POLÍTICA

A mão nada invisível dos think tanks na vida dos brasileiros comuns

Como institutos, empresários e organizações supostamente isentas influenciam na política, na economia, na educação e até em golpe de Estado
Por Elstor Hanzen / Publicado em 9 de julho de 2024

A mão nada invisível dos think tanks na vida dos brasileiros comuns

Ilustração gerada por IA / Canva

Ilustração gerada por IA / Canva

O nome em inglês think tanks, traduzido como tanques de ideias, pode enganar, parecer distante ou vago, mas seus efeitos são concretos e próximos de todos nós. Empresários como Jorge Gerdau Johannpeter e Jorge Paulo Lemann (das Lojas Americanas, Ambev e 3G Capital, entre outros empreendimentos), organizações como Instituto Ling, Instituto de Estudos Empresariais, Movimento Brasil Livre (MBL), Movimento Todos pela Educação e Fundação Lemman, mais políticos e até professores, todos estão entre as forças que atuam para transformar essas ideias em realidade.

Os atores por trás dessas instituições e ideias costumam maquiar seus interesses sob o manto da suposta neutralidade. Contudo, são de perfil ideológico claro e atuam com diversos braços, desde a educação até os golpes de Estado, representando uma forma de fazer política que vem se tornando cada vez mais importante nos últimos anos.

NESTA REPORTAGEM
A partir da visão política ideológica liberal, eles influenciam sobre quem paga mais ou menos impostos; tipo de educação que as crianças recebem; serviços públicos que devem ser privatizados; o que é corrupção e o que não é.

“São grupos de interesses que se organizam para divulgar determinadas ideias, em geral, por fora das instituições políticas tradicionais, como partidos e sindicatos. Com isso, aparentam uma certa neutralidade, maquiando interesses próprios e setoriais. Representam, assim, uma forma de fazer política que vai se tornando cada vez mais importante nos últimos anos”, assegura o professor e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, que atua nos programas de Pós-graduação em História e Filosofia, Hernan Ramirez.

Essa é uma rede global com uma infinidade de fundações, institutos e associações, que promovem uma agenda compartilhada, além de movimentar grandes somas de dinheiro para combater as políticas de bem-estar social e fomentar a exploração econômica e a concentração de riquezas.

Segundo Ramirez, o empenho desses atores em formar candidatos em várias esferas para atuarem de acordo com suas premissas, dá-se pela dificuldade histórica que os burgueses têm para chegar ao poder mediante o voto.

“Por exemplo, impor ajustes não é um programa popular. Só na Argentina parece que eles venceram essa barreira com Milei, mas é um caso excepcional”, compara Ramirez.

“Em outros tempos, a chegada ao poder desses grupos era por meio de golpes, hoje é através dos think tanks”, afirma o professor da Unisinos.

Ele acrescenta ainda que por causa da crise dos partidos e do próprio Estado, que se transformaram em máquinas eleitorais e incapazes de formular políticas públicas como antes, tudo acaba facilitando a atuação destas estruturas alternativas.

Antony Fisher, empreendedor britânico e fundador da Atlas Network, é um pioneiro na venda do libertarianismo econômico à opinião pública. A estratégia era simples: nas palavras de um colega de Fisher, a missão era “encher o mundo de think tanks que defendam o livre mercado”.

Origem golpista

Um dos primeiros think tanks brasileiros foi o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que esteve no comando do golpe de 1964. De lá para cá, outros surgiram, em especial, durante a transição democrática. Entre 1983 e 1986 se fundam os Institutos Liberais que, de certo modo, foram a continuidade do IPES e se tornaram nos mais atuantes, geradores de outros centros que advogam por tais ideias.

Em 2016, por exemplo, “vimos como surgiu o MBL no contexto do golpe contra Dilma Rousseff, liberado por Kim Kataguiri, que tivera financiamento do Liberty Fund. Muitos desses thinks tanks agem propulsando “talentos” que crescem como outsiders, amparados pela descrença na política tradicional, algo que eles mesmo têm ajudado a instalar”, lembra Ramirez.

