EDUCAÇÃO

A bolha da mercantilização: eficiência privada com recursos públicos

Por Gilson Camargo / Publicado em 20 de dezembro de 2021

Foto: Acervo Pessoal

“Os professores sofrem um longo histórico de vilipêndio e desvalorização: exige-se demais da profissão sem lhes dar condições minimamente adequadas ao seu exercício. A financeirização é extremamente perniciosa para essa categoria”

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Graduado em economia, com mestrado e doutorado em Educação (Unicamp), Lalo Watanabe Minto é professor da Faculdade de Educação e coordenador da Linha de Pesquisa Trabalho e Educação e o Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (Gepecs) na pós-graduação da Unicamp. É autor dos livros As reformas do ensino superior no Brasil: o público e o privado em questão (Ed. Autores Associados, 2006, 336 p.) e Educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil (Ed. Outras Expressões, 2014, 398 p.). Nesta entrevista ao Extra Classe, Watanabe avalia os impactos que a crescente mercantilização do ensino e o apelo por novas tecnologias que move os grupos educacionais exercem sobre o trabalho docente. Segundo ele, o setor privado se apropria cada vez mais do orçamento da educação pública e jamais cresceu com as próprias pernas. “O discurso da eficiência privada não resiste a um período letivo. A incorporação crescente da lógica e do interesse privado nas políticas educacionais foi decisivo para chegarmos onde estamos hoje”, aponta.

Extra Classe – Qual a relação entre o crescimento da educação superior nos anos 1990 e a recente e desenfreada expansão do mercado de educação privada? Como vê esta expansão?
Lalo Watanabe Minto – Vejo com bastante preocupação. É um processo que se tornou possível após décadas de construção, embora não se deva desconsiderar as especificidades de cada período. Começou, a rigor, com as reformas da ditadura militar, com ênfase na educação superior. Nos anos 1990, houve uma nova ampliação da privatização e, desde o final daquela década, o processo foi ganhando essa conotação que alguns estudiosos preferem chamar de “mercantilização”. Mais recentemente, de “financeirização”. Tudo isso quer dizer que são processos já muito “estruturados” na educação brasileira. O lobby que esses setores conseguem impor às políticas educacionais é grande e tem encontrado, nos sucessivos governos brasileiros, bastante amparo. É uma expansão com efeitos bastantes deletérios sobre a educação e suas finalidades.

EC – Como atuam esses grupos?
Lalo Watanabe – A chegada dessas instituições de ensino, por meio dos grandes conglomerados à Bolsa de Valores, é um processo que não está desvinculado da política educacional como um todo. Por um lado, essa é uma contradição da própria política social feita num Estado capitalista, que sempre implica mobilizar recursos estatais de grande volume para realizar a oferta do ensino para milhões de pessoas. Recursos que, indiretamente, acabam por beneficiar o interesse privado. Mas o que destacaria é o fato de que a política não se restringiu a isso.

EC – Por quê?
Lalo Watanabe – O setor privado não chegou ao ponto de se “financeirizar” por sua conta e risco. O discurso da eficiência privada não resiste a um período letivo. A incorporação crescente da lógica e do interesse privado nas políticas educacionais foi decisivo para chegarmos onde estamos hoje. Estou me referindo, principalmente, aos recursos estatais que são transferidos para o privado, na forma de parcerias, convênios, terceirizações, compras diretas, bolsas, financiamentos diversos, etc. e que passam a compor parcela essencial da rentabilidade desses grupos. Recursos estatais, com regularidade garantida por lei, que por sua vez, funcionam como plataforma para esses grupos venderem ações nos mercados financeiros, cada vez mais convertendo suas atividades em atividade financeiras, com as finalidades educativas sendo cada vez mais subordinadas a essa finalidade maior da rentabilidade. Outra forma de ação característica desses grupos – novamente, com maior avanço inicial na educação superior – é a da aquisição de outras instituições menores. Isso conforma um processo de centralização do capital na educação. No plano geral da política de educação, uma das formas históricas de benefício ao setor privado sempre foi a compra de materiais didáticos. Hoje isso é apenas parte disso, embora continue a ser importante. O que o setor privado vende para a educação estatal envolve grandes pacotes, que pode incluir até a elaboração da própria política, como vimos ocorrer em grande medida na elaboração da BNCC.

