CULTURA

Grupo Galpão comemora 42 anos de teatro coletivo, popular e de rua

ENTREVISTA | GRUPO GALPÃO
Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 19 de setembro de 2024
Grupo Galpão comemora 42 anos de teatro coletivo, popular e de rua

Foto: Mateus Lustosa/ Divulgação

Eduardo Moreira: “é curioso acabar percebendo que a Rússia de Tchekhov ou a Sicília de Pirandello têm muita coisa em comum com Minas. Essas camadas acabam revelando uma ancestralidade profunda e universal e acho que o trabalho do Galpão toca nisso”

Foto: Mateus Lustosa/ Divulgação

Criado por cinco atores, em novembro de 1982, a partir do espetáculo A alma boa de Setsuan, montagem conduzida por diretores do Teatro Livre de Munique, da Alemanha, o Grupo Galpão aproveitou essa rica experiência para se lançar numa proposta de construção de um teatro de grupo, de pesquisa, e com raízes profundamente populares – ligada à tradição do teatro popular e de rua. São 12 integrantes no elenco: Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara. Nessas mais de quatro décadas, foram 26 espetáculos montados e apresentados para 1,9 milhão de espectadores. O grupo conquistou 100 prêmios do teatro nacional e percorreu 280 municípios com mais de 3 mil exibições, incursionou por 19 países e participou de 172 festivais nacionais e 67 internacionais. Desenvolve um teatro que alia rigor, pesquisa e investigação de linguagens, com montagens de peças com grande poder de comunicação com o público. São atores com ampla vivência nas artes cênicas, dirigidos por nomes como Gabriel Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Yara de Novaes e Marcio Abreu e que já dirigiram os próprios espetáculos do Grupo. Assim, o Galpão formou sua linguagem artística a partir desses encontros diversos, criando um teatro que dialoga com o popular e o erudito, a tradição e a contemporaneidade, o teatro de rua e o palco, o universal e o regional brasileiro. É sobre essa vivência que Inês Peixoto, Lydia Del Picchia e Eduardo Moreira, integrantes do Grupo Galpão, conversaram com o Extra Classe nesta entrevista – que assinala o 19 de setembro, Dia Nacional do Teatro.

EC – Em novembro de 2024, o Grupo Galpão comemora 42 anos de existência, com dezenas de montagens, reconhecimento do público e da crítica, além de ter amealhado os mais importantes prêmios teatrais do país. O grupo já parou para fazer um balanço dessas mais de quatro décadas de atuação? A que se deve essa longevidade?
Inês Peixoto – Sim, estamos comemorando 42 anos de teatro juntos! Quando paramos para pensar, é realmente uma vida artística coletiva longeva. Desde o início do grupo, alguns fundamentos foram muito importantes, como a busca de um trabalho que tivesse continuidade, pesquisa, experimentação e compartilhamento. A conquista de um espaço de circulação de espetáculos que conseguisse manter economicamente os atores. A compra de uma sede que conseguisse ser o chão para os processos criativos, acolher cenários, figurinos e escritório de produção. E com 10 anos de existência, o grupo tinha alcançado estes objetivos. Já tinha uma sede própria, circulava pelo Brasil e pelo mundo e todos viviam do teatro e para o teatro. Acredito que essa longevidade se deve ao trabalho muito sério de todos e, por sermos um grupo de atores sem a figura fixa de um diretor. O contato criativo com diferentes diretores é muito importante para manter a chama acesa. Alternando direções internas com esses encontros com diretores convidados, nos lançamos em processos criativos diversos, que nos trazem situações desafiadoras e instigantes. Nos mantemos vivos pelo desejo de continuar fazendo e investigando essa coisa linda chamada teatro.

EC – O último e mais recente espetáculo, Cabaré Coragem, apresenta uma trupe “envelhecida e decadente que, apesar das intempéries e dos revezes, reafirma a arte como lugar de identidade e permanência”. O que há de permanente e impermanente na identidade e na arte do Grupo Galpão?
Lydia Del Picchia – Na verdade, acho que os dois lados são complementares. O Galpão é um coletivo que trabalha há tanto tempo junto, estamos em constante aprendizado, nossos projetos se formam antes mesmo de pensarmos neles, como alguma questão que surgiu no processo anterior e nos deixou com vontade de aprofundar, de continuar uma pesquisa, uma inquietação, de avançar.  Acho que isso é a nossa permanência: a teimosia, a curiosidade, o desejo de conhecer outras maneiras de trabalhar, outras pessoas, outros diretores. E o respeito ao trabalho, ao grupo e a esse coletivo que nos forma. E é isso que constrói também a nossa impermanência: o fazer diferente a cada vez, pois apesar de termos uma identidade muito forte, não queremos repetir fórmulas, então passeamos sempre entre o drama, a farsa, o erudito, o popular, o palco, a rua, textos clássicos e dramaturgias próprias, buscando sempre novos olhares sobre o nosso trabalho.

