Foto: Igor Sperotto/Arquivo Extra Classe Foto: Igor Sperotto/Arquivo Extra Classe
Extra Classe – A indicação do ministro licenciado da Justiça, Alexandre de Moraes, para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF) tem gerado polêmica e protestos nos meios acadêmicos e jurídicos. O que se pode esperar da chegada de Moraes ao STF?
Lenio Streck – Lembro o que disse o personagem Conselheiro Acácio, do romance Primo Basílio, de Eça de Queiroz: “as consequências vêm sempre depois”. É uma frase que resume, ironicamente, a fenomenologia que envolve a indicação, mormente pelos seus componentes políticos, como a blindagem que figuras como os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Edison Lobão (PMDB-MA) estão fazendo para proteger o indicado.
EC – Uma série de motivos é atribuída a escolha de Alexandre de Moraes por parte de Michel Temer: agrado ao PSDB, movimento para encerrar a Lava Jato, ter na corte um representante de posições menos progressistas. O senhor acrescentaria outros? Quais?
Streck – Não acrescentaria outros motivos. Penso que o governo Temer foi, paradoxalmente, coerente. Mas não se trata de ter posições progressistas ou conservadoras. Isso no Brasil, hoje, é impossível de ser identificado. No STF, o ministro Luís Roberto Barroso é progressista ou conservador? Ser ativista é ser progressista? Por exemplo: votar pela descriminalização do aborto pode ser progressista. Entretanto, o fato de o STF se arvorar o direito de legislar já foge de qualquer posição democrática. Para mim, progressista é quem segue a Constituição e quem defende teses não-ativistas; conservador é quem acha que posições morais podem valer mais do que a lei e a Constituição Federal. Por isso, sabe-se lá como será a trajetória do novo ministro.
EC – Qual sua avaliação sobre a atuação de Moraes como jurista? E à frente do Ministério da Justiça?
Streck – O indicado tem uma trajetória como jurista que simplifica a análise jurídica. Metade ou mais da comunidade jurídica adora isso. Moraes foi o precursor de manuais usados em concursos públicos pós-Constituição. Depois ele passou a ser imitado por dezenas de escritores. Muitos aperfeiçoaram a fórmula; muitíssimos pioraram a fórmula. Veja: Moraes é um dos juristas mais citados e utilizados em concursos públicos. É citado pelos tribunais. Ele representa o protótipo do jurista médio brasileiro. Sua atuação no Ministério da Justiça? Mostrou-se insensível à crise penitenciária. Não atendeu ao pedido de Roraima. Não deu atenção ao aviso de que poderia haver conflitos de facções. E eles aconteceram no Amazonas e no Rio Grande do Norte. Depois houve a crise no Espirito Santo. O caos é autoexplicavel.
EC – A sabatina prévia de Moraes, realizada com um grupo de senadores em um barco em Brasília, antes da sabatina no Senado, é ética? E legal?
Streck – Vamos a Ronald Dworkin: é a metáfora da piscina. O nadador, em sua raia, deve nadar bem e não passar a perna nos outros; ele só poderá sair de sua raia para auxiliar um nadador em dificuldades. Entre as raias está a moral. Ajudar o outro da raia vizinha é atitude moralmente desejável. Parece que, no caso, a reunião no barco significou uma conduta que está no plano da moral. Qual foi a finalidade da reunião? Se for para tirar vantagem para a sua aprovação no Senado, Moraes está “invadindo a raia dos outros” injustificadamente, porque rompe a regra do jogo. Afinal, não existe sabatina prévia. No plano da ética nada se pode dizer, porque a ética está no plano de viver bem; ideal de vida boa e não ideal de boa vida. É no plano da moral que se deve discutir essa atitude. Sobre a legalidade: não tem previsão legal. É apenas censurável. Poderíamos chamar isso de uma conduta inapropriada de ambos os lados: tanto dos senadores como do indicado.
EC – Quando da morte do ministro Teori Zavascki, e dos primeiros boatos sobre a indicação de Moraes para substituí-lo no STF, analistas, especialistas e juristas consideraram que ele seria a pior escolha de Temer. Pouco antes do acidente que vitimou Teori, Moraes vinha, inclusive, sofrendo um desgaste muito grande à frente da pasta da Justiça, em função de uma série de erros, entre os quais aqueles que o senhor citou. Mas com a confirmação da indicação, as críticas a Moraes, ao invés de crescerem, diminuíram? Por quê?
Streck – Simples. No Brasil o direito não depende da lei e da Constituição Federal. E nem de julgamento por princípio. O direito depende daquilo que os juízes pensam subjetivamente sobre o direito. Ora, ministro do STF é superpoderoso. Poucos advogados se atrevem a fazer críticas a quem foi indicado. Mais não preciso dizer.
EC – O senhor concorda que Moraes é a pior alternativa? Por quê?
