ECONOMIA

A Reforma Tributária ainda está por vir

A modernização tributária é bem avaliada por analistas, mas falta taxar grandes fortunas e dividendos, que benefício de aposentados não seja considerado renda e mexer na tabela do Imposto de Renda
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 11 de setembro de 2024
A Reforma Tributária ainda está por vir

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); secretário-geral da Mesa do Senado Federal, Gustavo A. Sabóia Vieira; presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), durante a promulgação da Reforma Tributária no Congresso

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

A questão tributária atual do Brasil é uma discussão de décadas. Em um feito histórico, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aprovou e promulgou, em dezembro de 2023, o que é chamada a primeira etapa da busca de um sistema de impostos mais justo para todos. É a Reforma Tributária sobre o consumo que está no momento em processo de regulamentação no Parlamento.

Já a segunda fase – a que prevê a reestruturação da forma de pagamento de impostos sobre a renda, lucros, dividendos e patrimônio –, considerada a mais importante por apresentar os pressupostos para reduzir, de fato, a desigualdade entre quem paga, não paga e como se pagam os impostos, acabou adiada.

O projeto original enviado pelo Executivo ao Congresso Nacional tinha cerca de 300 páginas.  Após modificações, o texto segue da Câmara dos Deputados para a avaliação do Senado e já passa das 500 páginas. Senadores já sinalizam por mais mudanças.

Há questionamentos sobre o que foi aprovado na Câmara. Em especial, sobre o descumprimento da alíquota média de 26,5% para a tributação sobre o consumo.

A trava foi assegurada pelo Senado durante as discussões com o Ministério da Fazenda. Algumas estimativas agora projetam essa alíquota em cerca de 27,3%.

O teto foi furado por mudanças de última hora para beneficiar setores como o agronegócio.

Com 319 deputados, a bancada ruralista aprovou 18 emendas, incluindo a não taxação sobre a proteína animal na cesta básica. Só isso aumentou a alíquota em 0,53 ponto percentual.

Nota técnica do Ministério da Fazenda confirmou que a alíquota padrão do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) pode chegar a 27,99%, depois das alterações feitas pela Câmara dos Deputados na regulamentação da proposta. Assim, o país poderá ter o maior IVA do mundo, à frente da Hungria, que tem taxa de 27%, a maior entre os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

E o IVA se desdobrou

A ideia de adotar um único tributo, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) para simplificar o complexo sistema de taxação sobre o consumo no Brasil, foi adaptada no Projeto de Emenda Constitucional (PLP) 68/2024.

Em vez de um tributo único, a proposta cria dois impostos principais: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que funcionará como um IVA federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o qual será um IVA subnacional.

Ambos seguem a lógica do IVA. Incidem sobre o valor agregado em cada etapa da cadeia produtiva, mas são divididos entre diferentes esferas de governo.

A CBS unificará o PIS e a Cofins. Já o IBS, o ICMS (estadual) e o ISS (municipal).

Reforma ou modernização?

A Reforma Tributária ainda está por vir

Foto: Acervo pessoal

Paulo Kliass, Doutor em Economia pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal

Foto: Acervo pessoal

Paulo Kliass, Doutor em Economia pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, mesmo tendo uma visão crítica do processo que não chama de reforma, mas de modernização tributária, vê as mudanças com bons olhos.

“Com a unificação das alíquotas, a guerra fiscal entre estados e municípios vai acabar. Eles não poderão mais reduzir unilateralmente o ICMS e ISS para atrair empresas ou setores. Além disso, as disputas judiciais entre União, estados e municípios sobre a cobrança de tributos também devem diminuir, já que as competências tributárias serão mais claras, evitando que questões fiquem sub judice”, entende.

O PLP ainda estabelece o Imposto Seletivo (IS). A ideia é taxar produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O objetivo é desestimular o consumo e reforçar a receita pública federal.

Consumidor paga o pato?

A plena não cumulatividade no PLP estabelece que o imposto pago em uma etapa da produção pode ser descontado do devido na próxima etapa. Assim, se uma empresa paga tributo pelos insumos, pode descontar esse valor ao calcular o imposto sobre o produto final. Isso evita que o imposto se acumule em cada etapa.

A ideia é tornar o sistema mais justo e reduzir o custo final dos produtos.

Dão Real Pereira dos Santos, auditor da Receita Federal, diretor de Relações Internacionais do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) e membro do Instituto Justiça Fiscal, acredita em uma “recalibração” de preços, que pode acabar onerando os consumidores finais.

Um dos motivos se dá pelo fato de que as empresas exportadoras que não pagam impostos receberão de volta toda a tributação paga durante sua produção.

Para compensar a devolução aos exportadores, o preço dos produtos pode subir para os consumidores nacionais. Além disso, a reforma irá unificar a tributação de serviços e mercadorias, o que pode aumentar o preço em alguns casos, explica.

O cashback

A Reforma Tributária ainda está por vir

Foto: Acervo Pessoal

Nathalie Beghin, economista

Foto: Acervo Pessoal

Uma inovação apresentada é o cashback. Ele foi uma forma que o governo encontrou para devolver parte dos impostos pagos para auxiliar famílias de baixa renda.

Direcionado para as famílias que recebem até meio salário mínimo por pessoa, o mecanismo visa devolver até 100% dos impostos pagos nas contas de luz, água, esgoto e gás de cozinha; 20% dos impostos pagos em outros produtos e uma redução de 20% no imposto IBS de forma geral.

Nathalie Beghin, economista, Doutora em Políticas Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Colegiado de Gestão no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), assim como Kliass e 99,9% de seus colegas economistas entendem que o primordial para uma justiça tributária, realmente, no Brasil só pode ser alcançado com a reforma na tributação da renda. Afinal, como a base da arrecadação do país se encontra no consumo e não na taxação da renda e patrimônio, são os mais pobres que pagam proporcionalmente mais impostos no país.

