A política como virose e a crença infantil na vitória do bem sobre o mal
Foto: Gage Skidmore/Wikimedia/CC 2.0
Foto: Gage Skidmore/Wikimedia/CC 2.0
A recente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA pode ter surpreendido desprevenidos, iludidos, ou todo aquele que insiste em raciocínios viciosos e em uma crença infantil de que o mundo, dividido entre bons e maus, certamente escolheria o menos pior entre dois candidatos.
A vitória acachapante de Trump sempre me pareceu o cenário mais provável na eleição de um país cujo único direito inalienável é o de matar, seja o de matar o Outro dentro do próprio território, como fizeram com o genocídio dos seus povos originários e com os sucessivos ataques a populações negras; seja o de matar o Outro fora das terras da Federação, como fazem há décadas invadindo países periféricos, coincidentemente ricos em petróleo, exportando a ideologia da “democracia estadunidense”, como se os EUA fossem, de fato, um país democrático, ou então intervindo nos sistemas políticos de países cujos governos propõem um alinhamento diferente das pretensões do império decadente ou sonham eles mesmos em se tornar uma democracia aos moldes estadunidenses, como ocorreu nos golpes da Guatemala e do Brasil no século passado; seja o de matar a Si mesmo, em se tratando de uma nação cujo povo sofre não só com a pandemia de opioides e suicídios, mas também com jovens, que após anos sendo isolados e humilhados, invadem escolas e assinalam seu batismo de “verdadeiros americanos” matando professores e crianças.
A vitória de Trump é um sinal de alerta para os rumos da política internacional e nacional. Até que ponto insistiremos em candidaturas que, exceto pela integridade ou moralidade do candidato enquanto indivíduo, não causam nenhum ruído ou diferença substancial em relação ao pretendente a tiranete? No caso de Kamala Harris, o que ela e o Partido Democrata teriam a oferecer ao eleitor quando jogam e falam a mesma linguagem trumpiana ou Republicana: apoio ao massacre de Israel à população de Gaza; a prática de uma política xenófoba anti-imigração; a falta de compromisso com a necessidade de combater o Aquecimento Global (uma vez que todo presidente dos EUA é mais um gerente da indústria armamentista e petroleira).
No mundo das democracias burguesas ocidentais, nos últimos anos, acompanhamos cada vez mais a disputa entre candidaturas de Extrema Direita e Direita Neoliberal (muitas vezes encabeçadas por pessoas oriundas da Esquerda) e, enquanto o jogo eleitoral for disputado desse forma, pouco resta às pessoas de Esquerda a não ser lamentar a eleição dos extremistas ou os voos neoliberais de seus próprios quadros e governos.
A diferença de Trump, Bolsonaro e Pablo Marçal em relação a outros atores do espectro da Direita resume-se a um jogo da política enquanto virose (e me perdoem o trocadilho) virulenta.
O vírus é uma espécie de pirata de célula, que precisa dela para se reproduzir. Embora existam nos corpos barreiras naturais como a pele e demais defesas do organismo que resistem à atuação e à reprodução viral, quando um vírus se instala em um ciclo lisogênico, ele passa a escravizar a célula a fim de produzir mais partículas virais e, por isso, tem interesse em manter essa célula viva; porém, quando um vírus faz um ciclo lítico, típico das doenças agudas, ele destrói o organismo invadindo, reproduzindo-se e explodindo a célula para milhões de novas partículas invadirem e explodirem novas células, muitas vezes levando à morte do organismo devido à proliferação viral.
Durante décadas, estávamos acostumados a ver em candidatos do Centrão a atuação virótica, uma vez que, instalados no sistema, desejavam mais manter sua sobrevivência, privilégios e emendas, repetindo o ciclo lisogênico. Quando se reproduziam, seus filhos assumiam o cargo dos pais e se beneficiavam do mesmo sistema que enriqueceu sua ancestralidade.
Mas, desde o fenômeno Berlusconi e Trump, o vírus tem preferência pelo ciclo lítico, invadindo o sistema (apesar das defesas constitucionais e jurídicas) para adoecê-lo e eliminá-lo.
Por isso, a eleição de tipos virais como Trump causa tanto temor, pois é o tipo de agente infeccioso que não vai lutar pela manutenção do organismo a fim de manter sua sobrevivência, mas que deseja antes de tudo explodir o sistema de dentro, proliferando virulência, matando o corpo hospedeiro, de modo a fazer nascer uma nova ordem na qual ele possa exercer o poder feito um autocrata.
A esquerda já teve um pensamento viral: invadir as instituições para mudar seu DNA, de modo a dar o poder e os bens de produção aos verdadeiros produtores da riqueza, os trabalhadores. Com o fim da URSS e da utopia comunista, setores majoritários de esquerda se reinventaram e decidiram jogar nas “quatro linhas da constituição”, fazendo uma gestão do poder atenta às preocupações sociais, como o combate à forme, por exemplo.
Porém, ao assumir o poder, seus ritos e sua linguagem do poder, parte da esquerda se perdeu nas estruturas de um corpo estranho, tornando-se ela mesma uma força de governança das políticas neoliberais embora sonhe com a abertura de espaços para humanizá-las. Ao entrar num corpo e ao aprender sua linguagem e regras, parte da esquerda tornou-se o próprio sistema que tanto combateu e, agora, em momentos de crise, não consegue propor agendas de grandes mudanças ou reformas sociais, uma vez que isso não faz parte das pautas e das demandas das democracias burguesas.
Nesse cenário, quem assume o potencial de reformador ou revolucionário são os novos vírus, que apontam as falhas e limitações do sistema para então invadi-lo e destruí-lo por dentro (o que também passa pela reforma do judiciário e pela eleição de bancadas cada vez mais reacionárias), repetindo o ciclo lítico.
E o que resta à esquerda fazer?
Produzir e atuar na sua própria linguagem. Propor e fomentar a Reforma Agrária, a demarcação das terras indígenas, a taxação das grandes fortunas, a redução da jornada de trabalho, o imposto sobre heranças, a preservação da natureza, a educação integral e de qualidade a partir da remuneração digna aos professores. Nenhuma dessas lutas significa abdicar do estado democrático burguês. Mas todas elas significam lutar pelos direitos dos mais vulneráveis e por uma política de Profanação, como conceituou o filósofo italiano Giorgio Agamben: a de restituir à população, ao povo, ao profano em suma, tudo aquilo que o poder sacralizou; isto é, escolheu para si e apartou da população.
Só mesmo declarando nossos desejos e indicando nossos inimigos, conseguiremos materializar rumos de ação que sejam coerentes com nossas lutas históricas, em vez de nos transformarmos em meros gestores do neoliberalismo que, diante de um Trump ou Bolsonaro, só vão poder mostrar suas credenciais de bons cidadãos.
Alguém ainda acredita nisso?
Dedico este texto ao companheiro de livros e ideias José Luís Ferraro.
Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS, do Colégio Gabarito e escritor.