EC – Gostaria que vocês falassem um pouco sobre a identidade e a estética das montagens a partir daquilo que o grupo acredita; ou seja, quais características lhes definem enquanto coletivo de teatro e o porquê dessas escolhas?
Inês – A identidade e a estética têm de vir de dentro, não é? Assim como tudo. A raiz nasce na sala de ensaio. Daí, crescem as palavras, o corpo, as imagens, o espaço, as roupas, as cores, a música… São tantas camadas, mas elas têm de estar conectadas com a origem do trabalho.  Seja clássico, contemporâneo, popular, erudito, performático. Enfim, fazer sentido para aquilo que a obra vai pedindo. Nossos parceiros acompanham os processos criativos ativamente. Como trabalhamos muito a partir de workshops, que trazem propostas feitas pelos atores para as etapas de criação, esses parceiros sempre estão presentes para se conectarem o mais profundamente possível com o que está acontecendo. O Galpão trabalha diversas linguagens, mas sempre tentamos realizar espetáculos que comuniquem muito com a plateia. A mistura de erudito com popular, utilização da música executada em cena, alternância entre palco e rua, são características do nosso teatro. Talvez, isso nos defina um pouco dentro do panorama de diferentes montagens que compõem a nossa trajetória.

EC – Ainda falando sobre linguagem e estética – mas acrescentando também o texto teatral –, há algo não realizado pelo grupo e que esteja no radar de uma pesquisa e montagem futura?
Inês – Nossa, sempre! Sempre queremos experimentar um universo não visitado. Praticamos uma certa alternância em processos de criação de dramaturgia e montagens de textos clássicos. Descobrir um novo projeto é ao mesmo tempo instigante e difícil. Somos 12 atores e começamos a pensar o novo projeto após a estreia de cada espetáculo. Cabaré Coragem estreou em 2023 e começamos a pensar.  São muitas reuniões, muitas conversas, até decidirmos. Mas, sim! Estamos com um projeto sendo encaminhado com direção de Rodrigo Portela. Em breve, teremos mais notícias…

EC – Vocês se apresentam como um grupo “sem fórmulas e sem métodos definidos”. Podem falar um pouco sobre isso?
Lydia – O Galpão é um grupo de atores, que trabalha há 42 anos sem um diretor fixo. Isso nos possibilita entrar em contato com abordagens e métodos muito diferentes a cada montagem, mergulhar em universos distintos, como por exemplo A Rua da Amargura (Gabriel Vilella – 1994), Partido (Cacá Carvalho – 1999), O Inspetor Geral (Paulo José – 2003), Nós (Marcio Abreu – 2016) e agora o nosso Cabaré Coragem (Julio Maciel – 2023). Não é possível se utilizar de um mesmo método para criar todos esses espetáculos, nascidos de parcerias com cabeças pensantes tão diversas. A gente precisa buscar maneiras novas para caminhar a cada montagem. E isso é maravilhoso, pois abre muitas janelas de possibilidades.

Grupo Galpão comemora 42 anos de teatro coletivo, popular e de rua

Foto: Mateus Lustosa/ Divulgação

Lydia Del Picchia: “O Galpão é um grupo de atores, que trabalha há 42 anos sem um diretor fixo. Isso nos possibilita entrar em contato com abordagens e métodos muito diferentes a cada montagem, mergulhar em universos distintos”

Foto: Mateus Lustosa/ Divulgação

EC – Se pudessem eleger apenas dois momentos marcantes da trajetória do grupo, o mais difícil e o mais significativo – justificando essas escolhas –, quais seriam?
Eduardo Moreira – O mais difícil está relacionado com um fracasso que, na verdade, significou um enorme processo de aprendizagem. Nesse sentido, os erros também são importantes que você tem a capacidade de superá-los. Foi em 1985 quando o Galpão montou o espetáculo Arlequim, servidor de dois amos, inspirado na peça homônima de Carlo Goldoni. A montagem que pretendia ser uma adaptação aos nossos tempos da peça teve todos os vícios e equívocos de uma direção coletiva mal conduzida. O fiasco de público completou um quadro que, artisticamente não os satisfez. O resultado foi que o grupo de nove integrantes ficou reduzido a quatro. Mas, pouco a pouco, fomos nos reerguendo e a experiência acabou sendo bem valiosa. O mais significativo foi a nossa temporada de duas semanas no Globe Theater, de Londres, com o espetáculo Romeu e Julieta, dirigido por Gabriel Villela. Foi um estrondoso sucesso, com os ingleses nos dizendo entusiasmados que havíamos redescoberto a veia popular e cômica do Bardo. Foi uma espécie de coroamento de quase vinte anos de árduo e permanente trabalho de aprendizado e de superação artística.

