CULTURA

Mujica: “O único milagre é estar vivo”

José Weis / Publicado em 14 de novembro de 2024
Mujica O único milagre é estar vivo

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

Pepe: “Tenho este ofício de camponês, preciso de tempo para minhas próprias coisas que não me dão nada”

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

José Alberto Mujica Cordano, Pepe Mujica, agricultor e militante de esquerda, enfrentou a ditadura militar no Uruguai (1973-1985), participou da luta armada, foi ministro da Agricultura no governo Tabaré Vasquez, e, mais recentemente, ajudou a costurar a maior coalizão de esquerda do país, a Frente Ampla, pela qual foi eleito presidente e governou o país de 2010 a 2015. Depois, foi eleito senador, com mandato de 2015 a 2018.

Descendente de imigrantes bascos e italianos de Gênova, filho de agricultores, Mujica começou a militar no Partido Nacional, criou o União Nacional junto ao Partido Socialista e ingressou no Movimento de Libertação Nacional Tupamaros, pelo qual participou da tomada de Pando, em 1969. Por sua militância, sofreu perseguições e foi parar quatro vezes na prisão: ao todo, passou quase 15 anos encarcerado. “Fui preso porque corria muito devagar”, brinca.

Atualmente, está com 89 anos. Nascido em maio de 1935, em Montevidéu, Pepe enfrenta problemas de saúde e vive recluso na sua chácara, em Rincón del Cerro, na zona rural da capital uruguaia. Sua vida no retiro mantém as marcas da simplicidade, dignidade, sabedoria e humor de sempre, mas ele está inconformado com as privações que seu atual quadro de saúde lhe impõe, registra a recém-lançada biografia, Palavras para Depois – Conversas com Pepe Mujica, de Fabián Restivo (Editora Coragem, 2024, 278 p.).

A obra, assinada pelo jornalista do Página 12, saiu em português antes de ser lançada na Argentina. “Não esperávamos que a edição brasileira fosse publicada antes da edição argentina, que imaginei seria lançada em maio na Feira Internacional de Buenos Aires, inclusive com a presença do Pepe”, confessa o editor da Coragem, Thomás Vieira. “Cada capítulo representa uma lição de vida, de coerência política e uma amadurecida lucidez”, conceitua Vieira.

Restivo veio à capital gaúcha para autografar a biografia de Mujica na 70ª Feira do Livro, de 1º a 20 de novembro. O livro pode ser definido, ainda, como um vigoroso testemunho para a posteridade sobre a vida de uma das maiores e mais intrigantes personalidades políticas da América Latina dos últimos tempos.

Silêncios e muito a dizer

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Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

O jornalista Fabián Restivo, autor de Palavras para Depois: uma longa charla com Pepe Mujica

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

Como o próprio subtítulo deixa antever, Palavras para Depois transcende os limites da entrevista jornalística e adentra o intrincado território de uma charla entre companheiros de lutas, ideais, vitórias e amargas derrotas.

Restivo conta como surgiu a ideia do livro, ainda inédito no seu país: “Foram conversas com Pepe que duraram dez dias seguidos. Eu ia até sua chácara, às vezes pela tarde, às vezes noite adentro”.

As conversas sobre temas como a vida, a militância, a política, o amor, a juventude e a relação com a natureza eram entrecortadas por longos silêncios, mas seguiam enquanto o autor acompanhava o “Velho” – como ele se refere de forma carinhosa a Pepe – em suas tarefas cotidianas.

“A briga dele é com a doença, está muito furioso porque não pode mais comer churrasco”, revela o autor. Pepe resiste: “Eu me aposentei, sim, mas não. E como tenho este ofício de camponês, preciso de tempo para minhas próprias coisas que não me dão nada”, resume Mujica.

