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Marketing tóxico ajudou jogatina na internet a dragar R$ 23,9 bi dos brasileiros  

Extra Classe conversou com o especialista Nino Carvalho, que defende um markenting mais responsável nas redes e explica como funciona o apelo ao jogo
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 6 de setembro de 2024
Marketing tóxico ajudou jogatina na internet a dragar R$ 23,9 bi dos brasileiros  

Foto: Acervo/Divulgação

Único brasileiro reconhecido como Fellow CIM (ou FCIM), a mais alta chancela de Marketing da Europa, Nino Carvalho é consultor e professor na Europa e no Brasil

Foto: Acervo/Divulgação

Os brasileiros perderam R$ 23,9 bilhões em verdadeiros cassinos on-line de junho de 2023 até junho de 2024. Jogos como o Tigrinho viraram febre no país a partir da divulgação de perfis com grande número de seguidores.

Até mesmo celebridades se transformaram em garotos e garotas propaganda, muito embora a publicidade de jogos de azar seja crime no Brasil.

Em paralelo, já está se regulamentando o setor de apostas esportivas, as bets, e escândalos envolvendo jogatina ilegal estouram por todos os lados, com a prisão de personalidades das redes como Nego Di e, mais recentemente, Deolane Bezerra.

O certo é que a compulsão de apostadores de todas as idades já reflete um grande problema social. Para entender melhor a dinâmica do incentivo da jogatina on-line, Extra Classe conversou com o especialista em marketing Nino Carvalho.

Único brasileiro reconhecido como Fellow CIM (ou FCIM), a mais alta chancela de Marketing da Europa, Carvalho é consultor e professor na Europa e no Brasil.

Ele está lançando o livro Mais Marketing, menos guru (DVS Editora). Na obra, Carvalho tece reflexões valiosas sobre as responsabilidades sociais de quem atua no Marketing, na busca de impactos além de resultados de vendas.

Extra Classe – Você colocou os pés no Brasil no meio de uma megaoperação policial que derrubou um esquema de jogos ilegais e que movimentou bilhões. Influenciadores presos, imóveis e até aviões apreendidos sob suspeitas de golpes e lavagem de dinheiro e mandados de prisão para empresários. Estamos obviamente falando de ilegalidades, mas há também conglomerados que, em pouco tempo, se formaram para explorar jogos on-line no Brasil. O que dizer disto?
Nino Carvalho – Essas empresas são extremamente sofisticadas e bem preparadas. Não tem ninguém que é amador; não tem garoto que montou joguinho na garagem. Existem grupos grandes por trás. Bem no início da explosão da internet, na primeira década dos anos 2000, já houve movimentos que trouxeram para o Brasil apostas on-line. E o que era feito na época, em certa medida também continua funcionando hoje.

EC – Por exemplo?
Carvalho – A história de uma empresa sediada num país que a permite; daí vem um fulano e faz uma espécie de tradução do conteúdo para o português e divulga aqui. Sempre fora do território brasileiro. Isso, ainda que possa haver um bloqueio por questões de combate a ilegalidade, é temporário porque migram de servidores para servidores e burlam com a tecnologia.

EC – Contravenção com agilidade dos tempos de hoje, então?
Carvalho – Quem quiser, procurando no Google, encontra onde fazer jogo ilegal e outras coisas ilegais também. Não precisa nem entrar na deep web. Agora, qual é o grande barato? É que, mais recentemente, ao menos parte dessas empresas com um, digamos, pé na ilegalidade busca se legalizar. É a história do filme do Poderoso Chefão! Essa abordagem de bet ou Tigrinho, coisas parecidas, foi uma maneira muito inteligente, no sentido mau da palavra, de se travestir em algo lúdico. Algo gostoso, uma brincadeira para passar a ideia de que você pode ganhar dinheiro brincando, só clicando e tal.

IDEIA BRILHANTE USADA PARA O MAL

Marketing tóxico ajudou jogatina na internet a dragar R$ 23,9 bi dos brasileiros  

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

EC – Uma das táticas que você questiona no seu conceito de marketing tóxico, então?
Carvalho – No meu ponto de vista, usado para o mal. Mas, muito inteligente. Brilhante! Os safados pegaram essa coisa ilegal e pensaram: “putz, olha, aposta pode dar problema; vamos fazer o seguinte, vamos colocar aqui um joguinho; joguinho é bacana”.  O pessoal já usa isso no telefone, já clica lá, já compra uma coisinha ou outra, não tem nem aquela barreira de colocar um dinheirinho, as pessoas já compram o aplicativo, o joguinho é tranquilo.

