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Tem aí?

Por Gilson Camargo / Publicado em 5 de novembro de 2015

Tem aí?

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Psiquiatra Paulo Belmonte Abreu, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas e Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Ufrgs,  condena o hábito de consumir medicações de tarja preta como um  band-aid para enfrentar situações do dia a dia. Leia a seguir entrevista completa, concedida por ocasião da reportagem Remédios demais, publicada da edição de outubro.

Extra Classe – O parâmetro recomendado pela OMS é de uma farmácia para cada 8 mil a 10 mil habitantes. No Brasil, segundo dados da Anvisa e do Conselho Federal de Farmácia (CFF), há em média uma farmácia para cada grupo de 2,5 mil habitantes. Como o excesso de oferta de medicamentos coloca em risco a saúde pública?
Paulo Belmonte de Abreu – Desconheço o parâmetro da OMS, mas concordo com a impressão de que temos farmácias em excesso, porém, a questão é mais complexa, pois envolve questões econômicas, como as peculiaridades nossas de acesso ou reembolso a medicamentos pelo sistema público ou saúde privada, questões culturais, como de crença na existência de “um remédio para cada mal que nos aflige”, de taxas de lucro com venda de medicamentos, com concessão de licença para farmácias operarem (permitindo mais de uma farmácia na mesma quadra, por exemplo). Nos países com poucas farmácias o cidadão tem acesso a medicamentos pelo sistema público, direta ou indiretamente, no privado, via reembolso, porém, precisa prescrição com maior justificativa e fundamento do que aqui. Aqui apesar da existência de programas excelentes, como o do Ministério da Saúde para fornecimento de medicamentos especiais (mais de cem, em geral de alto custo), a população não consegue reembolso de convênios do gasto com medicação e tem acesso errático a farmácias em Postos de Saúde. Assim precisa comprar grande parte da medicação e faz busca tipo shopping. Onde existe busca de preços, surge mais oferta (outros podem interpretar que é o contrário: onde existe maior oferta de produtos, irá ocorrer maior procura).

Extra Classe – Isso faz com que o consumo se sobreponha à questão da saúde?
Abreu – Nos dois modelos, a medicação entra como objeto de consumo e não como uma necessidade básica. Adicionalmente, medicamentos da farmácia popular são obtidos via farmácias privadas. Assim muita gente vai à rede privada para obter medicamentos financiados pelo governo. Concluindo, o número de farmácias reflete diferentes fenômenos. No que toca a medicamentos para tratamento de transtornos mentais, existem algumas peculiaridades: 1. a maior parte dos antidepressivos e benzodiazepínicos – e agora mesmo os neurolépticos – é receitada pelo clínico, e não pelo psiquiatra. E com uso para diferentes transtornos (o que não é ruim, como primeira linha de tratamento e para tratamento de problemas menos complicados, e para sofrimentos “menores” ou “triviais”, como condições de ansiedade e tristeza, insônia, desconforto). Nestes casos, apesar de prático deve ser questionado o excesso de medicalização do sofrimento e do desconforto. Isto pode ser até iatrogênico, pois prolonga a reação e adaptação natural a estressores que precisam ser removidos ou alterados. Porém, no que toca a medicamentos mais específicos, como para TDAH e transtorno bipolar, penso que há o inverso: temos subprescrição e sub-utlização de medicamentos (veja artigo de Paulo Mattos, Revista Brasileira de Psiquiatria, recente que mostra em termos numéricos, e também consumo de carbonato de lítio considerando taxa de 1,5 % de transtorno bipolar na população geral, ou antidepressivos, para estimativa de até 10% da população com este diagnóstico). Outros são usados em excesso, como antipsicóticos em crianças com descontrole de impulsos e conduta, e em idosos com insônia. Aiás, já foi proposta pela OMS há cerca de 30 anos a monitoração da eficiência de programas de saúde mental através das taxas de consumo de medicamentos específicos, baseado na estimativa de necessidade por taxa de doentes na região.

Extra Classe – Outro indicativo é de que haveria mais farmácias onde há mais concentração de médicos, nos grandes centros.
Abreu – Esta questão é complexa, requer análise dos múltiplos fatores envolvidos e da interação entre estes fatores: existe mais médico onde tem mais população concentrada, onde existe maior oferta de emprego, melhores condições de trabalho, de transporte, de escolas (os médicos também têm família), alimentação. De qualquer forma, uma resposta a isso seria a elaboração de um plano de carreira para o médico da rede pública, como existe para servidores do judiciário (número definido por comarca, com acesso e progressão de acordo com o desempenho e mais a experiência, começando no interior e progressivamente passando por comarcas maiores, até a capital estadual, da região e depois nacional. Como carreira na Polícia Federal, na Justiça Federal ou Estadual).

