O G-20, o apagão de professores, a educação de qualidade e o financiamento justo
Foto: Campanha/Divulgação
Estamos encerrando o ano letivo de 2024 e planejando a próxima década por meio do Projeto de Lei (PL) nº 2.614/2024 que tramita no Congresso Nacional sobre o novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034. Este ano que estamos terminando, bem como a última década, foram muito difíceis, desalentadores e ameaçadores para a educação pública e a formação de qualidade no Brasil. Sofrem os professores, os estudantes e as escolas públicas que são a grande maioria. O projeto de “qualidade empresarial” disputa com o projeto de “qualidade social” estão todas as políticas e pautas educacionais.
Para o especialista e estudioso professor Luiz Carlos de Freitas (Unicamp), a primeira coisa a fazer é atuar de forma coletiva e lutar para que se ganhe consciência da gravidade deste período e dentro do possível lutar por uma escola que prepare a juventude para esta realidade tentando construir outra forma e conteúdo para a escola – seja como política mais geral, seja como resistência em seu dia a dia.
É nesta perspectiva que a Declaração final de líderes de países do G20, principal fórum de cooperação econômica internacional, realizado no Rio de Janeiro em 18 e 19 de novembro de 2024, incorporou temas e recomendações relevantes que podem contribuir como horizonte para pensarmos a educação enquanto política de estado e projeto de nação.
O G-20 e o GT de Educação e Cultura do C20 assumiram na Carta de compromissos o reconhecimento do “papel crucial da educação e da formação de qualidade para a garantia dos direitos humanos, a justiça fiscal no financiamento de uma educação e cultura públicas de qualidade e de forma sustentável, a valorização dos profissionais da educação, a educação plenamente inclusiva e o enfrentamento aos desafios das novas tecnologias – em especial, da inteligência artificial” na educação.
O Brasil, sob a responsabilidade do Estado, por meio de políticas públicas, em conjunto com toda a sociedade, precisa assumir seriamente um compromisso definitivo e prioritário de financiamento estatal da educação, de qualidade social da educação e da formação, promovendo equidade racial e de gênero, a valorização da carreira docente e do uso pedagógico e formativo das diversas tecnologias em prol das atuais e futuras gerações.
Desafio do financiamento
O Brasil descumpriu a maioria das metas dos Planos Nacionais de Educação (PNEs) 2001-2011 e 2014-2024. No Projeto de Lei (PL) nº 2.614/2024 que tramita no Congresso Nacional, que prevê o novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034, o compromisso com o financiamento da educação está muito aquém de nossa demanda, frágil e sem garantias de ampliação dos investimentos necessários de acordo com os direitos à educação para todos.
Segundo análise do Fórum Nacional de Educação (FNE), no seu item 18 do novo Projeto de Lei, “Financiamento e infraestrutura da educação básica” e objetivo 18, “Assegurar a qualidade e a equidade nas condições de oferta da educação básica” (Brasil, 2024), são apresentadas quatro metas relativas a esse item e objetivo. Nota-se que os títulos apresentados provocam um questionamento: trata-se apenas do financiamento da educação básica? A leitura das metas, entretanto, nos levam a concluir que se trata, também, do financiamento da educação em todos os seus níveis, etapas e modalidades. Contudo, não há nenhuma referência a respeito do financiamento da educação superior.
Na Constituição Federal do Brasil estão previstos nos artigos 212, 205 e 208 os investimentos em educação: 18% da receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Já os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem aplicar, no mínimo, 25%. Em grande parte, também, a exemplos dos PNEs, descumprem-se estes percentuais constitucionais e ninguém é responsabilizado.
No contexto brasileiro atual, agrava-se a condição do financiamento da educação através da mercantilização, privatização e terceirização – por meio das Parcerias Público-Privadas (PPP). Os fundos públicos para a educação pública estão sendo disputados e destinados a empresas que estão se responsabilizado pela gestão de redes de escolas, conforme abordado na coluna anterior.
A Declaração de Líderes do G20 endossa e apoia a tributação progressiva como “uma das principais ferramentas para reduzir as desigualdades internas, fortalecer a sustentabilidade fiscal, promover a consolidação orçamentária, promover crescimento forte, sustentável” (página 19) e reconhece a importância do financiamento para uma educação de qualidade.
A manifestação do GT de Educação e Cultura do C20 reafirma, também, “a justiça fiscal no financiamento de uma educação e cultura públicas de qualidade e de forma sustentável ” (página 61) e reforça a necessidade e seriedade de maiores investimentos. Sem financiamento suficiente e contínuo nunca teremos educação e formação de qualidade em nenhum lugar do mundo, muito menos no Brasil que possui um déficit histórico na educação.
Desafio da carreira e valorização docente
As declarações do G-20 e do GT Educação e Cultura C20 alertam que o apagão docente é uma ameaça global e a valorização dos profissionais da educação precisam serem assumidos pelos Estados nacionais. O G-2-0 observa “com preocupação a atual escassez global de professores. Políticas de desenvolvimento profissional capazes de qualificar e reter professores, além de estimular o interesse de professores no início da carreira, tornaram-se um componente essencial do desafio multidimensional de preparar nossas sociedades para o futuro.” (parágrafo 27)
Já o GT de Educação e Cultura do C-20 prossegue reafirmando que “Valorizar todos os profissionais da educação e da cultura, assegurando condições de trabalho e saúde, com prioridade para o bem-estar mental, por meio de financiamento adequado. Garantir planos de carreira e remuneração com salários compatíveis à riqueza econômica dos países, promovendo igualdade salarial para profissionais da educação, incluindo educadores especiais, em relação a outros profissionais com o mesmo nível de formação, como forma de enfrentar a escassez de profissionais da educação.” (página 63)
Resta-nos uma indagação que pode ser, também, uma indignação brasileira: porque no Brasil, tanto a nível Federal, mas principalmente nos Estados e em boa parte dos Municípios, estamos na contramão dessas recomendações?