EC – Você chega a dizer que isto foi o primeiro passo, não? Qual o outro?
Carvalho – Então, eles deram esse primeiro passo e houve uma aceitação tremenda. Sem qualquer reação de quem deveria tentar fiscalizar, colocar regras e, eventualmente, bloquear. Isso é algo muito precário no Brasil. Na Europa se vê o movimento atual da própria União Europeia tentando, em conjunto, buscar formas de trabalhar com essa dinâmica bem estratégica das bets. É aquela história, no Brasil, passou. A coisa ficou sendo “gostosa”, sendo disseminada e “opa, não tá dando nada”.  Agora, já que tem aqui também algumas zonas cinzentas na lei, se começou a fazer publicidade disso. E aí, um dos movimentos, também para poder não configurar como aquela publicidade que a gente conhece, um anúncio em revista, outdoors, televisão, no primeiro momento foi trabalhado muito com influenciadores.

EC – Por quê?
Carvalho – Era uma coisa ainda um pouco complicada e os influenciadores serviam para poder fazer essa disseminação para as pessoas de uma maneira muito rápida e massiva. Como se fosse uma televisão de antigamente. Ao mesmo tempo, dando credibilidade. Eu acho que esse que é o grande barato, a grande safadeza e a grande irresponsabilidade.

EC – O Marketing de influência?
Carvalho – A apropriação da credibilidade para poder validar, chancelar aquele produto. Se eventualmente você pergunta para um influenciador, “olha só, você tem como divulgar aqui o meu cigarro?” e o cara fala, “não, cigarro não, porque é uma coisa que faz mal à saúde das pessoas”, se contorna.  “Mas, e um joguinho? “Ah, joguinho é tranquilo”. Eu acho que os influenciadores olharam para isso tudo como outra oportunidade de negócio. Como a gente já sabe que são pessoas que, muitas vezes, não se preocupam com o que estão promovendo pois promovem até empresas que fazem trabalho análogo à escravidão, promovem empresas que falam que são boas para a diversidade, entretanto não contratam ninguém que não seja homem, branco, hétero, coisas assim. Deu no que deu.

EC – O que deu?
Carvalho – Foi mais uma coisa para ganhar dinheiro. Alguns, de fato, na linha “bicho, eu divulgo qualquer coisa, mete esse troço também”. Só que outros, pelo menos em algum momento, mais recentemente para ficar claro, já sabiam que isso não era uma coisa inofensiva. Isso arrebenta com a sociedade. Particularmente com pessoas que têm menos instrução. Mas, seguiram, seguiram com esse processo. Inclusive, como é público, alguns se associaram a empresas e até golpes, direta ou indiretamente. Nessa semana, além daquela Deolane, a notícia de apreensão do avião do Gusttavo Lima, ícone aí para jovens. Na mesma operação que estourou esquema ilegal de jogos, né?

O PRIMEIRO A FILTRAR

EC – Ok, mas há os hoje chamados influenciadores porque se criou um ambiente para eles, não?
Carvalho – Aí é a grande questão. Tem quem tente dar um peso muito forte para o canal, falando que as redes sociais são ruins. Eu não acho. Elas são canais. O primeiro a filtrar deveria ser aquele que divulga. Aí, sim, no caso que estamos falando foram os influenciadores. Claro que a própria rede social deve ter suas responsabilidade e isso está sendo falado agora com a questão do X. Eu também acho que as redes sociais não devem ser impunes, mas tudo isto está vindo agora, assim, mais em voga na mídia, porque a discussão chegou no âmbito político e na movimentação de muito dinheiro.  Mas, os influenciadores divulgam muito lixo há muito tempo.

EC – Sem dúvida, mas vamos dar um exemplo?
Carvalho – Você tem um cara chamado Rei do Fígado, Lever King, dos Estados Unidos. É um influenciador fortão que divulgava que ele ficava forte e saudável comendo animais crus. Muitos jovens repetiram esse comportamento; às vezes até pais mandavam os filho fazer isso para ficarem fortes e saudáveis. Típica história que só dá problema quando começa a morrer gente, né? Por isso é que eu acho que o Tigrinho e as bets estão pegando agora. Começou a afetar, de fato, pessoas que estão completamente em desgraça por conta de jogos. Fora as forças políticas envolvidas. Mas, o Rei do Fígado e os cassinos não são os primeiros casos de produtos ou serviços questionáveis que são divulgados por influenciadores.

EC – Voltando aos jogos on-line, o que dá para falar do poder de atração deles, além dos influenciadores?
Carvalho – Uma coisa. Você já deve ter entrado nesses jogos. Não são realmente deliciosos? É uma delícia, é divertido, é bacana, tem uma musiquinha legal e é uma coisa bastante inocente, né? Quem é que vai desconfiar que vai perder dinheiro lá? No caso de Portugal, mais que joguinhos, eu vejo meus alunos mais jovens, por exemplo, viciados. Não sei se é o adjetivo correto, mas muito dedicados, pelo menos, a parte de apostas esportiva. Como são proibidas no momento em Portugal, eu pergunto cara, isso aí é proibido, como é que você consegue entrar nisso?.

