OPINIÃO

A crise aguda e o declínio crônico do Ocidente

Por José Luís Fiori / Publicado em 20 de maio de 2024
Multipolaridade, crise aguda e o declínio do Ocidente

Foto: Pavel Bednyakov/Sputnik/Reprodução

Crise: o projeto dos EUA e da Otan enfrenta o desafio militar da China, a resistência do Irã e a limitação imposta pela Rússia: o presidente do Irã, Ebrahim Raisi (foto) morreu no domingo, 19, na queda de um helicóptero

Foto: Pavel Bednyakov/Sputnik/Reprodução

Em outubro de 2023, ao voltar  de  uma  viagem relâmpago a Israel, para dar apoio ao primeiro-ministro Benjamin  Netanyahu,  o  presidente  norte-americano Joe Biden afirmou,  num  discurso  feito  no  Salão  Oval da   Casa   Branca,   que   “o   mundo   está   vivendo   uma virada histórica, porque a ordem mundial  do  pós-IIGM  perdeu fôlego, e é necessário  construir  uma  nova  ordem”1.

Quase  no mesmo momento, na comemoração do décimo aniversário da “Nova Rota da Seda”, realizada em Pequim nos dias 17 e 18 de outubro de 2023, os presidentes Xi Jinping, da China, e  Vladimir  Putin,  da Rússia, defenderam em conjunto a  necessidade  de  “uma  nova ordem mundial que respeite a diversidade das civilizações”.2

Um pouco antes, na véspera da 18ª Cúpula do G20, realizada em Nova Delhi, em setembro de 2023, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi publicou um artigo em vários jornais do  mundo  propondo “uma nova ordem mundial  pós-pandêmica”.3

Por  fim,  de  forma ainda mais categórica, Joseph Borrel, Chefe da Política Externa da União Europeia, declarou em fevereiro de 2024, “que a era  do domínio global do Ocidente chegou  ao  fim”.4

Uma  manifestação  e um reconhecimento categórico dos líderes das cinco principais potências do mundo. No entanto, por trás desse aparente consenso escondem-se grandes divergências conceituais e políticas.

Para começar, eles não estão falando necessariamente da mesma coisa, nem do mesmo período histórico, porque existiram pelo menos duas grandes “ordens” ou “ordenações mundiais” que se sucederam, a contar do fim da Segunda Guerra Mundial.

A primeira vigorou entre 1945 e 1991 e foi apoiada pelas duas potências que saíram vitoriosas da IIGM: EUA e URSS.

Foi, no entanto, arquitetada de fato e liderada pelos EUA, graças à sua supremacia atômica conquistada em Hiroshima e Nagasaki, e graças à sua supremacia econômica consagrada pelos Acordos de Bretton Woods, que fizeram do dólar americano a moeda de referência da economia capitalista mundial.

Fazem parte desta primeira “ordem mundial” quase todas as instituições multilaterais surgidas a partir da criação das Nações Unidas, em outubro de 1945, ao lado do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), para citar as mais importantes.

A crise dessa “ordem mundial”, entretanto, começou já na década de 70 do século passado, quando os EUA abandonaram os Acordos de Bretton Woods e  se  descomprometeram, unilateralmente, com relação à paridade entre o dólar e o ouro que havia sido definida por eles mesmos, em 1944.

O abandono do “padrão dólar” veio junto com a primeira grande crise econômica do mundo capitalista do pós-IIGM, que atravessou as décadas de 1970 e 1980 e foi marcada por sucessivos “choques do preço do petróleo” e aumentos da taxa de juros  norte-americanas.

Houve,  ainda,  a derrota dos EUA na Guerra do Vietnã, em 1973, e foi por isto que naquele momento muitos analistas internacionais falaram, pela primeira vez, de uma “crise terminal da hegemonia  norte- americana”.

Mas, logo em seguida, como resposta  a  essa  crise,  os EUA lançaram uma ofensiva militar contra a URSS, que veio acompanhada pela grande “revolução conservadora” dos anos  1980, que se desfez dos compromissos “keynesianos” e “desenvolvimentistas” do pós-IIGM e abriu as portas para o avanço de um novo projeto econômico global liderado pelas potências anglo-saxônicas: o neoliberalismo, que avançou como um tufão, ajudando a derrubar o Muro de Berlim e acabando com  a bipolaridade estratégica da Guerra Fria.

E na  década  seguinte,  os EUA se aproveitaram de sua nova posição  de  poder  e  assestaram um último e definitivo golpe na “ordem  multilateral”  que  eles haviam criado, no momento em que  atacaram  a  Iugoslávia,  em 1999, sem autorização  prévia  do  Conselho  de  Segurança  das Nações Unidas.

A mesma coisa que voltariam a fazer em  2003, quando invadiram o Iraque sem contar com o aval do Conselho de Segurança e, desta vez, com a oposição da maioria absoluta da Assembleia Geral da ONU.

E foi assim que se encerrou, de forma definitiva e melancólica, a  primeira  “ordem  mundial  hegemônica” do pós-IIGM; e foi nesse momento, e não mais tarde, que o Conselho de Segurança da ONU perdeu toda  e  qualquer  eficácia  e legitimidade, por obra de seus próprios criadores.

Nascia, então, uma nova “ordem mundial”, sustentada agora pelo poder unipolar dos EUA, conquistado através de suas vitórias na Guerra Fria, em 1989/91, e na Guerra do Golfo, em 1991/92.

