OPINIÃO

Uma nação politeísta?

Por Marcos Tonial / Publicado em 23 de julho de 2024
Uma nação politeísta

Foto: B3/ Divulgação

“Esses novos deuses não são onipresentes e oniscientes, mas possuem muito poder, não gostam de ser questionados e exigem muitos sacrifícios, oblações e bajulações”

Foto: B3/ Divulgação

Em uma conversa muito informal com meus amigos, sobre o contexto político e ideológico brasileiro, defendi a ideia de que a nossa nação está abandonando o monoteísmo. Estamos vivendo uma fase de transição para o politeísmo. Explico. Desde a chegada do nosso colonizador, foi-se estabelecendo o domínio do deus judaico-cristão, conhecido entre os mais íntimos como Jeová.

E assim, desde a eliminação de grande parte dos povos nativos e, mesmo com a introdução forçada dos povos africanos, Jeová tornou-se senhor quase absoluto dos corações brasileiros, sejam eles católicos, evangélicos, espiritas. E até outras religiões não cristãs o incorporaram no seu panteão. Acontece que nos últimos tempos, outros deuses estão surgindo e fazendo concorrência com Jeová. Esses novos deuses não são onipresentes e oniscientes, mas possuem muito poder, não gostam de ser questionados e exigem muitos sacrifícios, oblações e bajulações.

Comecemos com o “deus mercado”. Não é onipresente, pois não tem acesso a todos os espaços que imaginamos e não consegue chegar próximo ao quarto escuro da sua casa, porém sem ele praticamente não conseguimos fazer qualquer transação financeira.

Além de dominar as almas financeiras de seus clientes, é um deus muito consultado, principalmente pelos meios de comunicação. A cada ato de um governante, é preciso saber como reagiu o “deus mercado”; a cada eleição, é necessário consultá-lo para ver se sua reação talvez possa parecer nervosa.

Não raro, reage de forma negativa à possibilidade de um governante desenvolver políticas que possam fortalecer a democracia, ou beneficiar as populações mais pobres. Afinal, não é muito prudente desobedecer a um deus tão poderoso num sistema onde ele dá as cartas.

É um deus que exige muitos sacrifícios: em tempos de crise, precisamos sacrificar diversos setores para acalmá-lo, sobretudo os investimentos nas áreas sociais (educação e saúde sabem bem); a arrecadação dos impostos deve ser direcionada para satisfazer suas exigências, afinal ele se alimenta das oblações financeiras quando sente que os lucros podem não ser satisfatórios; ao exigir liberdade para suas ações, por vezes se incomoda com a presença “nefasta” do Estado e, contradição das contradições, exige dele sua presença nos momentos de crise financeira, exigindo o doce sangue do sacrifício financeiro de muitos.

Esse deus do consumo, do investimento e dos lucros não se contenta com qualquer sacrifício. São bilhões destinados aos seus desejos e se satisfaz sobretudo com os juros advindos da dívida pública brasileira, os quais são oferendas garantidas e sem questionamento.

Depois temos o “deus forças armadas”, e aqui entenda-se as forças federais, estaduais e municipais. Não é novo na história do nosso país que as diferentes instituições que são responsáveis pela segurança nestes três âmbitos têm muito claro sua importância e sua força. Nós, meros mortais, não podemos questionar seu poder, sua abrangência e sua incorruptibilidade.

É uma espécie de deus que não é do bem, nem do mal, está acima disso. Os seus sacerdotes são dotados de conhecimentos e força capazes de estremecer pessoas simples. Desejam obediência total. Não podem ser questionados. São autoridades!

Exigem sacrifícios, gostam de ver escorrer sangue pelos altares e seguidamente são chamados por alguns de seus devotos para interferir em áreas que não são muito do seu agrado, tal como a política.

Historicamente em nosso país, assumiram a governança para seus diferentes propósitos, eliminando seus inimigos e estabelecendo o silêncio generalizado.

Como eu disse, exige muita obediência, pois é um deus disciplinador. E, como a maioria dos deuses, não gosta de ter questionadas suas atitudes, pois crê ser um deus infalível e incorruptível.

Seus discípulos agem de diferentes formas com os cidadãos, pois suas atuações em bairros de pessoas abastadas são bem diferentes do que acontece na periferia. Seguidamente fazem distinção de cor em suas atuações e não reconhecem os exageros em suas atuações.

E, por fim, o “deus agronegócio”. Esse deus é muito peculiar. Assim como o “deus forças armadas”, acredita ser incorruptível e não pode ser questionado, porém é um deus calmo, adora vangloriar-se de gerar vida, fazer brotar sementes, trazer divisas, alimentar as massas, mas fica enfurecido quando lhe acusam de escravocrata, grileiro, mau distribuidor de renda e abusador de agrotóxicos.

Tem junto a si, tal como um santo tem seu discípulo, um fiel escudeiro: os meios de comunicação. Esse serviçal adora enaltecer seus feitos e, ao mesmo tempo, cobra as oblações do Estado de forma regular. A cada ciclo das safras, deve o Estado servi-lo. E nunca está satisfeito. Por mais que milhões, bilhões em recursos, sejam derramados em seu sacrossanto altar, é um deus que nunca se satisfaz e sempre quer mais. É exigente de seus discípulos e faz da terra seu chão para novos rituais.

Sendo assim, Jeová encontrou concorrentes nos tempos modernos. Já não domina sozinho os corações e mentes dos brasileiros, e terá de conviver por um bom tempo com novos deuses, os quais vão permeando a vida de tanta gente e exigindo as oferendas de que tanto gostam. É ou não uma nação politeísta?

Marcos Paulo Tonial é professor, Mestre em História e diretor Sinpro/RS

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