EC – E a resposta?
Carvalho – Ah, professor, você usa VPN, você vai no site tal, mudou o endereço para cá, para lá. Então, como falamos antes, consegue-se encontrar formas; sabem que é ilegal e mesmo assim estão lá jogando. Algumas pessoas conseguem ter controle. Já outras, vamos dizer, mais vulneráveis em termos de educação, em termos até de cognição, só percebem o estado que chegam quando não tem nem mais de onde tirar dinheiro. Não tem mais como vender carro, não tem mais como pegar dinheiro do banco. São pessoas em desgraça, que não tem o que fazer. Perderam. A vidas delas acabaram.

PATROCÍNIO DE CLUBES ESPORTIVOS

EC – Um caminho de dependência quase sem volta
Carvalho – E eu fico chocado ao ver como é que isso está entranhado. A quantidade de dinheiro que movimenta, inclusive, não só com influenciadores. Por exemplo, clubes esportivos que são patrocinados pelas tais bets. Cara, é uma coisa impressionante. Só impérios realmente faraônicos conseguem fazer investimentos em tantos clubes de futebol. Tanto sobre essas equipes de futebol quanto sobre os influenciadores, tem uma coisa que falo: É total descaso pelo outro e um olhar muito egoísta só para a própria conta bancária.

Not available

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EC – Sei que estou falando com um especialista, mas, o mercado não tem dó.
Carvalho – Triste um clube de futebol que trabalha com coisas que são muito importantes para a sociedade – esporte, saúde, tirar criança da rua – se curvar a isto. Obviamente, gestores e líderes têm consciência do que realmente é, mas, aí, a cabeça é: “Bicho, isso é ilegal? Não, não é ilegal. Então foda-se; coloca aí para rodar e vamos tirar o máximo de grana que puder. Quando der algum problema, a gente sai fora”. Essa mentalidade é muito cruel e já há Bancos também se associando a algumas bets. É aquilo, enquanto a lei dar brechas, não importa se é imoral, se é uma coisa completamente fora da ética. Vai se continuar fazendo e, depois, se vê.

EC – Mas, sempre haverá o jeitinho, não?
Carvalho – Como outras indústrias fizeram também. A do tabaco, até hoje, extremamente criativa. Também bancos e corretoras de investimento são muito criativos para poder olhar buraquinhos, zonas cinzentas na lei para poder se vender. Uns bons anos atrás, uma corretora chegou a fazer uma campanha publicitária online em que o mote era: invista na bolsa sem risco. Não há essa possibilidade! Só que havia lá uma brecha na lei. Viram e deixaram esse negócio circulando durante um tempo. Então, é algo similar.

EC – Essa coisa tem prazo?
Carvalho – Não vai acabar tão cedo. Só quando tiver legislações que regulem de fato o que está acontecendo. Até lá vai ser aquele discurso que está em moda agora no Brasil e em outros lugares do mundo, o troço de que cada um tem que ser dono do seu próprio destino; fazer o que quiser, liberdade total. Só que a liberdade total que funciona para um, não funciona para outros. A capacidade de discernimento que eu e você temos para poder fazer essa coisa de aposta, não é a mesma coisa que outro tem.

EC – Vamos ficar enxugando gelo?
Carvalho – Só para se ter uma ideia, não deveria ser uma coisa para maiores de 18 anos? Não há qualquer controle de idade! Tem muito a se trabalhar ainda. Começaram agora a pegar forte em cima dos influenciadores. É claro que é uma coisa importante, mas acho que, se de fato reduzir a questão deles, ainda terá publicidade, patrocínio de clube esportivo. Vão se encontrando formas. Tem ainda a história de que, se o influenciador A não topar, talvez o influenciador B tope porque, para ele, cada um decide o que é legal e pronto. A gente está nesse ciclo aí desgraçado.

LIBERDADE TEM LIMITE

EC – Volta e meia essa história da liberdade sempre aparece
Carvalho – Eu sou super a favor de liberdade de expressão; eu adoro isso. Todo mundo tem que ter, mas, liberdade de expressão não é, por exemplo, dizer que tem mulher que tem que ser estuprada, não é dizer que negro tem que ser pesado em arroba, que tem que cortar a cabeça de um juiz, né? Eu não sou analista político, nada disso, mas imagino que essa disputa de bets vai ser puxada para a seara da liberdade de expressão. Cada um faz o que quiser. Não é assim.