Foto: Yduqs/ Reprodução

“Há pouquíssimo controle público sobre o que se faz nas instituições”

Foto: Yduqs/ Reprodução

EC – A lógica mercantilista é compatível com a qualidade do ensino?
Lalo Watanabe – Penso que não é compatível com a qualidade do ensino que interessa à maioria das pessoas, especialmente à classe trabalhadora. E como “qualidade” é sempre referente a alguma coisa, nesse caso, é uma educação cada vez mais subordinada aos objetivos que a lógica mercantilista impõe. Rentabilizar, de forma crescente, os capitais investidos nesses grupos, portanto, passa a ser mais importante do que a qualidade do ensino e outras atividades que oferecem.

EC – Quem perde com isso?
Lalo Watanabe – Nesse sentido, quem acaba pagando a conta são os envolvidos no processo. No caso da educação básica, as famílias que compram esse ensino, de certa forma, acreditando na superioridade do privado em relação à escola pública, acabam por receber cada vez menos qualidade, pois o setor fica pressionado por atingir as suas metas de rentabilidade. No caso da educação superior privada, que não possui o mesmo prestígio que as escolas de educação básica, o estrago pode ser ainda maior, pois neste nível as práticas deletérias também são mais “liberadas”. Há pouquíssimo controle público sobre o que se faz nas instituições, além do que elas desenvolveram formas de driblar os escassos instrumentos de avaliação existentes, podendo se valer de posições generosas nos rankings.

EC – Por que o mercado desqualifica a escola básica pública, mas não usa a mesma lógica em relação à educação superior?
Lalo Watanabe – A própria noção de qualidade que se tem no senso comum, é algo que revela a predominância da lógica privada na educação brasileira. A desqualificação sistemática de tudo o que se pretende “público” opera um grande favor ao privado. Na educação não é diferente: mesmo não sendo generalizável, ainda vemos muito forte a noção de que a escola básica privada é boa, ao passo que a pública/estatal seria ruim, de baixa qualidade, lugar de violência e de perspectivas rebaixadas. No caso do ensino superior, em que a superioridade das públicas/estatais é notória, ao contrário, não se põe a ênfase na qualidade, mas sim na tentativa de desqualificar tais instituições como sendo lugar de baderna, balbúrdia e coisas do tipo. As privadas, por sua vez, compensariam as suas fragilidades por serem mais “próximas ao mercado”, mais flexíveis e/ou acessíveis. Se quisermos pegar outro exemplo de como pode ser ruim esse preconceito para com o caráter público de certas políticas sociais, podemos olhar para o caso da saúde e tudo o que tem ocorrido com a pandemia.

EC – Como a mercantilização impacta os professores?
Lalo Watanabe – É preciso lembrar que a categoria docente, no Brasil, tem sofrido um longo histórico de vilipêndio e desvalorização. Florestan Fernandes se referiu a isso, certa vez, como um processo de “brutalização cultural”: exige-se demasiadamente da profissão sem lhe dar condições minimamente adequadas ao seu exercício. A tendência de privatização, especialmente nessa fase da financeirização, é extremamente perniciosa para essa categoria. São vários os processos pelos quais isso ocorre, além daquela já conhecida necessidade de a empresa privada sempre buscar minimizar os custos com a força de trabalho, ao passo que a pressiona constantemente para ser mais produtiva.