Distanciamento

Mujica O único milagre é estar vivo

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

Amigo de Mujica, Restivo soube dosar a distância para não invadir a privacidade nem perder a chance de fazer uma grande entrevista

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

A ideia de biografar um dos últimos revolucionários vivos da América Latina foi sugestão de Daniel Praceres, companheiro de Mujica na Frente Ampla e amigo comum de Pepe e Restivo. Na ocasião, o próprio Mujica advertiu: “Está bem, mas eu não quero mais contar minha história. Há muito por dizer, vamos deixar isso para depois”, com o que Fabián Restivo acabou concordando.

A cada visita, detalha o autor, acontecia uma sessão de trocas, de experiências e vivências, ensinamentos e questionamentos. “Quando chegava na chácara, encontrava Pepe às voltas com suas atividades no sítio onde mora com sua eterna companheira Lucía. Às vezes, o papo era regado a um mate rioplatense ou com um trago de rum da Jamaica.”

Os dois aproveitam os encontros para falar de temas tão díspares, mas, afinal, tão presentes, como amor, morte, literatura, democracia, canteiros e estufas, criação de galinhas e a preparação para o cultivo de nozes pecã, a situação da política, economia e ecologia, desde Rincón del Cerro ao grande mundo.

Restivo soube dosar, ao longo da sua escrita, a distância entre o respeito para não invadir a privacidade de seu entrevistado e não perder a chance de fazer um grande registro do que o Velho Pepe tem a dizer e deixar palavras para depois. Fabián obteve êxito.

O livro é bom de ler. Quase dá para escutar a incrível quantidade de palavrões que Pepe dispara a todo instante e sua leveza e empatia com a atividade de criação e plantação no seu sítio. “Legado? De jeito nenhum. Sou um velho que viveu e conta o que viveu a partir da sua experiência, tratando de torná-la útil para alguém. E nada mais!”, esbraveja a certa altura da entrevista.

Tempos solitários

Mujica O único milagre é estar vivo

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

“Sou um velho que viveu e conta o que viveu a partir da sua experiência, tratando de torná-la útil para alguém”

Foto: Gonzalo “oso” Pardo/ Editora Coragem/ Divulgação

Para começo de conversa, Mujica desenvolve um pequeno ensaio filosófico para responder à pergunta inicial do autor: “Você tem esperança na humanidade?”, indaga Restivo.

“Tenho esperança biológica, porque os tempos são solidários. Intelectualmente, tenho dúvidas, mas no final, o que manda são as tripas. Seria bom incorporar esse conceito. É ideológico porque você não consegue dizer não à vida e tem a fantasia de ter que pensar nela. Por quê? Porque o único milagre que existe acima da terra para cada um de nós é o milagre de estar vivo. Viemos do nada… e vamos para o nada! E há uma pequena licença dentro desse nada chamado vida”.

Aliás, um detalhe delicioso do livro é o senso de ironia profunda em Pepe, sua fala eivada de palavrões ou expressões chulas quando se refere aos “pelotudos”. Atento, estudioso, leitor concentrado e ativo em tudo o que ainda consegue fazer, Pepe Mujica enfrenta com serenidade e coragem as condições que sua doença lhe impõe aos 89 anos de vida. De acordo com a médica Raquel Panone, Mujica estaria curado de um câncer de esôfago, mas enfrenta uma fibrose e uma patologia renal após a radioterapia.

Ciente da sua condição, Pepe deixa um testemunho neste livro, um testamento que pode ser uma viável agenda para que se saia do beco sem saída do neoliberalismo, que, mais do que nunca, ameaça as democracias, alimentando o apelo ao ódio. Com raro humor, ele desencoraja eventuais perguntas sobre voltar à militância política: “Sou candidato ao caixão, em primeiro lugar. Depois, a um punhado de cinzas, como deve ser”.

Mujica conta sobre sua passagem pela presidência, os encontros com grandes líderes mundiais e suas posições e atitudes perante esses senhores, sem nunca deixar de expor sua visão e opinião.

“Este é um livro não apenas para ser lido, mas meditado e refletido nesse mundo que está aí”, recomenda Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul, que assina o texto da contracapa. “Pepe Mujica, de maneira sábia, nos provoca a não naturalizar as coisas, e nem a achar que as mudaremos de uma hora para outra”, aponta.

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