Guardiola e os homens que não sabem perder
Foto: Reprodução/YouTube
Foto: Reprodução/YouTube
Pepe Guardiola é um técnico consagrado como a maior expressão da combinação de magia, beleza e efetividade no futebol. Foi quem apresentou ao mundo a geometria da troca de passes do Barcelona, anos atrás.
Um sistema de jogo poético, lírico, mas a serviço da racionalidade e da busca pela vitória. Os poetas da bola de Guardiola faziam gols. Agora, ele tenta repetir no poderoso Manchester City parte da fórmula que outros técnicos se esforçam para imitar.
Guardiola é a razão aplicada a cada jogo, como se fosse uma máquina de pensar e aplicar estratégias e transformar uma partida num espetáculo sempre surpreendente.
O técnico sabe explicar o que pensa e aplica, porque a razão é que põe a funcionar o que os outros esperam que aconteça pelos impulsos da paixão.
Mas a cabeça de Guardiola também falha. O cara racional se fragilizou, porque assim são os homens que parecem não ser, mas também são imperfeitos.
Numa terça-feira, dia 3, apareceu para os jornalistas, numa coletiva de imprensa, com arranhões na testa, no nariz e em outras partes do rosto.
Perguntaram como havia se machucado e ele respondeu numa boa:
“Com meu dedo, minha unha. Quero me machucar”.
E foi o que saiu nos jornais. Até que, com a repercussão da declaração, Guardiola foi às redes sociais e escreveu:
“Fui pego de surpresa com uma pergunta no final de uma coletiva de imprensa, ontem à noite, sobre um arranhão que apareceu em meu rosto e expliquei que uma unha afiada causou isso acidentalmente. Minha resposta não teve a intenção de forma alguma de minimizar a grave questão da automutilação”.
E mais adiante fez um alerta:
“Eu sei que muitas pessoas lutam contra problemas de saúde mental todos os dias e gostaria de aproveitar este momento para destacar uma das maneiras pelas quais as pessoas podem procurar ajuda”.
Acrescentou informações sobre uma entidade da Europa que dá suporte a pessoas com problemas de saúde mental, a Samaritans, e ficou por isso mesmo. Guardiola se arranhou porque perdeu?
O jornalismo foi raso, precário, superficial e irresponsável na abordagem do caso de Guardiola. Por quê? Talvez porque ele seja um dos deuses quase intocáveis do futebol.
O contexto pode ajudar a entender o que aconteceu e acrescentar informações ao que não foi explicado. O caso não é banal, nem singelo, nem apenas futebolístico. É complexo, por envolver uma figura pública mundial com posições progressistas claras antifascismo e antirracismo.
Guardiola deu a declaração depois que o seu time empatou com o Feyenoord, da Holanda, por 3 a 3. Empatou depois de estar ganhando de 3 a 0. O time antes considerado imbatível de Guardiola não vence há seis jogos. Há muito tempo não atua mais como atuava. E Guardiola parece inseguro.
Por quê? Porque pode ter se agarrado à imagem do homem que não conhece derrotas. Que reinventou o futebol de um jeito que só ele e uns poucos conseguem entender e que assim venceria tudo e todos.
Sendo gênio e invencível, claro que não poderia perder nunca. Até aparecer com a cara lanhada por marcas de unhas.
Deu a declaração, com certo desleixo, e depois se retratou, mas talvez não venha a abordar o que importa: por que chegou ao ponto de se automutilar com a unhas depois de um jogo?
Seria porque o poderoso Guardiola se sentia acima de tudo e de todos? Quando passou a perder, apresentou-se como um homem imperfeito, um mortal qualquer.
Mas a pergunta permanece? O que é verdade o que é mentira na fala de Guardiola? O que é verdade e mentira hoje, em qualquer área? Por que não se sabe mais o que o que uma foto, como essa dos arranhões, significa?
O jornalismo da grande imprensa, cada vez mais raso, não soube oferecer algo além do pedido de desculpas do técnico.
O técnico perfeito faria um golaço se admitisse que se fragilizou, que não está acima de ninguém e que também perde. Essa não é uma questão qualquer restrita ao mundo do futebol.
Guardiola precisa admitir que os homens devem saber perder. Os machos que se acham invencíveis, no futebol e na política, estão fazendo os estragos percebidos e outros ainda submersos, em todas as áreas.
Guardiola não poderia, pela imagem que tem e pela capacidade de influenciar pessoas, em especial os jovens, dar a entender que repete o comportamento do que existe de pior nas estruturas de poder, no futebol e em todas as formas das relações humanas.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.