Jogo de interesses por trás da Reforma da Previdência
Foto: Igor Sperotto
Enquanto tenta apressar a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287 nas comissões com o objetivo de votar a reforma da Previdência ainda no primeiro semestre, o governo amarga a crescente perda de apoio no Congresso. As contradições da reforma, os interesses que a movimentam e o que ela representa em termos de perdas para os trabalhadores e para a sociedade se tornam cada vez mais evidentes com as campanhas de exposição de parlamentares identificados com a base aliada de Temer, organização de atos públicos, marchas e paralisações como a Greve Geral desta quarta-feira, 15 de março.
Após a debandada de bancadas aliadas como o Pros, o PSB, o Solidariedade e setores do PMDB, que rejeitam o texto da reforma, o líder do Democratas, o goiano Ronaldo Caiado criticou o projeto, sinalizando mais uma baixa. Eros Biondini (Pros/MG) justifica a ruptura com o governo: “o texto fere direitos dos trabalhadores”.
No Senado, a reforma também perde apoio de aliados do governo. “Essa proposta que foi mandada para o Congresso parece bastante exagerada. Mas o Congresso, não tenha nenhuma dúvida, vai fazer a sua parte”, ameaçou o senador Renan Calheiros (PMDB) em um vídeo publicado nas redes sociais. “Aposentar aos 69 no Nordeste? Isso é demonstração do desconhecimento da realidade”, criticou.
Detentor de quatro ministérios, entre os quais a Secretaria de Governo e a articulação política com o Congresso, o PSDB, principal aliado de Temer na Câmara, condicionou o apoio à flexibilização da reforma. Os tucanos preparam propostas de alteração do texto do governo para tornar a PEC menos indigesta. A reforma da reforma, conduzida por Aécio Neves, propõe um escalonamento na regra de transição para o novo sistema para mulheres com menos de 45 anos e homens com menos de 50 anos; flexibilização do benefício assistencial pago a idosos e pessoas com deficiência que têm renda familiar per capita de até 25% do salário mínimo; diferenciar as regras da aposentadoria rural que pela proposta do governo seriam iguais às dos trabalhadores urbanos; e mudar a regra de cálculo do benefício (no texto original, o benefício integral para quem ganha acima de um salário mínimo só seria conquistada com 49 anos de contribuição). Serão incorporadas à proposta de alteração da PEC duas emendas do deputado tucano Betinho Gomes (PE), integrante da comissão especial da reforma: redução de 49 anos para 40 anos do tempo mínimo de contribuição para acesso ao benefício integral e pagamento pensão em caso de morte nunca inferior ao salário mínimo.
Além da rebelião dos aliados, o governo enfrenta as bancadas de oposição contrárias à reforma: PT, PDT, PCdoB e PSOL. No Senado, Paulo Paim (PT-RS) apelou ao presidente Temer para que retire a proposta. Ele alertou que, da forma como foi apresentada, a reforma não será aprovada, pois o texto falta com a verdade e lança os brasileiros no “inferno”, tornando praticamente impossível a aposentadoria. As mulheres são as mais prejudicadas, por terem uma realidade distinta em suas vidas e receberem salários inferiores aos dos homens. O senador gaúcho citou a crescente resistência dos parlamentares à reforma e defendeu a instalação de uma CPI para investigar para onde foi o dinheiro da seguridade. “Todos os presidentes militares respeitaram a seguridade. Por que você, Temer, vai entrar para a história como o homem que acabou com a Previdência no Brasil?”, provoca.
A perda de apoio no Congresso se deve à impopularidade crescente da reforma que retira direitos, pune o trabalho e reduz as chances de aposentadoria para a massa de trabalhadores. “Parte da população brasileira vive em um hiato de desproteção trabalhista e previdenciária. Apenas 49% da força de trabalho consegue realizar 12 contribuições à Previdência por ano. Há o problema da rotatividade no emprego, da informalidade e vários outros motivos pelos quais eles não contribuem, e essa desproteção é verificada no início e, principalmente, no fim da vida ativa. O gestor público conhece a realidade brasileira. A proposta da reforma não atende ao povo trabalhador ao exigir 49 anos de contribuição para alcançar a aposentadoria integral. Se o trabalhador quer se aposentar aos 65 anos ele necessariamente precisa iniciar sua contribuição aos 16 anos fazê-la até os 65 anos sem nenhuma interrupção é uma exigência distante da realidade brasileira”, resume a economista do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no Rio Grande do Sul, Anelise Manganelli.
No caso dos servidores, a reforma aponta para a privatização da aposentadoria complementar. A economista lembra ainda que, atualmente, com a limitação dos valores ao teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), os servidores podem optar por benefício complementar, mediante filiação a fundo de pensão (fechado) regido por entidades de natureza pública. “A PEC 287 obriga a instituição da previdência complementar e retira as exigências constitucionais de que esses benefícios sejam providos por fundos de pensão e de que estes fundos sejam organizados por entidades públicas. Com as mudanças poderão ser contratados benefícios complementares em planos abertos, oferecidos por entidades privadas, como qualquer plano de previdência complementar do sistema financeiro”.