EC – Por quê?
Carvalho – Lembra quando o McDonald’s foi processado por causar obesidade infantil? Foi dito mais ou menos o seguinte: cada um pode falar o que quiser; eles chamam pessoas para comer comida gordurosa e os pais têm autonomia para levar suas criança para comer alface. Só que essa guerra não é justa. Eu tenho uma máquina, uma empresa que está com muito dinheiro e poder de mídia para falar o que quiser,  gritar alto para o universo inteiro ouvir, e eu tenho que batalhar contra  todo esse apelo feito com joguinhos, com aplicativos, com desenho animado, com o Ronald McDonald, aquela coisa toda? Tenho que competir como o pai chato falando olha, filho, faz mal para você; come alface que é melhor?  A luta é muito desigual. Então sim, deveria haver um controle muito sério e de cima para baixo.

EC – Já falamos sobre as armadilhas dos jogos online, sobre as redes sociais, os influenciadores. E o papel dos algoritmos nessa história toda?
Carvalho – Os algoritmos, são formas de tentar entregar para cada indivíduo uma experiência ideal para ele. A função seria entregar para o Nino algo que ele goste e que pode ser diferente do que o Marcelo goste. Isso poderia ser uma coisa muito positiva em vários aspectos. Entretanto, até certa medida, é possível usar o algoritmo ou o enganar. Profissionais de Marketing Digital, agências e os influenciadores conhecem bastante o algoritmo e conseguem influenciar.

EC – Exemplos?
Carvalho – O próprio Google quando dá os resultados de busca, dá de acordo com o que parece, para ele, mais importante. Só que esse importante tem uma série de variáveis. Algumas são mais importantes do que outras, tem mais peso do que outras. Por exemplo, a popularidade. Se o algoritmo vê que tem alguma palavra, tipo jogo do Tigrinho sendo usada com muita frequência; por muitas pessoas. Para o algoritmo, isso deve ser muito importante. Então, ele tenta mostrar, para poder ajudar – porque ele é burro nesse sentido – aquela informação, imagem ou publicidade para um número maior de pessoas.  Ele acha que é uma coisa boa, mas não sabe que o estão usando para poder fazer cagada.

ALGORITMO É VILÃO OU VÍTIMA?

EC – Mas, dá para dizer que o algoritmo seja tão inocente assim?
Carvalho – Olha, de certa forma, meio que o algoritmo acaba sendo uma certa vítima. Se vai evoluindo aos poucos, depende muito de investimento e até da boa vontade dessas grandes empresas de tecnologia, particularmente Google e Meta que dominam os ambientes das redes sociais. Elas precisam também querer fazer intervenções para ter algoritmos mais inteligentes, mais espertos, mais malandros já que as pessoas vão aprendendo como os utilizar. Algumas, para questões comerciais dentro das regras, outras para poder disseminar ideias dentro das regras também,  mas outras para coisas de desgraça, coisas que vão acabar com a vida dos outros, mentiras, fake news.

EC – Bom, o conceito regulação esteve muito presente até agora. Uma regulação das redes sociais, da internet, que foi tirada de pauta pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), de certa forma, permeia tudo isso que nós conversamos aqui?
Carvalho – Certamente. É um ponto importantíssimo. Em março desse ano a União Europeia passou a primeira legislação para regular o que é feito em termos de Inteligência Artificial com o foco em preservar o ser humano. No Brasil, você tem, no máximo, o Marco Civil que já tem muita brechas porque a tecnologia avançou desde a sua aprovação. Opinião Nino, internet não é terra de ninguém. Tem, de fato, de regular. Como já falei, esse troço de cada um fala o que quiser tem que partir do princípio de que as pessoas têm que ter o mesmo espaço e oportunidades para poder se manifestar. Aí, tudo bem, dá para cada um falar o que quiser.

EC – A quem interessa essa terra de ninguém?
Carvalho – Só beneficia quem usa as redes, a internet, de maneira extremamente egoísta e sem qualquer preocupação com ética e moral. Para quem quer um vale tudo. Aquele que usa qualquer artifício para ganhar dinheiro ou poder político e tem poder de alcance. Econômico, inclusive. Se a gente continuar dessa maneira, usando a internet e as redes sociais como terra de ninguém, a disputa nunca vai ser igualitária. Até porque existe uma questão mais íntima das pessoas. Ao passo que um Pablo Marçal ou um Bolsonaro da vida falem o que quiser, sem qualquer tipo de consequência ou filtro, há quem, do outro lado, tenha uma pouco mais de consciência de coletivo. Com um pouco mais de noção de respeito ao próximo e até de caráter, não consegue lidar, responder na mesma moeda.

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