Escola sem partido tem partido
Foto: Igor Sperotto
Lei da mordaça é como vem sendo chamado por muitos educadores e especialistas em Direito o Projeto de Lei Escola Sem Partido em tramitação em vários estados, municípios e também em âmbito federal. Esses especialistas em educação não só criticam a tentativa da censura aos professores como também avaliam que tais projetos não têm nenhuma sustentação pedagógica. O jargão “Lei da Mordaça” é um contraponto usado pelos críticos da lei ao eufemismo “sem partido” ou “sem ideologia”. Segundo eles, o apelido da lei esconderia a verdadeira intenção de uma eventual legislação em prol de uma escola de perfil ideologicamente conservador e não sem partido ou ideologia como apregoa.
Fruto de uma grande articulação nacional, esse movimento ganhou força em 2014, quando o procurador de Justiça de São Paulo, Miguel Nagib, fundador do movimento, foi procurado pelo deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PSC), para que ele escrevesse um projeto de lei a partir de suas ideias. Surge então o PL 294/2014 na Assembleia Legislativa carioca, desencadeando uma série de projetos em todo o país.
No âmbito federal, quem apresentou o PL 867/2015, que atualmente está em estudo na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal, foi o deputado Izalci (PSDB/DF) e no estado do Rio Grande do Sul o autor do PL 190/215 é o deputado Marcel Van Hattem (PP/RS). A base e articulação no Congresso reúne nomes como João Campos (PSDB/GO), da frente parlamentar evangélica, Eduardo Cury (PSDB/SP), que apoiou a reforma do governador Alckmin na educação e Rogério Marinho (PSDB/RN), coordenador do PSDB na comissão de educação e Cultura da Câmara.
Segundo a relatora do PL 7.180/2014, Stela Farias (PT/RS), assim como acontece no âmbito nacional, na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia gaúcha onde tramita o PL, a maioria dos deputados apoia o Escola sem partido. “É um retrocesso”, observa a deputada, que daqui há dois anos estará se aposentando como professora de História no estado, uma das disciplinas mais visadas pelo escopo dos projetos de lei. Com base nessa desigualdade, ela avalia que somente com a mobilização da sociedade e dos professores para pressionar a classe política será possível conter tais inciativas.
O Escola sem Partido, na argumentação do deputado Van Hattem pretende “impedir que professores fdoutrinem ideologicamente seus alunos, garantindo-lhes o direito e o dever de ensinar sobre tudo que diz respeito à sua matéria, mas sem emissão de julgamentos enviesados – ou seja, que o professor seja “informador” e “formador”, não “opinador”. A lei afetará somente a minoria docente que se tem dedicado a moldar suas abordagens, recortando e distorcendo fatos, ocultando boa parte do conteúdo e direcionando os alunos para o brete ideológico. A maioria dos professores, dedicada às funções precípuas e essenciais do ensino, só tem a ganhar com este reforço a seus direitos e deveres”.
Foto: Luiza Veber/ Agência ALRS
Educação sem ideologia é fora da realidade
Para o professor de Filosofia da Faculdade de Educação da Ufrgs, Luiz Carlos Bombassaro, propor uma escola sem ideologia é imaginar uma escola fora do contexto sócio cultural onde está inserida. Sejam os indivíduos ou as instituições como as escolas, todos partimos de uma compreensão de mundo compartilhada numa dada a sociedade. De acordo com o professor, é função da escola desenvolver criticamente seus alunos, discutindo as diferentes ideologias: “Não há como produzir qualquer formação fora de referenciais éticos e políticos de onde vivemos”. Nesse sentido, é compromisso da escola pensar sobre a sociedade da qual faz parte.
O pressuposto ou desejo de uma neutralidade politica defendida pelo projeto Escola Sem Partido, Bombassaro diz ser impossível porque, em termos de conhecimento e de valores, “a escola nunca poderá ser neutra”. Conforme o educação, sempre estamos situados em um contexto a partir do qual falamos. Por isso, ele firma: “Aprendizagem é um processo de interação e de troca, que envolve a exposição de posições éticas, políticas e filosóficas”.
Com relação à ideia de um aluno exposto a uma doutrinação em sala de aula por parte do professor, Bombassaro critica o projeto: “Denota uma compreensão ingênua da capacidade reflexiva e crítica de alunos e professores, ao dar a entender que os alunos possam ser orientados ideologicamente por uma posição ou outra”. Numa leitura mais ampla do PL, o professor diz ser impossível discuti-lo minimamente uma vez que não estão expressos claramente os pressupostos filosóficos, éticos e pedagógicos sobre os quais foi estabelecido.
Perigo de caça às bruxas no ambiente escolar
A professora de Direito constitucional, Roberta Baggio considera particularmente perigoso o artigo 4o do PL 867/2015 que relaciona uma série de atitudes negadas ao professor no exercício de suas funções, finalizando com o inciso VI que diz que o professor “não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula”. Ou seja, o professor poderá ser acusado por um de seus alunos por permitir discurso ideológico em sala de aula porque autorizou estudantes candidatos à eleição do Grêmio Estudantil ou diretórios acadêmicos de falarem aos colegas.