Streck – Vou fazer uma brincadeira: Lula e Dilma erraram várias vezes. Agora, deixemos que Temer cometa seu primeiro erro. Que até poderá se mostrar como um acerto. Não seria a primeira vez que um ministro que entra desgastado no STF depois se mostra bom julgador. Aliás, não é difícil ser um bom julgador. Basta seguir a Constituição e cumprir as leis. Se um ministro se mantiver nos limites da Constituição, fatalmente será bem avaliado pela comunidade jurídica. Por que isso não poderia acontecer com Moraes? Havia mais de 35 candidatos. Considerando todos os pretendentes, poderia ser pior. É importante destacar que estou falando no plano do que a comunidade jurídica considera “saber jurídico”. Neste ponto, o indicado possui, formalmente, atributos que muitos outros não tinham. É importante também lembrar que no plano material existe a acusação de plágio que pesa sobre o indicado. Essa acusação deveria ser examinada pelo Senado a partir de uma comissão de experts de notório saber sobre a área de direito autoral. O que é notório saber? Vamos começar tudo de novo.
EC – Qual o papel do STF em toda esta conjuntura?
Streck – O presidencialismo de coalização gerou um Supremo Tribunal ultra forte. Tudo passa pelo STF. Não é culpa dele. O STF não sai por aí buscando causas para julgar. Claro que, em muitas causas, a Corte deveria dizer não. Como, por exemplo, no caso do afastamento do ex-presidente Lula do ministério no qual assumiria a Casa Civil. O STF errou. E, agora, ao deixar Moreira Franco na Secretaria Geral da Presidência da República, acertou. Mas, veja: em uma democracia plena, com separação nítida de funções nos Poderes, esse assunto não iria para o judiciário. Qual a consequência: dois pesos, duas medidas em dois casos análogos. Isso enfraquece a credibilidade do STF.
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
“O STF não sai por aí buscando causas para julgar. Claro que, em muitas causas, a Corte deveria dizer não. Como, por exemplo, no caso do afastamento do ex-presidente Lula do ministério no qual assumiria a Casa Civil. O STF errou”.
EC – Por que o senhor avalia que a Corte acertou no caso de Moreira Franco?
Streck – Porque o presidente da República pode nomear como ministro aquele que entender conveniente. Depende só dele. Não há requisitos de notório saber e ilibada conduta para ser chefe da Casa Civil, por exemplo. E não se pode presumir que a nomeação seja para ganhar foro privilegiado. Na minha opinião, isso é uma falácia. Além do que, pensar que ser julgado pelo Supremo é ganhar vida mansa é desdenhar do próprio Supremo. É um tiro no pé. Só que, antes disso ainda há outra coisa: o fato de que este tipo de matéria não deve ser levado ao judiciário. Já no caso Lula o STF não deveria ter tomado conhecimento do pedido de afastamento. Infelizmente, o STF meteu-se nisso, errou. Entrou na seara da prerrogativa da presidente da República. Interessante é que, naquele momento, nenhum ministro, inclusive o decano Celso de Mello, pediu para que a matéria fosse levada ao plenário. Lula foi afastado por liminar. Moreira foi mantido por liminar. Não se pode julgar por liminar. E, pior, com dois pesos e duas medidas.
EC – Governistas tentaram apressar a sabatina de Moraes no Senado, mas o movimento não teve êxito. O senhor vislumbra alguma possibilidade de ele não chegar ao STF?
Streck – Nenhuma. Já pode se considerar ministro da Suprema Corte do Brasil. As manobras para apressar são desnecessárias. Até a reunião do barco foi desnecessária. O novo ministro poderia ter evitado esse desgaste. O governo tem maioria. E aprova o que o presidente quer, principalmente quando coincidem os interesses.
EC – Apesar de as notícias darem conta de que a população acompanha de perto o assunto, na prática parece haver um distanciamento crescente entre movimentos da sociedade e decisões do centro político do país. A polêmica sobre a indicação de Moraes parece mais restrita aos meios acadêmicos e jurídicos, sem reflexo nas ruas. O mesmo ocorre com discussões sobre as reformas do Ensino Médio, trabalhista e previdenciária. O senhor concorda? Por quê?
Streck – A população não está interessada se Moraes deve ser ou não ministro do STF. Com o passar do tempo, construímos uma espécie de “discussão intraestamental”. São assuntos que só interessam aos estamentos (N.E.: sistema de classes sem mobilidade social, a exemplo do feudalismo) e estes fazem de tudo para evitar que pressões externas vindas do povo possam alterar um resultado desejado. Não pense nem mesmo que a maioria da comunidade jurídica está contra a indicação de Moraes. Não. Moraes representa a comunidade jurídica. Representa a média do que se aprende nas faculdades e do que se aplica nos fóruns e tribunais. Logo, mesmo um descontentamento popular seria rechaçado pela própria comunidade jurídica. Acho que a reação da comunidade jurídica – falo aqui de abaixo-assinado com mais de 200 mil assinaturas – não deixa de representar o que no Rio Grande do Sul chamamos de tosa de porco: muito grito e pouca lã. O fato está consumado. Juristas são bons de protesto interno: em grupos de whatsapp. Mas escrever mesmo é mais difícil.