Ela, no entanto, vê que o cashback e outras medidas propostas pelo governo federal introduzem componentes de promoção da equidade dentro da tributação indireta, da tributação do consumo.

“Se a maior parte da renda das famílias empobrecidas vai para alimentação, zerar a alíquota para a cesta básica de alimentos in natura e devolver 100% do imposto cobrado sobre o gás pode ser um grande ganho do ponto de vista do combate à desigualdade. Como as pessoas empobrecidas são também mulheres e pessoas negras, uma medida desse tipo não só combate a pobreza, como contribui também para combater a desigualdade de gênero e raça”, entende Nathalie.

E a renda?

Kliass é enfático: “Para uma Reforma Tributária ser considerada, de fato, uma reforma, são necessárias mudanças substanciais na estrutura tributária”. Segundo ele, sem tocar nas questões de renda, dividendos e patrimônio, somente uma “modernização tributária” será feita.

“Não se mexeu nas alíquotas do Imposto de Renda (IR), não se mexeu no Imposto sobre a Propriedade, não se mexeu no Imposto sobre Grandes Fortunas”, detalha o economista.

A preocupação se acentua quando, na progressividade da taxação da renda, quem ganha acima de R$ 4.664,68 é “considerado rico neste país” e paga a alíquota máxima do Imposto de Renda, 27,5%, ironiza Kliass.

Imposto de Renda e grandes fortunas

Em agosto, o presidente Lula reafirmou suas intenções de  isentar do IR quem ganha até R$ 5 mil mensais. A promessa de campanha ainda não saiu  devido ao equilíbrio fiscal. Lula também considera avaliar a isenção de impostos sobre lucros ou resultados das empresas para os trabalhadores.

Presidente da Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul (CUT-RS), o professor Amarildo Pedro Cenci comemora o compromisso de Lula, mas diz que não pode parar por aí.

“Além dessa isenção e da correção da tabela (do IR), o movimento sindical entende ser fundamental taxar grandes fortunas e dividendos. Também reivindica que o benefício dos aposentados não seja considerado uma renda. Hoje, na hora que o trabalhador se aposenta, o benefício passa a ser uma renda que é tributada dentro de uma tabela já injusta, não corrigida”, afirma.

Complexidade técnica e delicadeza na política

Se Nathalie compreende que há um compromisso firmado de se apresentar após as eleições a segunda fase da reforma, ainda há incertezas e até uma certa preocupação no ar.

Não que pairem dúvidas sobre as boas intenções do governo, diz Santos, do Sindifisco. “Eu, particularmente, acho que acertou o governo em não encaminhar essa reforma da renda agora”, declara.

Ele fala da obrigação de o Executivo apresentar uma proposta para a tributação da renda e patrimônio em até 90 dias após a aprovação e sanção presidencial da Emenda Constitucional que estabelece mudanças na tributação sobre o consumo no país.

Como não havia penalização prevista por descumprimento do prazo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), optou por priorizar a regulamentação da primeira etapa da Reforma Tributária e projetos da pauta microeconômica do governo, além da chamada “agenda verde”.

Ao contrário da primeira fase que exigia uma alteração constitucional, a segunda pode ser viabilizada via PL. Isso, em tese, permite um trâmite mais rápido devido ao quórum simplificado e à aprovação em turno único.

Mas não é bem assim. Os interesses em jogo requerem um amplo debate entre as casas legislativas – Câmara e Senado – e o Executivo.

Haddad chegou a afirmar que o governo optou em resolver o problema do consumo antes de abordar a questão da renda por dois motivos. Primeiro, porque o tema do consumo é mais complexo tecnicamente. Segundo, porque a discussão sobre a renda pode ser tratada com lei ordinária e é politicamente mais delicada.

É a correlação de forças

A Reforma Tributária ainda está por vir

Foto: Acervo Pessoal

Dão Real Pereira dos Santos, auditor da Receita Federal

Foto: Acervo Pessoal

Nas palavras do próprio ministro, um tema político “muito mais espinhoso”, ao destacar que no Brasil o imposto sobre a renda acaba penalizando os setores mais pobres e favorecendo os mais ricos pela baixa progressividade da tributação.

Santos é mais direto: a correlação de forças no Congresso não facilita a vida do governo Lula.

“Primeiro, o cenário que se apresentou na reforma da tributação do consumo foi um cenário em que o setor econômico se mobilizou de forma muito forte, controlou a reforma da tributação sobre o consumo e o setor popular não conseguiu se mobilizar. Essa é a realidade. A tributação sobre o consumo é uma tributação sobre o consumidor, ou seja, sobre os mais pobres. E quem determinou as regras dessa tributação foram os setores mais ricos”, lamenta.

Sem a alteração desse panorama, o dirigente sindical indaga qual seria a expectativa. “A chance de entrar uma reforma progressiva de renda no Congresso Nacional e sair uma coisa pior é muito grande”, responde.

Exemplos não faltam. Lobbies, por exemplo, deixaram de fora do Imposto Seletivo agrotóxicos e alimentos ultraprocessados. “Quer coisa que prejudique mais a saúde?, indaga Santos.

Para o dirigente sindical, o princípio da neutralidade no PLP que sujeita todos os produtos e serviços a uma mesma alíquota, fora as exceções, pode acabar fazendo com que classes mais abastadas tenham tributação reduzida em compras que no atual princípio da seletividade seriam consideradas “supérfluas”. Exemplos seriam motos e carros de alta cilindrada, jet-skis e embarcações de luxo.

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