SAÚDE

Cancelamento de planos de saúde revolta usuários

Em busca de maior lucratividade, operadoras de planos de saúde excluem pacientes com maior demanda e decidem quem deve ser atendido
Por Elstor Hanzen / Publicado em 11 de junho de 2024
Cancelamento de planos de saúde revolta usuários

Foto Lula Marques/ Agência Brasil

Reunião da comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, com Damares Alves, durante audiência pública sobre o cancelamento unilateral de contratos coletivos de planos de saúde, especialmente no caso de pessoas vulneráveis, com doenças raras e crianças autistas

Foto Lula Marques/ Agência Brasil

Os planos de saúde privados vêm intensificando sua pauta por maior lucratividade, o que significa decidir quais usuários devem ou não ser atendidos. As operadoras promoveram uma série de descredenciamentos de planos coletivos de crianças, portadores de TEA (transtorno do espectro autista), idosos e pessoas com deficiência. Esses usuários são considerados “clientes problemáticos” por precisarem de tratamentos mais caros e com maior frequência.

Entidades que representam usuários da saúde complementar estimam que cerca de 70 mil contratos já foram suspensos. No portal consumidor.gov.br, do governo federal, foram registradas mais de 5,4 mil reclamações de cancelamentos unilaterais entre abril de 2023 e janeiro de 2024. O Ministério Público do Rio Grande do Sul informa que a judicialização das questões de saúde disparou nos últimos anos e projeta 685 mil ações individuais de usuários neste ano.

A reação dos atingidos pela onda de exclusões motivou um acordo verbal costurado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e as operadoras, para sustar rescisões até a análise da nova lei do setor e segurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos planos.

A nova lei dos planos de saúde (Lei 9.656 de 1998), que tramita há 18 anos na Câmara, prevê um novo produto, o chamado “plano segmentado”, com direito apenas a consultas e exames, sem internações hospitalares. Além disso, dispõe sobre a criação de uma espécie de consórcio para a aquisição de medicamentos de alto custo, essenciais para alguns tratamentos, para aumentar a lucratividade dos negócios do segmento. Uma regra de proibição unilateral de rescisão também está entre os dispositivos do novo texto.

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Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A advogada Camilla Varella, da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP afirma que os cancelamentos de planos são ilegais

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Para a advogada e presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP, Camilla Varella, o que está por trás do cancelamento é a tentativa das operadoras de “limparem” as carteiras dos clientes que mais demandam.

Ela também aponta que há um monopólio cada vez maior no mercado. “Existe uma concentração que a gente está observando das operadoras, uma grande compra. Quer dizer, a Rede D’or, que compra a Sul América, a Hapvida, que compra a Notre Dame Intermédica, a Qualicorp, que é a empresa meio, que compra a empresa Amil”, enumera.

A concentração das empresas e a exclusão em massa de pacientes onerosos são estratégias que buscam maior lucratividade, avalia a advogada.

A especialista alerta que a lógica de administração dos grandes CEOs está errada. “Não estamos falando aqui de venda de veículos nem de imóveis, mas sim de vidas. Elas (operadoras) entram no mercado de saúde sabendo que precisam lidar com pessoas, mesmo assim, a tendência que observamos, nos últimos tempos, é o fim daquela antiga e clássica cooperativa de médicos, como a Unimed de 20, 30 anos atrás, quando o objetivo principal era tratar os pacientes da melhor forma possível”, compara.

Atualmente, acrescenta Camilla, a pretexto de cuidar da saúde, lucram cada vez mais, excluindo e decidindo quem deve e quem não deve receber esse cuidado, ou seja, praticam a necropolítica.

Contudo, a advogada enfatiza que Constituição Brasileira facultou ao poder público conceder tanto os serviços de saúde como de educação de forma suplementar, embora sejam um dever do Estado. “O problema é que muitas vezes, quando a gente fala de saúde, parece que os administradores dessas empresas desconsideram o tipo de serviço que elas estão oferecendo, que é um serviço de saúde”, alerta.

Setor público sufocado

Enquanto os planos privados tentam criar novos produtos e reduzir a complexidade dos serviços ofertados, a demanda por saúde pública tende aumentar ainda mais, avaliam especialistas. O problema que o sistema de saúde público vem sofrendo uma série de restrições devido à imposição de uma agenda ultraliberal, tanto em aspetos legais como orçamentários, conforme já detalhou reportagem especial do Extra Classe.

Professor do Departamento de Medicina Social da Ufrgs e especialista em saúde pública Roger dos Santos Rosa alerta que a redução nos investimentos em programas sociais e políticas ultraliberais agrava desigualdades sociais e de saúde, com impactos negativos especialmente sobre os grupos mais vulneráveis da sociedade. Segundo ele, privatização e a liberalização do mercado de saúde podem resultar em uma fragmentação do sistema de saúde, dificultando a coordenação e a integração dos serviços, o que afeta negativamente a continuidade e a eficiência do cuidado.

