AMBIENTE

Por que Porto Alegre não colocou em ação o Plano de Resiliência criado em 2016?

Prefeitura ignorou plano que prevê medidas de resiliência contra cheias e negligenciou manutenção do sistema de drenagem
Por Elstor Hanzen / Publicado em 29 de maio de 2024
Por que Porto Alegre não colocou em ação o Plano de Resiliência criado em 2016

Foto: Jefferson Bernardes/PMPA

Medidas de resiliência elencadas tornariam a capital gaúcha uma referência na prevenção de desastres, mas plano nunca saiu do papel e só foi usado como marketing pela prefeitura para atrair eventos

Foto: Jefferson Bernardes/PMPA

Há dois meses o Cais Mauá, no Centro Histórico de Porto Alegre, mergulhava no mundo dos Hubs de inovação, startups e CEO no South Summit Brazil 2024. Agora, em maio, o local e diversos outros bairros da capital submergem às águas barrentas, à lama e aos entulhos.

O que os dois eventos têm em comum: O plano de Estratégia de Resiliência elaborado em 2016 e transformado em lei municipal em 2019, na gestão de Nelson Marchezan.

O documento de 72 páginas foi produzido em parceria com a Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos, no último ano da gestão José Fortunati e Sebastião Melo. E, pouco depois da enchente que arrasou o Vale do Taquari em setembro de 2023, a prefeitura editou odecreto 22.263 de 19 de outubro de 2023, criando o Comitê Permanente de Resiliência, formado por 34 secretarias ou órgãos municipais.

Na prática, o plano tem sido cartão de visitas e instrumento de marketing para chamar eventos como o South Summit nos últimos anos. No site, a prefeitura se declara como pioneira na integração de redes internacionais de resiliência.

Na sequência da apresentação, informa que a “capital gaúcha foi certificada como HUB de Resiliência, título conferido pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução dos Riscos de Desastres, em reconhecimento à iniciativa MCR2030”.

Segundo o texto, essa condecoração também é um reconhecimento da capacidade de Porto Alegre reduzir riscos de desastres.

Nos capítulos referentes aos desastres naturais, o plano traz mapeamento de riscos sobre tragédias em enchentes passadas e exalta os ensinamentos.

Segundo o plano, as chuvas de 2015 trouxeram à cidade o maior volume de precipitação desde 1941 e fizeram com que o nível do Guaíba atingisse o maior patamar em 74 anos. “O evento adverso deixou, porém, ensinamentos importantes sobre o benefício da prevenção”, alerta.

Na página 49, por exemplo, o documento diz que a partir do alerta prévio feito pelo Sistema Metroclima de ocorrência desse evento climático intenso, a “prefeitura e seus órgãos elaboraram uma operação de prevenção e preparação para o risco iminente, que mitigou os danos e prejuízos sociais do desastre. O trabalho oportunizou a reativação da Comissão Permanente de Atuação em Emergências (Copae), reiterou a importância de estruturas como o Centro Integrado de Comando (CEIC), além de solidificar a importância do Gabinete de Defesa Civil na coordenação dos trabalhos”.

Quase uma década após, parece que o plano de resiliência e as experiências foram em vão, uma vez que o sistema contra as cheias se mostrou ineficiente por falta de manutenção, o nível da água era maior dentro da cidade do que no Guaíba e as autoridades locais sequer sabiam dar orientações confiáveis à população.

Mesmo com esse plano em vigor, contudo, uma das primeiras providências do prefeito Melo foi anunciar a contratação de outra consultoria privada (Alvarez & Marsal) para elaborar um plano de recuperação no dia 13 de maio.

Lições não aprendidas

Por que Porto Alegre não colocou em ação o Plano de Resiliência criado em 2016

Foto: Gustavo Garbino/ PMPA

Entre o marketing e a realidade, Porto Alegre acabou surpreendida pelo volume de chuvas e também por equívocos no planejamento, prevenção e resposta a desastres

Foto: Gustavo Garbino/ PMPA

O plano de Estratégia de Resiliência de 2016 de Porto Alegre alerta que a cidade ainda carece de organização da sociedade e do poder público para o gerenciamento eficiente de crises e prevenção a riscos.

Na página 13, o documento dispõe que “tal ineficiência no gerenciamento de risco pode ser percebida a cada aumento do nível das águas do Lago Guaíba, quando a cidade sofre com inundações e alagamentos nos quais famílias são desalojadas, resultando em perdas materiais e alteração na rotina”.

Em 2015, por exemplo, o documento registra que cerca de 5 mil pessoas foram desalojadas durante 15 dias. Em maio de 2024, no entanto, a prefeitura encaminhou ao governo federal o cadastro de 25 mil famílias desalojadas para receberem auxílio reconstrução.