Conforme Ramirez, esse renascimento coincide com a mudança política na Sociedade Mont Pèlérin, o mais importante think tank neoliberal, que assumia um papel mais ativo na disseminação de tal ideário, “agora numa sorte de cruzada, que, na América Latina, vai na contracorrente da onda que se abre com a recuperação democrática, pois suas políticas estavam associadas com as ditaduras, em particular a chilena e argentina”, avalia.

“Em tempos mais recentes, foram importantes em diversos momentos políticos, como na época de FHC e, claro, nos governos Temer e Bolsonaro, pois, na maioria dos casos, são antipopulares e contra o desenvolvimentismo, pois representam os interesses das nossas elites associadas ao capital estrangeiro”, afirma o professor da Unisinos.

Raízes transnacionais

Pesquisador da Unisinos, Ramirez enfatiza que o maior mentor de think tanks vivo é, sem dúvida, Jorge Gerdau Johannpeter, empresário e presidente do conselho de administração da Gerdau.

Ele esteve presente na fundação dos Institutos Liberais e diversas outras ramificações, como Junior Achievement, que propaga o empreendedorismo, ou o Movimento Todos pela Educação, conhecido por pregar pela introdução de parâmetros neoliberais nas escolas.

Outra frente dessa linhagem, aclamada até há pouco, eram os acionistas das Americanas, J.P. Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, cuja loja agora está envolvida em uma fraude de R$ 25 bilhões, conforme investigação da Polícia Federal (PF).

Na década de 1990, o trio lançou a Fundação Estudar, que já formou mais de 70 mil alunos, informa site da organização. Na parte de apresentação da instituição, em Valores, há uma espécie de roteiro de autoajuda, desde sonhe alto até como deixar um legado. Lemann também está à frente da Fundação Lemann.

Jessé Souza, escritor, doutor em sociologia e professor universitário, observa que o trio sempre foi festejado como exemplos de empresários astutos e inovadores.

“Lehman, muito especialmente, é talvez o mais festejado multimilionário brasileiro e frequentemente tido como inspiração de muitos. A blindagem dos acionistas principais nos crimes e fraudes gigantescas é a marca distintiva do capitalismo brasileiro”, referindo que eles agora estão sendo poupados, tanto na investigação da PF como na divulgação dos seus nomes pela mídia brasileira.

“Aqui, no Rio Grande do Sul, temos o Instituto Ling, fundado pela família Ling, em que se destaca o herdeiro Winston Ling,  também um núcleo de relevância, que deu suporte ao bolsonarismo, inclusive na propagação de fake news”, cita Ramirez. Winston é autor da célebre frase “o Brasil precisa de mais desigualdade” e responsável por fazer a ponte entre Paulo Guedes e Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Essa aliança é típica, segundo o especialista, porque o liberalismo que pregam é o de mercado, não titubeando em se aliar com personalidades antidemocráticas, como o fez Friedrich Hayek, vinculando-se a Augusto Pinochet ou Jorge Rafael Videla, mesmo quando sabia que atentavam contra os direitos humanos.

“Por isso, não é uma casualidade que em Porto Alegre tenha lugar o maior convescote neoliberal do Brasil, o declinante Fórum da Liberdade, que todos os anos faz um desfile de algumas das suas figuras de maior relevo”, exemplifica Ramirez.

Em geral, o financiamento provém do capital mais concentrado de grandes empresas. Além disso, essas organizações recebem aportes ou auxílio organizativo do capital transnacional.

“Isso remonta a épocas do IPES e tem se mantido de diversas formas, pois existe uma forte circulação, agindo em redes que perpassam as fronteiras nacionais”, destaca o professor Ramirez. Para ele, assim colonizam estruturas sociais e estatais, em particular universidades e órgãos internacionais de fomento, mas sempre o discurso da neutralidade.

