OPINIÃO

O seu primo inventou Bolsonaro

Por Moisés Mendes / Publicado em 12 de julho de 2024
O seu primo inventou Bolsonaro

Foto: Joedson Alves/ Agência Brasil/ Arquivo

“O extremismo tensionou o Brasil e há pelo menos seis anos toda convivência envolve conflito”

Foto: Joedson Alves/ Agência Brasil/ Arquivo

O seu primo que brigou com a tia para defender Bolsonaro e os filhos de Bolsonaro é o mesmo que enfrentou um colega de trabalho para combater a vacina contra a Covid e afronta agora um amigo bem próximo para defender o massacre de crianças palestinas em Gaza.

Seu primo é parte da normalidade, a partir do ponto de vista de quem se deslocou do centro para a extrema direita e daí não consegue sair. O extremismo tensionou o Brasil e há pelo menos seis anos toda convivência envolve conflito.

Esse primo extremista é o caso exemplar do brasileiro a ser examinado, no contexto do avanço do fascismo. Ele carrega e expressa um detalhe que está ao lado das questões políticas e ideológicas e até se confunde com posições nessa área, mas é mais desafiador e complexo.

É o detalhe que envolve a percepção do que é certo, ético e moral e confunde-se com posturas anticiência, anticonhecimento e antidiferenças. É mais do que questão ideológica, muito mais do que comparar direita e esquerda.

O Brasil que viu prosperar a extrema direita, a partir da ascensão do bolsonarismo, em 2018, vai conviver, como se fosse normal e para sempre, com manifestações de racismo, xenofobia e homofobia? Até quando seu primo dirá e fará o que anda fazendo?

O Brasil vai ter como natural que quase um terço da população aceite debater punições e até o encarceramento de mulheres estupradas que decidam interromper a gravidez?

É normal que pelo menos 20% da população deixe de vacinar os filhos por acreditar em “informações negativas” sobre os imunizantes disseminadas pelo WhastApp? Que 27% tenham medo de vacinas?

É possível normalizar as atitudes de quem se nega a reconhecer a segurança e os benefícios de medicamentos e procedimentos na área da saúde por convicções pretensamente científicas ou religiosas? É o que acontece no Brasil e se multiplica por toda parte.

Na Alemanha, a xenofobia está trazendo de volta o ativismo pelo nazismo, com manifestações públicas de apreço pela figura de Hitler. Foi criado, no parlamento Europeu, um novo partido de extrema direita que se chama “Europa das Nações Soberanas”, com participação de políticos alemães e franceses.

O partido Reunião Nacional, do fascismo francês, teve o maior número de eleitores no pleito para o parlamento do país, mesmo que tenha ficado como terceira força na ocupação de cadeiras. O maior eleitorado francês é da turma de Marine Le Pen.

Há um vínculo entre extremismo de direita e negacionismo, xenofobia e a depreciação de valores coletivos. O Brasil é considerado, desde 2018, pólo irradiador desses modelos.

E nem sempre foi assim. O seu primo não é uma figura brasileira relevante do século 20, mesmo que o extremismo exista desde tempos bíblicos e aqui tenha assumido vários formatos, como as células nazistas e integralistas. Eram células, em redutos, não era um extremismo de massa como agora.

Por isso a pergunta incômoda é a mesma que inquieta os europeus: o que ressuscitou a atração por tanto ódio? Por que, quase oito séculos depois do fim da guerra, ideias e pregações nazistas estão de volta em países que sofreram com o nazismo?

Por que seu primo converge para essas e outras ideias extremistas, mesmo que às vezes diga que as negue? O avanço do extremismo convive com a pregação, pelos próprios extremistas, de liberdades pretensamente absolutas. Seu primo é um libertário.

O fascismo que despreza o refugiado africano, que exalta a supremacia branca e rejeita a convivência com a diversidade, é o mesmo que defende liberdades.

O seu primo diz isso, não diz? Que todas as pessoas podem dizer o que querem, desde que sejam alinhadas com o extremismo do lado dele. Que é preciso combater o sistema. Que a política é o mal do mundo.

E o seu primo, que não vacina os filhos, que se nega a admitir a destruição da Terra pelo homem e que não acredita nos crimes de Bolsonaro, esse seu primo negacionista de classe média foi um flagelado da enchente.

Não um morador das ilhas do Guaíba, do Sarandi ou do Humaitá, mas do Menino Deus da classe média, onde as águas não vieram por cima, mas brotaram dos bueiros.

Em meio a milhares de gaúchos que perderam tudo com a tragédia de maio, lá está o seu primo, que não chegou a ficar sem nada, mas teve que sair de casa. Que saiu, voltou e continuou dizendo que ninguém tem culpa de nada. Que o mundo sempre foi assim.

Negacionismo, racismo, xenofobia, homofobia, tudo é normal para os brasileiros que circulam ao redor de um terço da população alinhada a quase tudo que envolva posições extremadas e preconceituosas. Esse um terço que propaga mentira, ódio e ignorância veio para ficar?

Um terço odeia Lula, um terço adora Bolsonaro, um terço rejeita cotas nas universidades, um terço extinguiria o Bolsa Família, um terço acha normal que a polícia invada bairros pobres atirando e matando crianças.

Seu primo é parte desse um terço, que ainda nesse ano encontrará algo mais para odiar. Foi ele, o seu primo, que inventou Bolsonaro, e não o contrário.

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

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