Ao estabelecer-se essa prática nas escolas, preocupa-se a professora, instala-se um clima de denuncismo que é reforçado no artigo 7º, onde se lê: “As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato”. Ainda quanto a esse artigo, Roberta adverte seu aspecto inconstitucional quando assegurar o anonimato. Conforme o artigo 5o da constituição, inciso IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
O deputado Marcel van Hattem (PP/RS) alega que o projeto não fere as liberdades garantidas ao professor. Segundo ele com relação do projeto Escola Sem Partido: “…as liberdades e direitos constitucionais do professor – de cátedra, de informação – não são apenas garantidos: são reforçados e respaldados. O professor tem o direito e o dever de oferecer aos alunos todas as informações pertinentes à sua disciplina. Em relação à sua opinião, contudo, é outra história: se for dada, não pode omitir a existência de outros pontos de vista para a análise do mesmo fato pois, do contrário, em vez de opinião estar-se-ia fazendo defesa unilateral de uma única ideia – ou seja, doutrinação. A garantia do anonimato na denúncia aos órgãos competentes é essencial para preservar as vítimas – como, aliás, acontece em inúmeros outros casos de graves denúncias que são feitas anonimamente às autoridades”.
Lei propõe uma neutralidade que não existe na sociedade
Para o professor de História da rede estadual de ensino, Said Salomón, muitos dos assuntos que podem ser considerados de cunho ideológico de acordo com o texto dos projetos em questão surgem da demanda dos próprios alunos e/ou da rotina escolar: “…da aluna que a gente percebe que sofre violência em casa, dos comentários homofóbicos que sofre em sala de aula,” exemplifica. Essas questões chegam na sala de aula e, segundo o professor, ele é cobrado para debater durante as aulas. Solicitações que se intensificam especialmente em períodos especialmente conturbados na esfera política como os enfrentados nos últimos meses no Brasil.
“A legitimidade é mostrar o que pensamos e não fingirmos neutralidade porque a neutralidade não existe.” E se um aluno pergunta qual sua opinião sobre assuntos como impeachment, Said não só diz o que pensa como também incentiva seus alunos a pesquisarem as diferentes argumentações, prós e contras, e que apresentem uma aula sobre o tema, transformando assim um questionamento legítimo em conteúdo de sala de aula, com uma abordagem que não só respeite a liberdade de pensamento de cada um como também contribua para que os alunos cheguem a suas próprias conclusões. “É importante que a escola continue sendo o espaço para esse debate”, adverte.
Iniciativa ameaça base comum curricular
No dia três de maio deste ano foi entregue a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pela Secretaria de Educação Básica/MEC ao Conselho Nacional de Educação (CNE), ao Conselho Nacional de Secretarias da Educação (Consed) e à União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Esse documento foi antecedido de debates e consulta pública por meio de Portal específico para esse fim, recebendo mais de 12 mil contribuições oriundas de escolas, organizações e professores.
Acervo pessoal / Reprodução da web
O comitê assessor e a equipe de especialistas que atuaram na produção da primeira e da segunda versão da Base divulgaram recentemente nota manifestando preocupação com iniciativas que vêm tentando deslocar a discussão da Base do âmbito dos conselhos para outras instâncias, com a participação de grupos e atores cuja legitimidade para deliberar sobre o processo não foi ou tem sido discutida com a sociedade. Uma das preocupações do comitê refere-se especialmente ao movimento Escola sem partido que, dentre as ações mais recentes, foi a visita do ator Alexandre Frota e de membros do grupo Revoltados Online ao ministro da Educação, Mendonça Filho.
De acordo com o comitê tais inciativas ameaçam o principal objetivo da elaboração de uma base comum para os currículos nacionais: “o de contribuir para a melhoria da qualidade de educação básica, entendida como garantia aos estudantes e à estudantes de serem acolhidos em sua diversidade e de, nela, terem reconhecidos seus direitos fundamentais”.
Movimento online com ideário fascista
Como forma de propagar suas ideias e estabelecer um canal de contato, o movimento Escola sem partido desenvolveu o site escolasempartido.org onde o internauta pode tomar amplo conhecimento tando das ideias defendidas pelo grupo como também de como aderir à proposta. Na barra do lado direito do site uma série de links é antecedido pela frase por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar. Abaixo, seguem informações e instruções como: dia nacional de luta contra a doutrinação na escola; deveres do professor; flagrando o doutrinador; planeje sua denúncia. Na sequência a indicação de dois textos para leitura: Professor não tem o direito de fazer a cabeça do aluno e Quem disse que educação sexual é conteúdo obrigatório?
Clicando no ícone FAC no topo da página chega-se a um texto intitulado A doutrinação é um problema grave na educação brasileira? Por quê? Na longa explicação chega-se a outra pergunta Não existe doutrinação de direita? Lê-se a resposta: “Existem professores de direita que usam a sala de aula para fazer a cabeça dos alunos. Mas são franco-atiradores, trabalham por conta própria. No Brasil, quem promove a doutrinação político-ideológica em sala de aula, de forma sistemática e organizada, com apoio teórico (Gramsci, Althusser, Freire, Saviani, etc.), político (governos e partidos de esquerda, PT à frente), burocrático (MEC e secretarias de educação), editorial (indústria do livro didático) e sindical é a esquerda”.
Conforme o site, já foram apresentados projetos inspirados nesse ideário em seis estados (Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Ceará e Rio Grande do Sul) e no Distrito Federal. Além disso, aponta que já há propostas semelhantes tramitando em oito câmaras municipais. Na Câmara de Santa Cruz do Monte Castelo (PR), a proposta já foi aprovada. Em Alagoas, desde o dia 9 de maio, os professores das escolas estaduais são obrigados a manter a “neutralidade” em sala de aula, em questões políticas, ideológicas e religiosas.