EC – Em muitas montagens percebemos a importância dada a diferentes recursos artísticos, como o domínio do canto e de instrumentos musicais – isso sem falarmos no domínio do corpo. Como se dá essa ampla formação – que é contínua – e o preparo dos integrantes a cada novo espetáculo?
Lydia – Acredito que isso acontece de maneira natural, porque somos um grupo que tem continuidade no trabalho. Então, projetos como estudar música e instrumentos, que requerem tempo, são planejados dentro da nossa agenda diária de trabalho, e não só para uma próxima montagem. Claro que os espetáculos têm necessidades específicas, como novos arranjos, muitas vezes nos arriscamos em novos instrumentos. Mas temos uma equipe musical que trabalha conosco há bastante tempo, tanto na manutenção, como nas novas criações: Babaya, Ernani Maletta, e Luiz Rocha estão sempre por perto para nos socorrer. No que diz respeito ao trabalho físico, é semelhante, pois já passamos pela esgrima, aeróbica, sapateado, dança de salão, contato, tudo que for necessário para entendermos os corpos de uma nova criação ou linguagem, mas também temos a Waneska (gyrothonic) e a Andreia Mourão (fisioterapia), que nos acompanham e orientam sempre – e cada vez mais. E, mais uma vez, a dedicação e inquietação do elenco, que está sempre disposto a visitar lugares desconhecidos.

EC – O Brasil é um país continental, de culturas diversas e muito distintas. Vocês são um grupo brasileiro responsável por ter montado os clássicos da dramaturgia mundial – embora não só. São também e acima de tudo um grupo mineiro, extremamente ligado às suas raízes e à sua história. Em que medida os “outros brasis” são incorporados nas montagens do Galpão e que ajudam a torná-lo um grupo de linguagem universal?
Eduardo – Somos certamente o grupo de teatro que mais viaja pelo Brasil e não só o Brasil dos grandes centros, mas o Brasil profundo que está alijado das rotas dos circuitos culturais. O encontro com esse tipo de público evidentemente reflete no nosso trabalho. O trabalho com uma diversidade de estilos e gêneros teatrais também nos ensina muito e nos obriga a ter muito jogo de cintura para responder aos desafios. E é curioso acabar percebendo que a Rússia de Tchekhov ou a Sicília de Pirandello têm muita coisa em comum com Minas. Essas camadas acabam revelando uma ancestralidade profunda e universal e acho que o trabalho do Galpão toca nisso.

EC – Como vocês avaliam as políticas públicas para o teatro no Brasil? O que ainda precisa ser feito?
Eduardo – O teatro precisa romper com a bolha e encontrar o público mais amplo o possível. Nessa direção é que precisa ser pensada qualquer tipo de política pública mais ampla. Não se trata de uma tarefa fácil, mas ela precisa ser perseguida. Essa é uma tarefa não só de políticas públicas, mas também e principalmente de nós, artistas.

EC – O que os jovens fundadores do Galpão diriam aos integrantes do grupo 42 anos depois e o que estes mesmos diriam àqueles jovens artistas em início de carreira?
Eduardo – É curioso pensar que as bases e os princípios que norteiam o trabalho artístico do Galpão foram consolidados na formação do grupo e continuam sendo mantidas até hoje. O grupo foi marcado por um trabalho calcado no coletivo, no grupo mais que nas individualidades e sempre se pautou pela necessidade da experimentação e da pesquisa, num permanente processo de aprendizado e que teve como norte essencial a sobrevivência profissional e o encontro com um teatro feito para e com o público. Por mais que os mais de quarenta anos de trabalho conjunto tenham nos ensinado e nos feito repensar nossa trajetória artística, esses princípios foram consolidados desde o princípio da formação do Galpão.

EC – O que os espectadores podem esperar do Galpão para os próximos anos?
Eduardo  – Muito trabalho e o desejo de fazer um teatro cada vez desafiador e que responda aos anseios, perplexidades e complexidade do mundo e da época em que vivemos. Em síntese, a busca por um teatro vivo e pulsante em permanente estado de troca e de comunicação com o público.

Comentários