OPINIÃO

Notícias de Gotham City

Publicado em 13 de julho de 2015

Imagino que todos tenham tido notícia do fato. No início de junho, ocorreu no Parque da Redenção, em Porto Alegre, outra jornada da Serenata Iluminada. A atividade é organizada via redes sociais e reúne milhares de jovens dispostos a ocupar os espaços públicos para garantir sua condição pública. No caso da Redenção, os manifestantes se opõem à proposta do cercamento que vem sendo cogitada há anos. Nas serenatas, levam velas, lanternas, violões, se divertem, debatem e se manifestam pacificamente.

Jornalistas presentes ao evento perceberam que algumas pessoas estavam sendo assaltadas quando se afastavam do grupo maior. Nas imediações, não havia policiamento. Então, o comandante do 9º BPM, tenente-coronel responsável pela área, foi informado do que estava ocorrendo pelo whatsapp. Sua resposta foi: “− Quem frequenta esse tipo de evento não quer BM perto. Agora aguentem! Que chamem o Batman! Gente do bem está em casa agora!”

"Não por acaso, as melhores polícias do mundo selecionam e formam seus policiais para que as pessoas sejam tratadas com urbanidade e respeito e que em qualquer abordagem, inclusive quando se tratar de usar a força, nos casos em que ela seja absolutamente necessária, isto não autorize qualquer incivilidade"

Foto: Igor Sperotto

“Não por acaso, as melhores polícias do mundo selecionam e formam seus policiais para que as pessoas sejam tratadas com urbanidade e respeito e que em qualquer abordagem, inclusive quando se tratar de usar a força, nos casos em que ela seja absolutamente necessária, isto não autorize qualquer incivilidade”

Foto: Igor Sperotto

Entre muitos dos seus colegas, o oficial encontrou apoio e compreensão. Em um país civilizado, atitude do tipo seria considerada evidência de inaptidão ao trabalho policial.

Vejamos os motivos.

Todo o policial com formação profissional deve saber que a principal arma a sua disposição não é aquele que carrega na cintura. Para o trabalho policial, a arma mais importante é a informação.

Quando os policiais possuem uma informação de qualidade, sabem o que fazer. Caso contrário, atuam às cegas e a possibilidade de que produzam bons resultados se aproxima de zero. A fonte de informação mais ampla e mais acessível para a polícia é a população.

Por isso, é fundamental para o trabalho das polícias que seus membros tenham a confiança do público. Quanto mais a cidadania confiar na polícia, mais irá informar aos policiais, mais irá demandar seus serviços e mais irá colaborar com investigações em andamento.

Em um contexto de confiança-colaboração, as polícias se tornam muito mais eficientes e as taxas de impunidade caem significativamente. Já quando as pessoas não confiam nas polícias, elas deixam de registrar ocorrências, param de solicitar proteção e se recusam a colaborar. Não por acaso, as melhores polícias do mundo selecionam e formam seus policiais para que as pessoas sejam tratadas com urbanidade e respeito e que em qualquer abordagem, inclusive quando se tratar de usar a força, nos casos em que ela seja absolutamente necessária, isto não autorize qualquer incivilidade.

A criminologia moderna acumulou toneladas de evidências a respeito das dinâmicas criminais que seguem desconsideradas no Brasil. Com respeito aos espaços públicos, sabemos que o medo do crime – ou a sensação de insegurança – faz com que as pessoas se isolem em suas residências, abandonando ruas e praças que, antes, eram locais de convivência. Um dos resultados desse processo − que elimina a vigilância natural − é que os espaços públicos passam a ser ocupados por pessoas envolvidas com o crime, especialmente à noite. Não por outra razão, uma política séria de segurança – pensada na confluência de vários serviços públicos – deve estimular e propor atividades culturais e esportivas noturnas, para a ocupação de espaços públicos.

Iniciativas como a Serenata Iluminada são importantes, assim, também para a prevenção do crime. A ideia de que os humanos se dividem em “pessoas do bem” e “pessoas do mal” costuma ser bastante útil na formação moral das crianças.

Quando contamos a elas histórias com “heróis” e “vilões”, a divisão maniqueísta corporifica virtudes e vícios, facilitando a tarefa pedagógica.

Adultos, entretanto, deveriam saber que as pessoas não são, em si mesmas, boas ou más, mas boas e más; que todos possuímos qualidades e defeitos; que carregamos possibilidades trágicas e que, a depender das nossas circunstâncias, ocorre de agirmos escolhendo alternativas ilegítimas, ilegais ou imorais. A propósito, estudos de autorrelato (self report studies) sobre práticas criminais mostram que quase todas as pessoas cometem um ou mais crimes, em algum momento de suas vidas, especialmente quando muito jovens. O ser humano, entretanto, não pode ser reduzido a um gesto. Ele é maior e mais complexo do que uma ação viciosa ou virtuosa. Por isso, não deveríamos permitir que as pessoas fossem tratadas a partir de “rótulos”. Conceber que os milhares de jovens que se reuniam na Redenção naquela noite não eram “pessoas de bem” seria apenas ridículo, não estivéssemos falando de alguém a quem se confiou a responsabilidade de proteger pessoas, sem adjetivos.

Declarações do tipo conspiram contra a polícia; degradam a imagem da Instituição e ampliam seu descrédito entre a população. Reforçam, no mais, a imagem de uma polícia autoritária, ineficiente e orgulhosa do que não sabe. Bem, talvez seja a hora de parar de ler histórias em quadrinhos.

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