Gustavo Raniere/ Ministério da Fazenda/ Divulgação
“Rombo” da Previdência, mito e antimarketing
As campanhas publicitárias e as ações políticas do governo com vistas à aprovação da PEC 287, que trata da reforma da Previdência, omitem e distorcem informações sobre o sistema de seguridade social e ocultam os interesses por trás do antimarketing montado para vender a ideia de “rombo na Previdência”. Informações extraídas das contas do próprio governo pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) demonstram que o alegado déficit da Previdência é resultado de uma “contabilidade perversa” porque o sistema é superavitário. “O governo faz uma contabilidade criativa, considerando somente as contribuições sobre a folha quando, segundo a Constituição, tem que somar outras fontes de financiamento”, afirma Vilson Romero, presidente da entidade – leia a íntegra da entrevista com o dirigente da Anfip.
Romero destaca que a ideia de “rombo da Previdência” não passa de marketing governamental, repetido à exaustão na cobertura da grande mídia. O governo licitou R$ 1,6 bilhão em publicidade no período de dez meses no poder. Boa parte desse montante foi para peças publicitárias para positivar as reformas. Romero exemplifica que o sistema previdenciário arrecadou R$ 700 bilhões e gastou R$ 688 bilhões em 2015, registrando, portanto, superávit de R$ 12 bilhões. Ele lembra que os gastos com a Previdência fazem parte do orçamento da chamada Seguridade Social, composta ainda pela saúde e pela assistência social e que as receitas que atendem às despesas da Seguridade vão muito além das contribuições de trabalhadores e empregadores. Incluem ainda a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), PIS/Pasep e uma parcela da arrecadação das loterias federais.
“O déficit da Previdência é um mito que não para em pé”, compara Claudir Nespolo, presidente da CUT-RS. Para o dirigente, a proposta de reforma visa unicamente “acabar com qualquer chance de o trabalhador se aposentar à medida em que as mudanças contemplam os interesses do setor financeiro e beneficiam a iniciativa privada”. A exposição de parlamentares e todo o conjunto de manifestações contra a reforma, diz Nespolo, estão surtindo efeito. “Os deputados não gostam de ser identificados como base do governo Temer e estão debandando. Nossas campanhas estão ajudando a mostrar que o governo quer passar a perna no país e no dia 15 de março vamos massificar o mito do déficit da Previdência e insistir na instalação da CPI e de uma auditoria nas contas da Previdência. O problema da Seguridade Social não são os trabalhadores, mas os grandes devedores, as renúncias, as concessões fiscais”, sinaliza.
INTERESSES PRIVADOS – Além dos requisitos desumanos impostos pela PEC, há muita confusão e muita desinformação difundidas propositalmente, acrescenta a economista do Dieese/RS. “Cada tema mobiliza poderosos interesses e envolve inúmeras possibilidades de mudanças que exigirão da sociedade difíceis escolhas estratégicas. Um exemplo é o déficit da Previdência divulgado pelo governo. Em 2015, correspondia a R$ 85 bilhões e, em 2016, a R$ 149 bilhões, o que, na verdade, é efeito de não contabilizar como receita da Previdência a contribuição do governo – uma vez que se o cálculo for realizado da forma correta, como previsto na Constituição, a Previdência é superavitária”, esclarece. Para Anelise, o caráter alarmista acaba direcionando o trabalhador a não ter interesse em contribuir com a Previdência e isso já se observa com os anúncios realizados pelo governo sobre o tal déficit, rombo e outras nomenclaturas que visam o desmonte da Previdência. A perspectiva de alteração das regras gera uma crise de confiança entre os trabalhadores, estimulando a procura pela Previdência privada: “de janeiro a outubro de 2016, o sistema privado captou R$ 42,9 bilhões em novos recursos, uma alta de 21,2% em relação a 2015”.
Também não faltam evidências que colocam a PEC 287 sob suspeita de atender a interesses do setor privado. O economista Marcelo Caetano Abi-Ramia, arquiteto e porta-voz da reforma, por exemplo, é alvo de uma denúncia na Comissão de ética Pública da Presidência devido a um conflito de interesses: ele tem cargo no Conselho de Administração da Brasilprev, empresa de previdência privada com interesses diretos na mudança de regras da Previdência.