Entre as razões apontadas para o agravamento das enchentes já em 2016, está a ineficiência no controle da ocupação de áreas de risco, que em Porto Alegre eram 118 áreas mapeadas na época, somente para os riscos de inundações, alagamentos e deslizamentos.

Essas áreas concentravam cerca de 44 mil pessoas, das quais aproximadamente 10 mil sofriam com as cheias cíclicas do Guaíba.

“O planejamento da cidade para a prevenção de riscos deve ser considerado um investimento, pois não podemos prever quando muitos dos eventos adversos surgirão, mas podemos nos adaptar e transformar choques e tensões em oportunidades de desenvolvimento”, orienta o plano.

O ex-secretário de Governança de Porto Alegre e coordenador da iniciativa, Cezar Busatto, já falecido afirma em um texto que integra o plano que Porto Alegre ousou sonhar com uma cidade referência em resiliência na América Latina até 2022, quando a capital dos gaúchos celebraria seus 250 anos.

“Favorecida pelo projeto 100 Cidades Resilientes, patrocinado pela Fundação Rockefeller, Porto Alegre integrou-se a uma rede mundial de cidades que assumiram um compromisso em comum: ajudar o mundo a ser mais seguro, sustentável e equitativo nas próximas décadas, enfrentando e superando os desafios colocados por adversidades naturais e sociais cada vez mais frequentes neste século XXI”. Mal poderia imaginar que o plano seria ignorado no enfrentamento da crise climática em 2024.

Mesmos equívocos das tragédias mineiras

Em 2015, a barragem de Fundão da mineradora Samarco se rompeu, despejando cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. Em 2019, a barragem da Mina de Córrego do Feijão se rompe, causando uma tragédia de 270 mortes em Brumadinho, ambas em Minas Gerais. Um dos técnicos que atuaram na assessoria de reparação das comunidades atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão foi Luís Felipe Fachini, atualmente doutorando em Ciência Política na Ufrgs.

Fachini faz uma análise comparativa com as catástrofes climáticas do RS em relação àquelas de Minas.

“Ambos os tipos de tragédia revelam equívocos em termos de planejamento, prevenção e resposta a desastres. Isso inclui a falta de um plano de contingência, fortalecimento, planejamento, processo de tomada de decisão pública e fiscalização desses eventos, bem como a falta de orientação estatal para a sociedade civil compreender os riscos e procedimentos de segurança que podem ajudar a reduzir a vulnerabilidade das comunidades”, conclui.

“Uma Estratégia de Resiliência precisa ser apresentada para a sociedade local, ser validada pelas nossas universidades, redes de pesquisa e de participação social existente na cidade, e não pode ser transformada em um instrumento de marketing para atrair eventos e negócios privados. Esse é o caminho que parece mais fácil pois dialoga apenas com um público de interesse específico e um eleitorado desinformado que é levado a acreditar em promessas de crescimento econômico, geração de empregos, e inovação sem a devida comprovação das possibilidades da sua realização efetiva”, alerta Milton Cruz, pesquisador colaborador do Observatório das Metrópoles e autor do livro A Cidade e a Modernização.

Respostas do município

O professor de engenharia e atual secretário de Inovação da capital Luiz Carlos Pinto, na época um dos responsáveis pela elaboração do plano, foi contatado para entrevista. Por meio da sua assessoria, indicou a secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV) para responder aos questionamentos.

A SMGOV, por meio da Coordenação de Resiliência e Redes (CRR), é responsável por desenvolver, apoiar e integrar projetos para tornar a cidade mais adaptada e flexível frente aos choques e tensões do ambiente urbano, visando ao seu contínuo desenvolvimento, de acordo com a Estratégia de Resiliência de Porto Alegre, afirma a SMGOV.

Entre outras informações já citadas, a prefeitura informa em um comunicado que “o Comitê Permanente de Resiliência (CPR) está em fase de implementação, homologando indicações dos órgãos componentes, que vão trabalhar na atualização da Estratégia Municipal de Resiliência, estabelecendo metas subdivididas, em consonância com a Lei Municipal de Resiliência. O comitê também vai promover a ação coordenada e conjunta da gestão municipal com a temática de Resiliência, bem como com os objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU)”.

Por fim, diz que ‘a SMGOV, por meio da equipe da CRR, trabalha atualmente na busca de recursos para a instalação do CPR e a atualização da Estratégia de Resiliência de Porto Alegre, buscando parceiros e investidores para viabilizar as ações”.

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