Recentes estudos publicados revelam aumento exponencial de professores temporários nas redes estaduais do Brasil, evidenciando que, pela primeira vez, em 2022, as redes estaduais tinham mais professores temporários do que efetivos. Este cenário se manteve em 2023, com 51,6% de temporários e 46,5% de efetivos. Em seguida, o estudo mostra o cenário em cada uma das 27 Unidades da Federação. Em 15 estados há mais docentes temporários do que efetivos e, de 2020 a 2023, 67% dos estados aumentaram a quantidade de temporários e diminuíram a de efetivos.
Os estudos apontam impactos negativos de professores temporários sobre os resultados da aprendizagem dos estudantes, como: a alta rotatividade docente que pode prejudicar o vínculo com a comunidade escolar e o efetivo desenvolvimento dos estudantes; os processos seletivos utilizados pelas redes de ensino, que em sua maioria não utilizam boas etapas de seleção e, as condições de trabalho dos professores podem ser piores que a dos efetivos.
Equidade Racial e de gênero
Os participantes do G-20 e do GT C20 se posicionaram, também, sobre a necessidade de equidade racial e de gênero ao reconhecerem que todas as “mulheres e meninas enfrentam barreiras específicas devido a diversos fatores, tais como falta de acesso a saúde, educação, desenvolvimento da carreira, igualdade salarial e oportunidades de liderança. Reconhecendo que a violência baseada em gênero, inclusive a violência sexual contra mulheres e meninas, é preocupantemente alta nas esferas pública e privada, nós condenamos todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas e lembramos nosso compromisso de acabar com a violência baseada em gênero, inclusive a violência sexual, e combater a misoginia on-line e off-line.” (parágrafo 32).
Portanto, o GT de Educação e Cultura C20 reafirma a necessidade de políticas que promovam “a educação formal, não formal e popular que abrace as culturas de todas as minorias raciais e étnicas, povos indígenas, pessoas de ascendência africana, africanos, asiáticos, pessoas de ascendência asiática, migrantes, refugiados, comunidades ciganas, dalits, populações sem-terra e sem-teto, mulheres, meninas, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, incluindo pessoas autistas, e aquelas com outras condições de saúde, como pessoas vivendo com HIV, demência e outros grupos em situações de vulnerabilidade, incluindo populações ribeirinhas.” (página 62).
No Brasil, na última década, retrocedemos em todos estes direitos agendas, mesmo sendo um país de maioria de negros e pardos, mulheres e jovens.
Tecnologias digitais e Inteligência Artificial
Por fim, não menos importante e necessário, os países reconheceram “o potencial das tecnologias digitais e emergentes para reduzir as desigualdades” e promover “acesso equitativo à informação, ao conhecimento e aos recursos digitais por meio de conectividade significativa, alfabetização digital e autonomia, reconhecendo a tecnologia como uma linguagem e a internet como um território para a educação e a cultura” (página 63).
Para tanto, afirmam, é preciso garantir “comunicação inclusiva e acessibilidade em plataformas e conteúdos digitais para pessoas com deficiência”, fomentar a “colaboração entre setores por meio da apropriação digital centrada na comunidade, oferecendo ferramentas e dispositivos digitais personalizados que atendam às necessidades específicas de cada comunidade. Além disso, fortalecer e estabelecer redes para ampliar o compartilhamento de recursos.” (página 63)
Sobre a Inteligência Artificial (IA), os países fizeram um apelo por “um engajamento global fortalecido e eficaz no debate sobre direitos autorais e direitos conexos no ambiente digital e os impactos da inteligência artificial sobre os detentores de direitos autorais. (…) Nós reconhecemos, dizem os países do G-2-, a contribuição da infraestrutura pública digital para uma transformação digital equitativa e o poder transformador das tecnologias digitais para reduzir as divisões existentes e empoderar sociedades e indivíduos, incluindo todas as mulheres, meninas e pessoas em situações de vulnerabilidade”.
O GT Educação e Cultura C20 afirma ser necessário “garantir decisões centradas nos direitos humanos em relação ao uso ético da inteligência artificial”, assegurando princípios como privacidade, segurança, responsabilidade e proteção de dados no uso de tecnologias na educação e na cultura, implementando salvaguardas robustas – especialmente para crianças e adolescentes – contra possíveis violações de privacidade, aplicadas de forma consistente por atores públicos e privados.” (página 63)
Que a ética tenha algo a dizer sobre o tema da técnica e da IA, ou que a técnica esteja submetida a considerações ética, eis algo que se segue pelo simples fato de que a técnica é um exercício do poder humano, isto é, uma forma de ação, e toda forma de ação humana está sujeita a uma avalição moral.
Para o filósofo Hans Jonas, a técnica, independente do seu uso para o bem ou para o mal, tem em si um lado ameaçador, que a longo prazo poderá ter a última palavra. E, pelo bem da autonomia humana, a dignidade exige que possuamos a nós mesmos e não nos deixemos ser possuídos por nossas máquinas, temos que trazer o galope tecnológico sob o controle extratecnológico.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.