EC – Como o forte apelo por novas tecnologias em sala de aula atinge os docentes?
Lalo Watanabe – Há um processo de adensamento do uso de tecnologias e, até mesmo, de substituição do trabalho docente. Em 2020 ficou conhecido o caso da instituição que usava “robôs” para corrigir trabalhos feitos pelos estudantes sem o conhecimento destes. Ora, estamos falando de uma clara perda de autonomia do trabalho docente, pois avaliar o aprendizado do estudante não é algo marginal, mas sim central da docência. E não é só nesse sentido que ocorre a substituição, que também envolve a elaboração dos planos de aula, do material didático e das próprias finalidades do ensino. Esse adensamento tecnológico, por suposto, é uma medida que visa reduzir custos e potencializar a lucratividade.

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“O adensamento tecnológico é uma medida que visa reduzir custos e potencializar a lucratividade”

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EC – A lógica mercantilista lida mal com os direitos trabalhistas?
Lalo Watanabe – A flexibilização dos regimes de trabalho, embalada pela reforma trabalhista de 2017, mas também por sua conjunção com esse processo de substituição tecnológica. Hoje, parcela cada vez maior do corpo docente da educação privada exerce suas atividades em regimes de trabalho precários, por vezes sem quaisquer direitos ou garantias, além da tendência também crescente de pejotização desses profissionais. Ou seja, para reduzir custos, as empresas educacionais criam condições para que os seus docentes vendam a sua força de trabalho na condição de microempresas, como “microempreendedores”. A ideologia presta grande serviço nesse sentido, pois atrela tal condição a falsas promessas de independência e controle sobre o trabalho, por exemplo.

EC – No ensino privado, há muitas queixas sobre a degradação do ambiente de trabalho relacionada ao estresse e ao adoecimento das professoras e professores.
Lalo Watanabe – Uma terceira forma de impacto, eu diria, é a da degradação das condições de trabalho de modo geral. Novamente, isso precisa ser observado em conexão com os pontos anteriores. A expansão das atividades remotas, educação a distância, ensino híbrido e outras variantes, têm produzido consequências para o trabalho, algo que testemunhamos em larga escala com a pandemia. Um docente que trabalha em casa modifica completamente a sua rotina, vê-se defrontado com novas demandas e dificuldades, entre outras coisas que, por serem garantias básicas do local de trabalho, deveriam ser garantidas pelo/a empregador/a.

EC – Ou seja, a pandemia agravou a sobrecarga de trabalho.
Lalo Watanabe – A quantidade de trabalho também pode se ampliar, pois novas demandas se somam às já existentes. Por exemplo, uma instituição cria uma plataforma virtual de apoio ao ensino, obrigando as/os professoras/es a trabalharem também em horários adicionais aos que não estão na instituição. Poderia citar, ainda, a relação com os meios de trabalho que, não raro, deixam de ser custeados pelas instituições e passam a subtrair parte dos salários docentes. Sabemos que isso já ocorre na educação em geral, não sendo uma especificidade do período mais recente, mas há uma diferença fundamental: quando um docente que trabalha numa escola de forma presencial, opta por não custear ele próprio o que a instituição não lhe oferece, o processo de ensino pode acontecer da mesma forma. Por vezes, cria-se certa dificuldade ou perde-se em potencial. No caso de tudo o que envolve as tecnologias digitais, não custear os meios implica que a atividade não pode ocorrer. Torna-se, assim, um gasto obrigatório, a corroer ainda mais os parcos ganhos médios da categoria.

EC – Por que há um esvaziamento da docência?
Lalo Watanabe – Temos visto um processo de esvaziamento geral da profissão docente, o que se reflete também nos cursos de formação de professores/as. Estes, além de já se referirem a áreas desvalorizadas, vão se tornando cada vez mais precários, a ponto de algumas instituições perderem até o pudor de fazer propaganda das licenciaturas como uma espécie de “bico”, uma oportunidade para complementar renda. Isso é facilitado pela legislação frouxa do setor, que permite que essas instituições precárias ofertem formação complementar em poucos meses, com aulas aos finais de semana e coisas do tipo. O processo é cumulativo.

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