Projetos que visam a privatização do litoral multiplicam riscos de catástrofes
Foto: Secretaria de Obras de Tramandaí/ Divulgação
Em debate no Senado, a Proposta de Emenda Constitucional 3/2022, a PEC da Extinção dos Terrenos de Marinha, já tem um apelido sugestivo no Congresso Nacional: a PEC da Cancun brasileira.
Claramente, a proposição abre as portas para a privatização das praias no Brasil e sofre críticas por estabelecer um ambiente favorável à especulação imobiliária, gerar perdas de receita à União, prejudicar comunidades de pescadores e provocar impactos socioambientais ainda incalculáveis.
A iniciativa em nivel federal encontra ressonância nos estados, onde governadores já têm planos de flexibilização da legislação ambiental para favorecer a iniciativa privada na faixa litorânea. Um exemplo é o Rio Grande do Sul, cujo governador Eduardo Leite (PSDB) elaborou um plano nesse sentido para o Litoral Norte, provocando revolta de técnicos da Fepam
No senado, a matéria de autoria do ex-deputado federal bolsonarista Arnaldo Jordy (Cidadania/PA) está sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL/RJ) e tramita em meio à tragédia ambiental que assola o Rio Grande do Sul desde o início de maio.
Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
O projeto não só se soma, mas ultrapassa outra iniciativa legislativa que quer permitir que agentes privados tenham ascendência sobre o litoral do país. É o Projeto de Lei (PL) 4.444/2021 que determina a cedência de 10% das áreas costeiras municipais à iniciativa privada.
As justificativas de ambas as proposições seguem linhas distintas na apresentação, mas similares na conclusão: a apropriação privada de áreas públicas da União.
Se o PL da Câmara se insere na ideia de se criar o Programa Nacional de Gestão Eficiente do Patrimônio Imobiliário Federal, os defensores do PLC do Senado apontam os propósitos de legalizar a posse ou propriedade de quem já ocupa terrenos de forma irregular em volta da costa brasileira.
A justificativa também é criar formas de facilitar o desenvolvimento urbano ao estimular investimentos de infraestrutura, moradia e outras atividades econômicas nessas regiões.
Para analistas políticos e ambientalistas, os movimentos no legislativo seguem o ideário muito usado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), tanto em suas campanhas eleitorais, quanto em seu mandato, de usar o exemplo de Cancun para pedir uma legislação que permitisse a construção de complexos turísticos no litoral brasileiro.
Desafiar o poder do oceano
Para o arquiteto e biólogo Francisco Milanez, especialista em análise de impactos ambientais e diretor científico e técnico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), medidas como a PL da Câmara e o PLC do Senado ao buscar beneficiar interesses privados, contribuíram para potencializar a calamidade pública que está sendo vivenciada pelos gaúchos. Segundo ele, iniciativas como essas podem trazer efeitos catastróficos diferenciados em cada parte do Brasil.
Ele lembra que a enchente no Rio Grande do Sul é resultado da ocupação desordenada do solo, destruição das reservas florestais e banhados e assoreamento dos rios, e alerta: “o oceano é muito mais poderoso”.
Retirar áreas de segurança da Marinha que, “apesar de ter seus defeitos, pelo menos tem algum controle” é uma temeridade.
O diretor da Agapan recorre a um exemplo prosaico. “A primeira coisa que gostam de fazer é retirar cômoros, as dunas, e matas de restinga. Isso é necessário para se construir, não? Só que dunas e mata de restinga são elementos da natureza que nos defendem do oceano. Sem eles, nós ficamos desprotegidos”.
E a proteção referida pelo especialista ultrapassa questões como populações atingidas e deslocadas. Segundo ele, sem dunas e matas de restinga, campos de plantações podem simplesmente sumir de uma hora para a outra do mapa ao serem atingidos pela salinidade do mar.
Isso é só um exemplo, ressalta Milanez, lembrando que, devido ao tamanho do Brasil, de sua biodiversidade e condições climáticas, todo o impacto tende a ser gigantesco.
Ciclone, ressaca e resorts de Neymar
Foto: Prefeitura de Tramandaí/ Divulgação
Não necessariamente estaríamos correndo riscos de tsunamis como na Indonésia e Japão porque esse fenômeno decorre de “acomodação de placas, o que não é comum aqui”, diferencia Milanez.
Já, ressacas, aponta, é algo que já está acontecendo e, ao chegar a pontos devastados pela ação humana, tendem a agravar a situação.
“Nas cidades que tu tiras cômoros e mata de restinga, tipo Tramandaí e Imbé, basta uma ressaquinha que arranca as calçadas, arranca tudo”, ilustra, listando municípios do litoral gaúcho e Garopaba, Santa Catarina, devastados por ressacas.
O PLC relatado pelo senador Bolsonaro não privatiza diretamente as áreas litorâneas do Brasil, mas dá a licença para prefeitos e governadores regularizar concessões para a iniciativa privada. Um dos grandes interessados na privatização da faixa litorânea é o jogador de futebol Neymar Jr., que até já fechou parceria com uma incorporadora para lançar 28 empreendimentos na costa nordestina, com investimentos de R$ 7,5 bilhões.