OPINIÃO

O maconheiro abusado no show de Gusttavo Lima

Por Moisés Mendes / Publicado em 29 de maio de 2024
As lições deixadas pelo episódio em que o fã é reprimido pelo ídolo bolsonarista

Foto: Gusttavolima.com.br/ Reprodução

“Gusttavo Lima acha que falta ao fã deslocado vergonha na cara. Pode estar faltando a capacidade de perceber que aquele artista, assumidamente engajado à retórica e à ação de grupos identificados com o fascismo, também é parte do seu problema”

Foto: Gusttavolima.com.br/ Reprodução

Um fã de Gusttavo Lima achou que poderia fumar maconha num show do cantor. O homem se sentiu tão à vontade que largava baforadas bem perto do palco.

Mas ele não estava num show dos Titãs. Estava a poucos metros de um dos cantores sertanejos mais bolsonaristas. Um artista assumidamente engajado à extrema direita.

O maconheiro ouviu então uma lição do moço cujos cachês são muitas vezes pagos por prefeituras miseráveis, por ordem dos seus prefeitos corruptos:

“O maconheiro que está aí, na frente do povo. Você não tem vergonha na cara, não? Quem está fumando maconha aí? No meio do povo… Vou te contar. Só acontece aqui”.

Lima reclamou que o maconheiro “imundou o palco inteiro”. O homem que fumava parece ter reagido, como mostra um vídeo que circula com a cena, mas não se entende o que ele diz.

O fã poderia ter dito que foi ao show errado. Mas não. Ele deve ter ido ao show certo. Maconheiros, que pedem o direito de fumar em público, nem sempre se colocam no contexto em que estão.

Querem fumar baseado, querem liberdade para pequenos e grandes prazeres e transgressões, exigem respeito ao direito de espalhar fumaça num show, mas não conseguem se ver dentro de um conjunto de opressões.

O cantor acha que falta ao fã deslocado vergonha na cara. Pode estar faltando a capacidade de perceber que aquele artista, assumidamente engajado à retórica e à ação de grupos identificados com o fascismo, também é parte do seu problema.

Ah, dirão, mas arte e realidade nem sempre se misturam. Sim, podem dizer. Artistas ajudam a libertar ou a oprimir. Gustavo Lima já se assumiu como ativista bolsonarista. Não há no bolsonarismo quem defenda que alguém fume maconha num show.

Eles podem defender as posições machistas de Bolsonaro e a conversa falsamente moralista do fascismo. Podem até defender o direito de tomar cachaça e fazer propaganda para bebidas alcoólicas.

Mas não o direito de fumar maconha. Não os direitos de gays, trans, negros e indígenas. Por isso o maconheiro estava no lugar errado. Porque talvez veja o direito de fumar maconha como algo particular, só dele, sem conexão com outros direitos.

O juiz, jurista e escritor Rubens Casara, que está lançando A Construção do idiota (Editora Da Vinci), nos ajuda a entender no livro, com outras referências, a situação do fumante como exemplo de aparentes paradoxos cada vez mais presentes em todas as áreas, incluindo o entretenimento.

O sujeito que afronta convenções, desafia um ídolo assumidamente conservador e lança baforadas numa multidão pode ser o que Casara aponta como o cara que se enxerga ali, fumando sua maconha, sem enxergar o direito a outras transgressões.

Ele não precisa ter retórica identitária, nem saber ao certo o que é identitarismo, mas precisa entender por que age como se fosse um elemento solto numa multidão, defendendo os direitos do seu quadrado.

Na cabeça dele, a maconha não se encaixa em outras questões amplas, do feminismo, do ambientalismo e dos movimentos contra o racismo e o etarismo. O que ele acha é que pode fumar ouvindo o ídolo que logo depois vai reprimir sua conduta.

Parece complicado, mas é simples. Esse é o cenário. Um maconheiro, um cantor que repete à exaustão as letras fabricadas pelo esquema computadorizado do que há de pior da dor de cotovelo e uma multidão cantando, alheia a esse tipo de conversa.

O maconheiro, a moça oprimida pelo namorado, a tia religiosa com Deus no coração e todos os que gostam desse tipo de música, todos estão ali para se divertir. É o que basta para eles.

Mas o maconheiro terá que perceber um dia que só conseguirá fumar maconha sem ser reprimido se tiver o suporte da arte e das condutas de outro tipo de artista, em outros shows.

Num show como aquele em que foi esnobado, ou ele larga a maconha, ou larga Gusttavo Lima, ou será sempre denunciado pelo ídolo como um maconheiro sem vergonha na cara.

O maconheiro fã do sertanejo sabe que há maconheiro bolsonarista até na Marcha da Maconha, o grande evento anual de quem defende o direito de fumar o que quiser. Mas Gusttavo Lima prefere que eles estejam longe do seu palco.

Se for jovem, o maconheiro do show não tem como perceber que a arte nunca foi tão reacionária como agora. Inclusive essa arte de exaltação do machão bebum que chora pela mulher que foi embora.

Ficamos sabendo depois que Gusttavo Lima confessou ter fumado maconha em uma viagem a Amsterdam. Leiam o que ele conta:

“Me deu uma depressão tão grande. Foi a primeira e última vez da minha vida. Eu tinha 19 anos. Depois, engatei na cachaça”.

O resumo é este: maconha faz mal, em Ipanema, no Bexiga ou em Amsterdam. Mas beber cachaça, aí pode. É só engatar na cachaça.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe

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