Nessa nova ordem unipolar, os EUA se reservaram desde o início o direito unilateral de fazer “guerras humanitárias”, e de declarar e atacar o “terrorismo” em qualquer lugar do mundo, segundo seu exclusivo arbítrio, e já sem nenhuma preocupação com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que foram sucateados literalmente em 1999.

Este novo poder global unipolar dos EUA potencializou ainda mais o projeto econômico neoliberal de abertura e desregulação dos mercados e globalização das finanças mundiais, que passaram a ser  geridas,  em  última  instância, pelo Banco Central dos EUA e seu sistema Swift de intermediação financeira e pagamentos internacionais.

Esta segunda “ordem mundial” – unipolar e neoliberal – do pós-Guerra Fria começa a perder fôlego a partir da grande crise financeira de 2008, que abalou a economia americana e atingiu em cheio a economia europeia. Foi ali  que  começou  o  chamado processo da “desglobalização” da economia mundial, que viria a se acelerar com a pandemia de covid-19, com a guerra econômica dos EUA contra a China e, sobretudo,  com  o  início  da  Guerra  da Ucrânia, em 2022.

E mais ainda, depois do fracasso da aposta ocidental numa verdadeira guerra de sanções econômicas contra a Rússia, que não alcançou seu objetivo  e  ainda  por  cima  produziu um efeito bumerangue sobre a economia europeia, que entrou num profundo e prolongado processo de estagnação econômica.

Muito antes de tudo isso, entretanto, as “guerras sem fim” dos EUA, que começaram no final do século 20, desvelaram aos poucos uma “dimensão oculta” dessa nova ordem mundial, escondida por trás da retórica da globalização: a construção de uma infraestrutura militar global, com mais de 700 bases militares distribuídas ao redor de todo o mundo, e controlada diretamente pelos EUA, mesmo no caso de organizações regionais como a Otan.

Ou seja, aos poucos foi ficando mais claro que a condição sine qua non do projeto da globalização econômica, sem limites nem fronteiras, era a instalação de uma nova espécie de “império militar global”, um segredo que foi guardado a sete chaves pela retórica missionária do neoliberalismo defendido por EUA, Inglaterra e seus sócios do G7.

E é precisamente esse projeto militar global dos EUA e da Otan que está sendo desafiado pela ascensão militar da China, pela resistência do Irã e pelo limite que lhe foi imposto pela Rússia, primeiro na Geórgia, em 2008, e depois na Ucrânia em 2022. E é essa ordem mundial “imperial cosmopolita” que está “perdendo fôlego” e já entrou em acelerado processo de desintegração.

Assim mesmo, quando Joseph Borrel declara que “a era do domínio Ocidental acabou”, ele está se referindo a uma outra crise, muito mais complexa, profunda e prolongada: a crise do poder e da hegemonia ocidental no sistema internacional que os europeus conquistaram e dominaram, de forma quase absoluta, nos últimos.

Trezentos anos. Para se ter uma ideia aproximada do tamanho  e  do impacto dessa crise, basta lembrar que no início do século 20, logo depois da I GM, o Império Britânico tinha uma extensão de 35,5 milhões de km2 e ocupava 23,84%  da  superfície  terrestre.  Junto com os impérios  coloniais  de  França,  Bélgica,  Portugal  e  Holanda, o Ocidente europeu chegou a dominar  cerca de 40% do território  e da população mundiais.

Hoje,  entretanto,  a  Inglaterra  está ameaçada de perder seu domínio sobre a Escócia e a Irlanda,  por onde começou de fato o Império Britânico.

A França está sendo expulsa da África e já não é mais do que um simulacro da potência imperial que foi no passado, e o mesmo deve ser dito dos demais estados europeus que sobrevivem escondidos atrás da proteção atômica da Otan. Sendo  que,  nas  últimas  duas  décadas,  os próprios Estados Unidos  vêm  sofrendo  sucessivas  derrotas militares e fracassos políticos  no  Iraque,  na  Síria,  no  Afeganistão, na Ucrânia, para não falar de sua própria “guerra civil-eleitoral” interna.

Ao mesmo tempo, assistem paralisados ao desgaste progressivo de sua credibilidade moral, graças ao apoio militar e financeiro que deram ao massacre do povo palestino da Faixa  de Gaza.

Como consequência desses sucessivos reveses, o “velho Ocidente”, que era considerado sinônimo da “comunidade internacional” até bem pouco tempo atrás, vem perdendo força e legitimidade, e hoje não tem mais capacidade de impor seus critérios, seu arbítrio e poder sobre o resto do mundo.

Mesmo assim, não há o menor sinal de que este “Ocidente reduzido” esteja disposto a abrir mão do poder que acumulou nos últimos séculos. Além disso, a História ensina que as grandes potências e os impérios não costumam ceder seu poder sem resistir, sem guerrear.

1 Reuters, UOL Noticias, 23/10/2023, https:uol.com.br
2 Ministry Foreign Affairs of the People’s Republic of China, 18/10/2023, fmprc.gov.br
3 “A nova ordem pós-pandemia”, https://www.estadao.com.br, 07/09/2023.
4 “Era do domínio global do ocidente chegou ao fim”, 26/02/2024, sputniknewsbr.com.br

José Luís Fiori é professor emérito de economia política internacional da UFRJ; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; e do Laboratório de “Ética e Poder Global”; Publicou recentemente  Sobre a Guerra, 2018, A Síndrome de Babel, 2020; e, Sobre a Paz, 2021, todos pela Editora Vozes, Petrópolis. Artigo publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, 5, maio de 2024.

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