Nomeado secretário da Previdência no Ministério da Fazenda pelo ministro Henrique Meirelles logo após a consumação do golpe de estado contra a presidente Dilma Rousseff, em maio do ano passado, Abi-Rama não foi designado por acaso como principal formulador do texto da reforma. Antes de entrar para o governo, ele prestou assessorias para simulações dos impactos fiscais das reformas da seguridade social no Brasil, Equador e Cabo Verde e foi coordenador de Previdência do Ipea a partir de 2012. Em dezembro do ano passado, deixou escapar em uma entrevista à Folha de São Paulo a sua verve privatista: “as mulheres custam mais para a Previdência porque vivem mais”.
Foto: Erasmo Salomão/ Ministério da Fazenda/ Divulgação
Imagem: Reprodução
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No vídeo didático Querem que você morra sem se aposentar, editado pelo MTST e Mídia Ninja, a locução do ator Wagner Moura resume: “o governo Temer enviou para o Congresso um projeto que interessa apenas aos donos do dinheiro, que ataca duramente os direitos dos trabalhadores. Eles querem acabar com o direito à aposentadoria para bilhões de brasileiros. E essa proposta vem logo de Michel Temer, que se aposentou aos 55 anos, ganhando mais de R$ 30 mil. A maior parte dos deputados e senadores que podem aprová-la, também se aposentam cedo e cheios de privilégios”.
Empresas devem R$ 426 bilhões ao INSS
Também diz muito sobre quem se beneficiaria com uma mudança nas regras, caso a reforma passe no Congresso, o montante de dívidas do setor privado com o INSS – informações que não constam da PEC 287. Somente em 2015, as dívidas de empresas com a Previdência somaram R$ 426 bilhões devido à inadimplência e à sonegação fiscal, segundo dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco). Além dos sonegadores, há empresas que usufruem de descontos no pagamento do INSS desde 2011, quando foi instituído por um programa emergencial criado por pressão do empresariado. O Brasil Melhor devia ter durado três anos, mas acabou mantido. Esses descontos retiraram R$ 25 bilhões da receita da Previdência em 2016. Também há as empresas que não precisam contribuir integralmente para a Previdência, como os microempreendedores individuais, entidades filantrópicas e as optantes pelo Simples. Segundo a Unafisco, em 2016 as desonerações sangraram as receitas da Previdência em R$ 55 bilhões.
Para pagar a dívida pública, o governo retira recursos da Seguridade Social (rubrica que inclui Previdência Social, o Sistema Único de Saúde, o Bolsa Família e outras políticas) através de um artifício, a Desvinculação de Receitas da União (DRU). Em 2015 foram R$ 63 bilhões. A partir de 2017, esse valor será maior devido a uma emenda à Constituição que aumentou a DRU para 30%.
A dívida de empresas com o INSS, R$ 426 bilhões, representa três vezes o valor do alegado déficit da Previdência em 2016. As informações estão em um relatório que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) realizou em março do ano passado. “O governo fala muito de déficit na Previdência, mas não leva em conta que o problema da inadimplência e do não repasse das contribuições previdenciárias ajudam a aumentá-lo. As contribuições não pagas ou questionadas na Justiça deveriam ser consideradas”, afirmou Achilles Frias, presidente do Sindicado dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), ao site Repórter Brasil.
São dívidas concentradas em apenas algumas empresas que estão na ativa: 3% delas respondem por mais de 63% da dívida previdenciária. A PGFN classificou 32.224 empresas que mais devem e concluiu que somente 18% foram extintas. As outras 82% estão ativa.
Na lista de empresas devedoras da Previdência há gigantes como Bradesco, Caixa Econômica Federal, Marfrig, JBS (Friboi e Swift) e Vale. Juntas, devem R$ 3,9 bilhões em valores de dezembro de 2016. Apesar disso, somente 40% das dívidas poderiam ser recuperadas, já que o levantamento aponta companhias falidas, em processo de falência, sonegadores históricos ou empresas-laranjas. Entre as massas falidas constam a Varig e a Vasp. Segundo a Procuradoria da Fazenda, do montante da dívida, 4% têm alta probabilidade de recuperação; 38% têm média chance e 30% chances remotas de serem cobradas. Em 2016, a PGFN resgatou R$ 4,15 bilhões dos créditos, o que equivale a apenas 0,9% do total da dívida previdenciária.
O estoque da dívida ativa previdenciária atingiu o montante de R$ 432,9 bilhões em janeiro de 2017 e continua crescendo a um ritmo de aproximadamente 15% ao ano, conforme atualização de 9 de março pela PGFN. “Por outro lado, quando se analisa os cem maiores devedores com débitos exigíveis, ou seja, aqueles que não estão parcelados, garantidos ou suspensos por decisão judicial, esse valor cai para R$ 33 bilhões”, pondera Anelise Manganelli. “Mesmo sendo uma pequena parte, esse montante de débito representa o suficiente para pagar todo o valor contabilizado do Bolsa Família e outras transferências e ainda sobrariam mais de R$ 6 bilhões”, conclui a economista do Dieese/RS.