Plano é aprovado na Assembleia com 36 emendas do governo estadual
Foto: Stephanie Gomes/Agência ALRS
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O governo gaúcho apresentou 36 emendas supressivas ao Plano Estadual de Educação, votado na sessão do dia 23 de junho na Assembleia Legislativa, e conseguiu retirar do texto todas as referências ao direito de identidade de gênero que constavam no documento original. As supressões foram aprovadas em plenário, sob protestos da oposição. A discussão acabou ofuscando a aprovação do Plano, que contém 20 metas importantes para a educação, como a erradicação do analfabetismo, a gestão democrática da educação pública, a valorização dos profissionais e o respeito aos direitos humanos, à orientação sexual, à diversidade e sustentabilidade ambiental e às escolhas religiosas.
O projeto de lei, apresentado em dezembro de 2014 pelo governo de Tarso Genro (PT), previa políticas pedagógicas de valorização e respeito aos grupos identificados como LGBTs nas escolas, incluindo conteúdos curriculares sobre o tema e ações afirmativas, como espaços compartilhados para os estudantes. A expressão “identidade de gênero” estava presente em 14 artigos do texto.
O Plano Estadual de Educação estabelece diretrizes para a área nos próximos dez anos (2015/2025). Elaborado ao longo de dois anos pelo Fórum Estadual da Educação, colegiado que reuniu 38 representantes do governo estadual, do Legislativo e da sociedade civil, o documento continha mais de 480 itens quando chegou à Assembleia, em dezembro de 2014. O secretário estadual de Educação, Vieira da Cunha, acompanhou pessoalmente a sessão e negociou a apresentação das emendas para retirar as referências à questão de gênero. Com o plenário lotado de ativistas, tanto em defesa das políticas em favor da comunidade LGBT quanto de representantes de igrejas evangélicas, a discussão foi tensa, com vaias de lado a lado. No final, o governo conseguiu suprimir os trechos considerados “indevidos”.
“As emendas aprovadas alinharam nosso documento ao Plano Nacional de Educação, que não faz menção à questão de gênero. A escola não precisa e não deve ensinar a uma criança de quatro ou cinco anos o que é isso. Somos a favor da liberdade, mas com cada um cuidando de si”, justificou o líder do governo na Assembleia, Alexandre Postal (PMDB).
Durante a votação, que durou mais de 6 horas, houve teses para todos os gostos. A deputada Zilá Breitenbach (PSDB) afirmou que as mudanças propostas pelo governo atendiam “aos apelos da sociedade”, já que o plano seria detalhista demais em relação a questões sexuais. “É preciso respeitar o bom senso suprimindo a questão de gênero, da ideologia de gênero. Isso foi criado para destruir a família”, disse da tribuna. O deputado Tiago Simon (PMDB), por sua vez, afirmou que havia uma preocupação legítima por parte dos deputados com o que chamou de “excessos” da identidade de gênero. “O masculino e o feminino são verdades científicas. Mas com essa ideologia de gênero, não há mulher, não há homem, é uma confusão só da qual as crianças precisam ser preservadas”, bradou. Da galeria, devotos de igrejas evangélicas entoavam o mantra “família unida jamais será vencida”.
O gênero é um conceito que surgiu na década de 1970 para distinguir as dimensões biológica e social na construção da identidade sexual. Enquanto o sexo seria designado no nascimento, o gênero seria uma construção social vinculada à percepção do indivíduo em relação à sua sexualidade. Assim, a discussão frequentemente emerge em temáticas ligadas à garantia dos direitos de transexuais, travestis ou transgêneres – que ainda enfrenta inúmeras barreiras na sociedade.
Ideário cristão versus ideologia de gênero
Já o termo ideologia de gênero foi cunhado em 2010 pelo advogado argentino Jorge Rafael Scala. Ele escreveu o livro Ideologia de Gênero: Neototalitarismo e a Morte da Família, publicado no Brasil pela editora católica Katechesis – ligada à ala mais conservadora da Igreja. Scala é um conhecido militante antiaborto e antidivórcio, tendo também atuação destacada em campanhas que tentam restringir os direitos legais dos homossexuais. Além disso, é o líder da conservadora Associações Unidas por um Mundo Melhor (AUMM), com sede em Córdoba.
Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS
Foto: Marcelo Bertani/Agência ALRS
Em junho, uma semana antes da votação em plenário, a seção regional da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a Arquidiocese de Porto Alegre enviaram aos deputados gaúchos um documento conjunto em que atacavam os itens do Plano que garantiam a diversidade de gênero nas escolas públicas. A carta também foi remetida aos vereadores de 29 cidades sob sua jurisdição, onde há planos municipais em tramitação. O documento, assinado pelos principais líderes católicos do Rio Grande do Sul, advertia para os riscos da introdução de uma “ideologia de gênero” nos planos em tramitação, que devem ser cadastrados no Ministério da Educação até a próxima quarta-feira. Os religiosos reclamaram que foram “pegos de surpresa” com a inclusão de itens que, segundo a Igreja, “desconstróem valores consagrados pela família”. O documento também acusava o Plano de distorcer o conceito de homem e mulher. Segundo os bispos, a “ressignificação antropológica” dos papéis masculino e feminino não deve ter “reconhecimento oficial”.
RETROCESSO – O deputado Pedro Ruas (Psol) lamentou a retirada de referências ao conceito de identidade de gênero, considerada por ele como um “retrocesso”. “Estamos abolindo aqui um direito que é consensual em termos universais. Ensinar respeito às diferenças e contra o preconceito e afirmar a inclusão é uma das tarefas primordiais da escola”, criticou o parlamentar. O arcebispo de Porto Alegre, Dom Jaime Spengler, justificou a pressão exercida sobre o projeto pela Igreja Católica no que se refere à sexualidade. “Nossa intenção, ao redigir e divulgar a carta, foi que se abrisse o debate para as verdadeiras partes interessadas, que são os pais dos estudantes. São eles que têm a primazia sobre a educação dos filhos, especialmente no que tange à moral e ao sexo”, justificou. O religioso sustenta que o Plano Nacional de Educação, aprovado em junho do ano passado, não faz menção à adoção da promoção da identidade de gênero como diretriz geral a ser adotada no sistema público.
Mudanças ignoram três anos de debate
A presidente do Conselho Estadual de Educação e diretora do Sinpro/RS, Cecília Farias, reagiu à alteração do documento, debatido em mais de uma dezena de audiências públicas desde 2013. “A discussão foi plural, coletiva e democrática. Por isso as questões contra o preconceito apareceram de forma tão clara. Há uma dívida histórica da legislação sobre as diferenças de gênero, que existem e precisam ser respeitadas. As iniciativas contrárias a isso são desproporcionais”, criticou.
Os planos estaduais e municipais de Educação fazem parte do Plano Nacional de Educação (PNE). Entre outras metas, prevê a existência, num prazo de dois anos, de planos de carreira para os profissionais da educação básica e superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira dos profissionais da educação básica pública, o piso salarial nacional profissional como referência – o que em tese desobriga o cumprimento da lei federal que instituiu o vencimento. Também determina que os investimentos em educação devem alcançar 7% do Produto Interno Bruto (PIB) até 2020, chegando a 10% em 2025. A lei do Plano Estadual de Educação foi sancionada no dia 25 de junho pelo governador José Ivo Sartori (PMDB).