A mão nada invisível dos think tanks na vida dos brasileiros comuns

Fotos: Divulgação

Wagner Lenhart (Millenium, IFL e IEE), Jorge Gerdau Johannpeter (IE, Junior Achievement /Todos pela Educação), Hélio Beltrão (Mises) , Winston Ling (IEE) e Jorge Paulo Lemann (Lemman e Educar)

Fotos: Divulgação

Falta transparência

Doutor em Ciência Política e professor do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e em Estudos Estratégicos Internacionais da Ufrgs, Eduardo Munhoz Svartman produziu diversos estudos sobre os think tanks e orientou o trabalho de mestrado “Na batalha de ideias: objetivos, meios e ações da Atlas Network no Brasil”, publicado em 2020.

Svartman afirma que essas instituições liberais brasileiras não têm transparência em relação a suas fontes de financiamento, nem quanto aos atores e interesses por trás de suas ações.

Entretanto, segundo o cientista político, sabe-se que grande parte das receitas dos think tanks vem de doações privadas e organizações internacionais.

Atlas Network, por exemplo, é uma dessas instituições que recebe recursos e os repassam para cerca de 500 think tanks espalhadas mundo afora, 15 delas no Brasil. Ela também é uma das poucas que divulga essas informações.

Atlas repassou um montante de aproximadamente US$ 35 milhões para promoção de atividades de think tanks e financiamento de ações de institutos espalhados por quase todas as regiões do mundo, de 2010 até 2018, conforme dados divulgados na dissertação por Lucas Araldi, na pesquisa orientada por Svartman.

Um dos 15 think tanks a receber dólares para vender suas ideias junto a políticos e convencer a opinião pública sobre a importância do individualismo e do liberalismo econômico foi o Instituto de Estudos Empresariais (IEE) de Porto Alegre.

O IEE foi fundado em 1984, formado por uma comissão de 20 integrantes. O Instituto se apresenta como um centro de formação de lideranças, que se concentra na promoção de princípios de liberdade e responsabilidade individuais, Estado de direito e propriedade privada. O principal produto que oferece é o Fórum da Liberdade, que reúne empresários, intelectuais e políticos, e ocorre na capital gaúcha desde 1988.

Um dos líderes do IEE é o diretor de Comunicação José Pedro Gomes, que publicou um artigo no meio da pior tragédia climática da história do RS defendendo o Estado mínimo e atribuindo aos voluntários todas as soluções.

“Durante os resgates, vimos que o voluntariado foi o grande responsável pelo salvamento da maioria das vidas, com pessoas de todas as classes sociais se mobilizando, em um tom de igualdade e de forma descentralizada, arregaçando as mangas e se dedicando a ajudar o próximo, doando seu tempo e dinheiro. Enquanto isso, vimos o Estado agir de forma ineficiente (como de praxe)”, escreveu.

Outra organização bastante influente é o Instituto Millenium, também conhecido pelo acrônimo Imil (ou IMIL). Trata-se de um think tank brasileiro, com sede no Rio de Janeiro. Foi criado em 2005 pela economista Patrícia Carlos de Andrade e pelo filósofo Denis Rosenfield – conhecido professor da Ufrgs – para difundir uma visão de mundo liberal bem mais à direita do espectro político.

Entre os patrocinadores temos nomes como a  Editora Abril (de Veja), O Estado de S. Paulo, Grupo RBS, Universidade Estácio de Sá, Gerdau, Suzano, Porto Seguro Seguros.

Também, fortemente ligados ao Imil temos o ex-ministro Paulo Guedes, o comentarista Rodrigo Constantino (ex-Veja, O Globo, Valor, Isto É e Jovem Pan), o jornalista José Roberto Guzzo e os comentaristas da Rede Globo Demétrio Magnoli e Carlos Alberto Sardenberg, entre outros.

