O abismo da desigualdade
Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação
Que o modelo brasileiro de tributação de renda é injusto muitos sabem. E que é altamente regressivo e aprofunda a desigualdade social, poucos duvidam. Revelações da recente disponibilização de dados do Imposto de Renda em 2014/ 2015, porém, mostram que os muito ricos pagam pouco imposto tanto na proporção da renda, quanto na comparação com o resto do mundo e ainda no cotejo com a alta classe média do país.
Os novos estudos desvendam, do mesmo modo, que a desigualdade de renda é maior e mais estável do que se imaginava antes apenas com base nas pesquisas domiciliares que subestimam os ganhos mais altos.
A nação é uma das poucas no mundo que chegou ao ponto de instituir, em 1996, isenções de lucros e dividendos, copiando a pequena Estônia e alguns países do Leste Europeu. Isto pode ser ilustrado exemplarmente pelo caso empresário e delator da JBS, Joesley Batista que, segundo a Receita Federal, pagou apenas 0,3% de imposto sobre a renda anual declarada de R$ 105 milhões.
Assim, o nível de desigualdade e de concentração de renda no topo, no Brasil, é um dos maiores do mundo. “É algo abissal, maior até que a África do Sul com toda sua herança da desigualdade do apartheid”, afirmou o doutor em Economia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Sérgio Gobetti, localizando as raízes da desigualdade preponderantemente na ação política das elites econômicas na América Latina.
Mas tal distorção – reconfirmada na sua apresentação durante o debate Tributação e Desigualdade no Século XXI – O caso brasileiro, realizado no Plenarinho da Assembleia Legislativa, no dia 20 de novembro – preocupa somente os desiguais? Assusta apenas a maioria dos brasileiros que perde renda e direitos no cenário de profunda crise política, econômica e social no Brasil, em que um pequeno grupo de milionários e bilionários segue aumentando sua gorda fatia do PIB nacional?
Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação
O que Gobetti examina, no sentido inverso, é que há um nascente entendimento que tanto a tributação do capital quanto o modelo progressivo desempenham um papel importante não só para a redução da desigualdade, mas também para a eficiência econômica e mesmo para a promoção da dita meritocracia.
“Afinal de contas, como garantir uma competição justa e premiar os mais capazes se alguns partem de uma situação muito mais privilegiada como o filho de um Batista”, questionou o economista, apontando revisões feitas por economistas liberais que são referências mundiais, como os agraciados com o Prêmio Nobel, James Mirrlees e Joseph Stiglitz.
“É certo que a renda e a riqueza estão pior distribuídas do que estavam há 30 anos e raramente entende-se corretamente a dimensão dramática desta mudança, principalmente para a formulação das políticas públicas em geral e da política tributária em particular”, assinalou o palestrante, aludindo a ponderações em tom de mea culpa de três décadas depois do britânico Mirrlees.
Gobetti, entretanto, sustentou que o modelo de tributação de renda do Brasil foi concebido sob influência de postulados teóricos dos anos 70 e 80 (às épocas neoliberais de Ronald Reagan nos EUA e Margarete Tatcher na Inglaterra), mas que, superados e ultrapassados, estão sendo revisados atualmente sob a condescendência desses ilustres defensores do referencial neoclássico ou modelo ortodoxo da chamada “tributação ótima”.
É que, como comprovam estudos divulgados em setembro último por Stiglitz, segundo Gobetti, crescem as evidências de que a própria desigualdade pode afetar a produtividade. Torna-se, assim, ainda mais convincente considerar o caso de um imposto progressivo sobre a renda do capital e, em particular, taxar o rendimento do que se identifica como ‘capital dos capitalistas’ a uma taxa elevada.
“Há, com tais revisões de teoremas passados, uma luz no final do túnel”, espera Gobetti.
Paraíso fiscal com cara de século 18
Foto: Diogo Baigorra/ Divulgação
O outro debatedor, doutor em economia do Instituto Justiça Fiscal (IJF) Marcelo Lettieri afirmou que a desigualdade tributária brasileira “está escancarada” na cobrança do imposto de renda das pessoas físicas no país. Em suas palavras, a onda neoliberal desprezou a distribuição de renda para privilegiar a produtividade, provocando um retrocesso aos níveis de desigualdade do século 18. “Os ricos continuam fugindo da tributação no nosso país e, neste sentido, o Brasil é um paraíso fiscal”, disse ele, destacando que a tributação concentrada na renda do trabalho corresponde à paralisação referente à determinação constitucional de 1988 acerca da taxação das grandes fortunas. “Isto não avança nunca”, lamentou.
Auditor da Receita Federal, Lettieri celebra a divulgação de dados do imposto de renda obtida devido às fortes pressões da sociedade e dos pesquisadores em busca de subsídios confiáveis para diagnosticar a realidade tributária.
Graças à Lei de Acesso à Informação, revogaram-se impressões que deram lugar a informes concretos do aumento da injustiça dos impostos cobrados dos mais ricos e dos mais pobres com voracidade discriminatória. Conquistou-se, assim, o que ele chama de transparência dos dados públicos.
“Como mais de 50% da nossa carga tributária incide sobre o consumo, cobrado igual para os de cima e os de baixo, obviamente o tributo pesa muito mais sobre os mais pobres”, exemplifica. Sabe-se agora que cerca de 31% da renda dos brasileiros é constituída por valores isentos e não tributáveis. Ou seja, significa que uma fortuna de R$ 737 bilhões está imune à tributação.
Segundo ele, os brasileiros mais ricos, que declaram ganhar acima de 320 salários mínimos mensais, pagam imposto apenas sobre 9% dos rendimentos. Isto é, os outros 91% ficam isentos. Desse alto salário estimado em R$ 320 mil, em média, a fatia de R$ 210 mil não é alcançada pelas garras do leão, pois está protegida pela isenção tributária da distribuição de lucros e dividendos.
O retrato traçado pela Receita Federal mostra que a injustiça tributária repercute até no gênero, e de forma duplicada. “A mulher é mais tributada por receber salários menores e ainda compostos por rendimentos mais tributáveis”, salienta Lettieri.
A desigualdade estende-se também às regiões brasileiras. Por que o Amapá é um estado mais tributado que São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul? A resposta é singela: nos estados do Sul, com mais isenções e rendas não tributáveis, vive a gente mais rica do Brasil.
O debate, com mediação do professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Antonio David Cattani, ainda contou com a participação da diretora do IJF, Maria Regina Paica Duarte e da professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs, Rosa Chieza. Apoiadora do evento, juntamente com o Conselho Regional de Economia (Corecon), a Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs e o Comitê em Defesa da Democracia, a Assembleia Legislativa foi representada pelo deputado Adão Villaverde.
O debate foi promovido pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF), uma associação civil sem fins lucrativos com sede em Porto Alegre e atuação nacional, que tem por finalidade, conforme sua diretora Maria Regina, “o aperfeiçoamento do sistema fiscal com vistas a torná-lo mais justo e capaz de contribuir para a redução das desigualdades sociais e regionais”.