A práticas de maximizar lucros em vez de promover a saúde dos pacientes resulta em uma precarização dos serviços, mas faz parte da lógica do mercado. A educadora, socióloga, professora de pós-graduação em Ensino na Saúde da Faced/Ufrgs Carmen Lucia Bezerra Machado aponta que “a saúde é um bem caro, então o interesse das empresas é obter muito lucro. Toda vez que há uma pandemia ou um processo em que se acentue a proporção de despesas com a saúde dos participantes isso fica bem evidente. O interesse é manter o lucro, logo vai elevar o custo dos planos ou deixar de atender os usuários”.

A docente ressalta ainda que não se pode esperar autogestão ou postura ética do setor. “A ética neste meio só interessa quando for favorável para gerar maior lucratividade, caso contrário, não serve”, frisa. Por isso, órgãos como Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a instância do governo responsável por regular esse setor, e Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) precisam ser atuantes para fazer a fiscalização. Dados ANS indicam que o número de clientes de planos de assistência médica supera os 50,9 milhões.

Hoje existem dois tipos principais de planos de saúde. O individual, que uma pessoa contrata diretamente para si ou para a família; e coletivo, geralmente é acertado por uma empresa para os funcionários — ou por sindicatos e entidades de classe para os associados. Para os planos individuais ou familiares, a legislação proíbe o cancelamento unilateral do contrato, a menos que haja inadimplência ou fraude. A mesma regra não vale, porém, para os convênios coletivos e, nesses casos, as empresas acabam fazendo cancelamento.

Segundo o Idec, brecha na legislação é usada pelas empresas para criar exceções. Por isso, a entidade defende a proibição total do cancelamento unilateral para os planos coletivos, constituindo-se uma cláusula abusiva, como é com os planos individuais.

Usuários vão à Justiça

Cancelamento de planos de saúde revolta usuários

Foto: Tiago Coutinho/ MPRS

Tiago Conceição, do MP/RS, projeta 685 mil ações individuais até dezembro

Foto: Tiago Coutinho/ MPRS

O que as pessoas canceladas, autistas especialmente por causa da complexidade da fisioterapia, pacientes em home care e idosos, podem fazer?

A advogada Camilla orienta que devem usar o judiciário, principalmente as que estão em tratamento, “para fazer valer um direito que foi reconhecido pelo STJ no tema 1082, que diz que quando a pessoa está em tratamento médico, o plano de saúde não pode ser cancelado”.

Ela avalia que haverá grande demanda de ações, sendo que judiciário já está bastante abarrotado, “mas por conta da irresponsabilidade, dada a máxima vênia, da atitude das operadoras de, sabendo que existe esse entendimento, mesmo assim cancelam os planos”, lamenta a presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP.

Conforme o Ministério Público (MP/RS) a judicialização das questões de saúde disparou nos últimos anos. O Conselho Nacional de Justiça apurou que, em 2020, foram distribuídas 355 mil ações individuais relacionadas à saúde. Em 2021, o crescimento foi de 17%. Em 2022, o aumento foi de 12,5%. Em 2023, o acréscimo chegou a 21,3%, sempre em comparação com o ano anterior.

O estudo projeta para 2024 o ingresso de 685 mil ações até dezembro, destaca o promotor de Justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Proteção do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa, Cível, Família e Sucessões, Tiago Conceição.

O dirigente do Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas da Defensoria Pública do RS, Felipe Kirchner, informa que não houve registros de reclamações junto ao órgão. “No geral, entendemos que os cancelamentos unilaterais constituem prática ilegal, até mesmo porque muitos estavam claramente voltados a excluir da cobertura consumidores com doenças graves”, ressalta o defensor.

Planos perderam na Justiça

Com relação à legislação, os planos de saúde já estão fazendo um movimento há algum tempo. No começo, trabalharam com a questão da interpretação jurídica.

“Durante 24 anos a gente teve uma interpretação unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é o tribunal que cuida de causas cíveis, dizendo que o rol da ANS, listagem de tratamentos cujo cobertura é obrigatória pelas operadoras, era exemplificativo. Ou seja, ela dava exemplos de todo o caso, mas, havendo necessidade, o médico prescrevendo, tinha que haver a cobertura”, lembra a advogada Camilla Varella.

Na sequência, essa jurisprudência foi alterada em 2020, dizendo que o rol era taxativo. Além disso, na época do governo Bolsonaro, também foi emitida uma medida provisória, depois convertida em lei, que dizia que o rol era taxativo.

“Diante disso, ocorreu um movimento muito grande, principalmente de mães de autistas, que levou à publicação da Lei 14.454 de 2022, em que se declarava por lei, não mais jurisprudência, que o rol é exemplificativo”, contextualiza Camilla.

Por conseguinte, desde a promulgação da última lei, há em curso um movimento das operadoras de saúde que dificulta o reembolso, cancela plano e cria obstáculos na esfera administrativa de acesso à saúde dos pacientes, ou clientes.

“Mas a verdade é que isso não está sendo suficiente, porque a gente está tendo vitória na justiça para o usuário”, afirma a advogada da OAB-SP.

Todo esse contexto levou as operadoras a intensificar os cancelamentos, retomar o projeto da nova lei dos planos e costurar um acordo com presidente da Câmara dos Deputados.

“É um movimento muito preocupante”, avalia Camilla Varella. Segundo ela, não se pode esquecer que as operadoras de saúde já têm um lucro bastante substancial. “No entanto, querem mais sob o argumento do equilíbrio financeiro”.

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