda a Região Sudeste. Essa realidade fez com que o médico nefrologista Valter Garcia, que inaugurou a Central de Transplantes do RS, tenha optado por se dedicar atualmente a melhorar as condições de transplante na Região Norte e ampliar os índices no país como um todo.
A Região Sul tem os melhores indicadores: na projeção de doadores por milhão de população, Santa Catarina tem 37, Paraná tem 34 e Rio Grande do Sul, 25. “Esses números podem aumentar um pouco, mas não devem chegar a 40. Agora, os estados que têm cinco doadores por milhão de habitantes podem alcançar 10 em até quatro anos, o que vai ajudar muito para se enfrentar o desequilíbrio”, avalia.
A iniciativa de Garcia começa a apresentar resultados: “Desde julho de 2014 até agora, fizemos 56 transplantes de rim. Rondônia já tem quatro doadores por milhão – é como o Brasil estava em 1997, quando comecei”. O trabalho agora segue em Santarém. Para Garcia, a equidade que se vê na lista de espera não funciona para quem habita as regiões Norte e Nordeste. “Quem mora em Porto Alegre entra em lista e vai fazer o transplante. Agora, quem mora no Amazonas ou em Roraima, Mato Grosso, se não mudar de estado, não faz o transplante”, compara.
Santa Catarina investiu na capacitação e aumentou doações
Santa Catarina, que tem o maior número de doações de órgãos no país, aumentou os índices investindo na capacitação dos profissionais de saúde, especialmente nas UTIs, seguindo o exemplo espanhol. “São muitos os elementos que influem na decisão das famílias, e um deles é a formação e o treinamento dos profissionais de saúde”, afirma Carmen Segovia, que atuou como coordenadora da Organização Internacional de Transplantes da Espanha entre 1992 e 2016. Naquele país, não são feitas campanhas de doação junto à sociedade. A doação de órgãos resulta principalmente do vínculo entre os profissionais de saúde e as famílias baseado em três pilares: respeito, empatia e autenticidade. Em agosto, Carmen esteve em Porto Alegre para participar de uma capacitação do projeto Donors. “Constatamos que a forma como a família percebe a relação com os profissionais de saúde vai gerar (ou não) satisfação. Se se sentir bem atendida desde a porta de entrada no hospital, a tendência é doar os órgãos do familiar”, explica.
“Mais importante que a estrutura dos hospitais é o profissional”, concorda Joel de Andrade, coordenador do SC Transplantes, a Central de Transplantes de Santa Catarina. Nos cursos de comunicação em situações críticas que realiza em vários estados, Andrade ensina que é preciso entender o que a família quer e precisa. Por exemplo: se uma mãe conjuga o verbo no presente ao falar do filho com morte encefálica – “meu filho faz”, “meu filho é” – isso indica que ela ainda não aceitou a sua morte. “Não tem sentido, neste momento, falar em doação de órgãos”, observa. “O treinamento dos profissionais das Unidades Intensivas beneficia não só as famílias de potenciais doadores, mas todas as que têm parentes nas UTIs”, esclarece. “Ajuda os profissionais, até em casa, ao diminuir a tensão”, acrescenta Carmen.
Foi o que aconteceu no Paraná. O Sistema Estadual de Transplantes daquele estado implementou, nos últimos quatro anos, cursos semanais para os profissionais que trabalham com pacientes críticos e aumentou de 6,8 doadores por milhão de população em 2010 para 34,3 doadores por milhão no primeiro semestre de 2017. Hoje, o Paraná é o segundo em número de doações do país.
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