Extra Classe – Qual a responsabilidade dos médicos no controle sobre a automedicação?
Abreu – O médico deve prescrever somente quantidade para uso, o resto é secundário. O médico precisa também ser educado com a noção de que a medicação é uma parte de seu trabalho, que ele precisa conhecer o paciente, sua família, seu meio, e entender o sofrimento, doença e saúde de forma integrada – dor na barriga, na cabeça, tristeza, raiva, nojo, apatia, são expressão de um mesmo fenômeno, e sua palavra, atitude, afeto, atenção, também são ingredientes de cura. Para isto existem faculdades com currículos integrados, que devem formar médicos assim, pois depois de formado é difícil incutir esta mentalidade. 

Extra Classe – Concorda que vivemos em uma sociedade em que prevalece a cultura da medicalização?
Abreu – Penso que sim, mas vejo como um pedaço do iceberg. Na verdade, vivemos em uma sociedade com cultura de crescente noção de individualismo e responsabilidade no autocuidado-manejo, com utilização de acesso ao conhecimento via web e redes sociais associadas, muitas vezes sem pleno entendimento do assunto, ou com plena veracidade de fontes. Assim, vemos uma rápida expansão de pacientes que hoje pesquisam internet, trocam informações em redes sociais, compram medicamentos, complementos, aditivos, etc., antes de buscar um tratamento convencional e/ou um médico.  Mesmo depois da consulta, pesquisam constantemente, e fazem checagem da adequação da prescrição feita de acordo com diretrizes que encontram na internet. Assim hoje existe uma cultura mais ampla, de automonitoração e de maior autonomia para busca de saúde, ou algo semelhante, onde as pessoas fazem exames por conta própria, solicitam com insistência investigações, procedimentos e drogas que viram na internet. Uma cultura de progressiva automonitoração e de autonomia de decisão, que tem um lado positivo, e na verdade colocam o médico em um papel mais crítico e interativo, de uma pessoa que deve estar aberta para discutir impressões, diagnósticos e condutas, e não de uma criatura onipotente e autoritária.

Extra Classe – Além da automedicação que abrange substâncias controladas vendidas livremente nas farmácias, 40% dos medicamentos consumidos no país são antibióticos e drogas como o Rivotril são cada vez mais populares. Quais os riscos dessa banalização?
Abreu – Quanto à automedicação e benzodiazepínicos, como Rivotril, Dienpax, Lorax, etc., há o risco de “alienação” e prejuízo na capacidade de adaptação do sujeito, se sedado de forma inadequada. Ao mesmo tempo, são medicamentos de ‘tarja preta’, ou seja, necessitam receita especial – azul, que fica retida na farmácia. O que ocorre é que os pacientes pedem às vezes para diferentes médicos, e utilizam como um band-aid para enfrentar situações do dia a dia, e trocam informalmente, dentro da família e do trabalho, tipo “tem aí…?”. Os maiores prejudicados são os idosos, que têm maior risco de quedas e de prejuízo cognitivo com essas drogas, e adultos que usam de forma sistemática para enfrentar desafios normais, como relaxar antes de uma prova, concurso, tomar decisões, etc., em que o benzodiazepínico pode fazer efeito inverso, prejudicando o desempenho.

Extra Classe – Como entender a popularização de um medicamento que é receitado por médicos psiquiatras se grande parte da população não tem acesso a essa especialidade?
Abreu – A medicação controlada com traja preta, como se diz, os benzodiazepínicos, ficou popularizada porque as pessoas têm acesso a ela por prescrição de clínicos e não por psiquiatras. Dão efeitos imediatos, parecidos com embriaguês leve e são muito bem tolerados, assim as pessoas relutam menos antes de tomar. Em geral uma pessoa idosa recebe do clínico e os outros da família pedem para usar também. É barata, dá um pequeno barato, de embriaguês leve, desinibe para conversar em situações sociais, relaxa para enfrentar situações tensas, descansa depois do trabalho extenuante e termina logo a ação. Daí a popularidade.

Leia também:  entrevista com o presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Walter Jorge João. Para ele, o excesso de farmácias favorece a concorrência predatória do comércio, que induz ao uso irracional de remédios.

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