Atualmente o Millenium tem como CEO Wagner Lenhart, ex-diretor Institucional do Banrisul (governo Leite), Secretário Nacional de Gestão de Pessoas no Governo Bolsonaro, ao lado de Paulo Guedes no Ministério da Economia. Ele preside o Conselho de Administração do BDMG, além de conselheiro deliberativo de think tank, o Instituto de Formação de Líderes (IFL-SP), e é associado honorário do Instituto de Estudos empresariais (IEE).

Disputas

Lucas Araldi aponta em sua pesquisa que a maioria dessas instituições se volta para a produção de conteúdo para sensibilizar e obter o apoio da opinião pública em prol das ideias neoliberais.

“Todos os think tanks vinculados à Atlas, no Brasil, desenvolvem atividades de cooptação, na medida em que mantêm publicações em redes sociais, blogs atualizados e promovem eventos regularmente. Isso envolve publicação de textos de opinião, produção de podcasts, webinars e discussões sobre livros e artigos”.

Para o professor de pós-graduação em História e Filosofia da Unisinos Hernan Ramirez, a ideia de tudo é simples e efetiva, criminalizar a política, partidos e movimentos sociais tradicionais que estariam contaminados, seriam “ideológicos” e, portanto, os think tanks e seus membros estariam mais capacitados para prover soluções “técnicas”, “livres” da ideologia.

“Exemplo mais que manjado é a ladainha da independência do Banco Central, que vemos sempre puxar para os interesses mais concentrados e se aliar com personagens autoritárias”, cita.

Como um time de futebol

O presidente do Instituto Mises Brasil (IMB) Hélio Beltrão, outro think tank brasileiro, afirmou em entrevista em 2016 que essas instituições devem atuar como um time de futebol.

Segundo ele, a defesa seria a academia – professores e pesquisadores; os políticos, os atacantes; o meio de campo seria “o pessoal da cultura”, aqueles que formam a opinião pública.

Hernan Ramirez destaca, no caso Hélio Beltrão, filho do ex-ministro do Planejamento, Previdência e Desburocratização dos governos militares na Ditadura, o Hélio Beltrão pai.

“O pai dele foi membro do IPES, ou seja, a burguesia também herda cargos nas estruturas ideológicas. Campos Neto que o diga. E Beltrão pai e Campos avô foram filhotes da ditadura. Beltrão chegou a ser, pasmem, ministro da desburocratização! Sim, os neoliberais criam uma estrutura burocrática para acabar com estruturas burocráticas”, lembra.

De todo modo, mesmo se arvorando um think tank, pouco tem de criação de pensamento próprio, analisa Ramirez.

“A maioria deles só regurgita fórmulas vindas de fora, algo que os diferencia dos seus pares chilenos e argentinos, que têm sido mais originais, ou até guatemaltecos, pois naquele país centro-americano tem sede a instituição mais qualificada da todas”. A Universidad Francisco Marroquín, por exemplo, tem sido pioneira em formatar modelos dessa nova forma de fazer política.

Sonho brasileiro

Um dos produtos midiáticos mais bem-sucedidos dos think tanks é a cientista política guatemalteca Gloria Álvarez. Para os cientistas políticos ouvidos pela reportagem, ela é um exemplo que Kim Kataguiri e o MBL buscam imitar, característica comum a todas essas experiências.

“Se nos atemos aos títulos, os livros de Leandro Narloch remetem a bestsellers instalados no Continente por essa turma, tendo no Manual del Perfecto Idiota Latinoamericano sua obra mais acabada”, ressalta o pesquisador Hernan Ramirez.

Conforme os especialistas, há uma limitação criativa constante no pensamento neoliberal local. O Plano Real seria um caso tardio, que surfou na onda do Plano Brady.

“E de lá para cá parece que a fadiga de materiais nos pensadores neoliberais brasileiros só foi decrescendo. Paulo Guedes serve como ilustração, algo que nos alerta para sua dificuldade em construir um projeto hegemônico, tendo que se amarrar ou parasitar lideranças autoritárias”, conclui o professor de pós-graduação da Unisinos.

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