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Mudanças no Dmae propostas por Melo miram privatização

Justiça impede votação na Câmara de Vereadores da Capital e exige audiências no prazo de 30 dias; oposição vê na proposta do executivo a pavimentação do caminho para privatizar água e saneamento
Por Elstor Hanzen / Publicado em 8 de janeiro de 2025

Mudanças no Dmae propostas por Melo miram privatização

Foto: Luciano Lanes/PMPA

Foto: Luciano Lanes/PMPA

Uma ação apresentada pelo Sindicato de Municipários de Porto Alegre (Simpa) contra as matérias (PL 03/25) que tratam da extinção da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), da reorganização da administração pública e de alterações no conselho do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) foi acolhida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na segunda-feira, 6. A decisão liminar do juiz José Luiz Leal Vieira do TJ-RS suspendeu a tramitação e a votação dos três projetos na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

O magistrado reconheceu que há necessidade de audiências públicas para avançar nos temas, com base no artigo 103 da Lei Orgânica Municipal. O texto prevê a realização dessas audiências no prazo de 30 dias a partir da entrega do requerimento ao legislativo, protocolado na última sexta-feira, 3, por parte do município.

“O projeto de lei fere a autonomia do Dmae e torna o terreno fértil para as parceirizações, o que, na prática, pavimenta o caminho para a sua privatização”, ressalta a professora de educação especial, especialista em políticas públicas e vereadora (PT) Juliana Souza. Entre as alterações, ela destaca a transformação do Conselho Deliberativo da autarquia em um órgão meramente consultivo. “Na prática, isso significa retirar poderes decisórios da sociedade civil e concentrar ainda mais poder no Executivo Municipal. Além disso, o Conselho passaria a se reunir apenas quando convocado pelo Executivo, o que fragiliza ainda mais a sua atuação”.

A parlamentar explica que o projeto esvazia as competências do Dmae, delegando as funções par a iniciativa privada. “A gente teve um processo muito semelhante no início do governo Melo, em 2021, com a votação de mesmo teor sobre a Procempa, quando também havia um projeto que esvaziava as competências da empresa pública”, lembra.

Além disso, segundo a vereadora, outra medida preocupante é a criação de novos cargos de livre nomeação para altos postos no Dmae em detrimento de funcionários de carreira, que tradicionalmente são ocupados por servidores concursados com expertise técnica. “Essa substituição representa um nítido retrocesso e viabiliza indicações políticas, fragilizando a gestão e a qualidade dos serviços prestados”. A reportagem apurou que o Dmae já tinha três mil funcionários concursados, hoje tem apenas mil.

Mais debate

Para Assis Brasil Olegário Filho, diretor financeiro do Simpa, espera-se um debate das matérias antes de qualquer votação. “O que está por trás é a mudança do conselho deliberativo para consultivo e a criação de diretorias no Dmae. Melo quer preparar a privatização, que eles tem o nome de ‘parceirização’, mas é privatização. Então, isso (a decisão do TJ da suspensão da votação) foi um ganho para a sociedade de Porto Alegre, porque a população tem que saber o que está rolando por trás desses projetos. Não é uma simples reforma administrativa. Envolve interesses políticos muito sérios”.

Ele lembra que a chamada parceirização não deu certo em nenhuma outra área na capital. “A tragédia da Pousada Garoa resultou na morte de 11 pessoas. A Carris e a secretaria de Educação são outros dois exemplos que só pioraram os serviços após a parceria com o setor privado. Empresário só quer uma coisa: o máximo de lucro, e a população que se dane “, cita Assis Brasil.

Sobre os próximos passos, diz que o Simpa vai acompanhar toda a votação da chamada extraordinária da Câmara, porque formalmente o legislativo está em recesso em janeiro, “além disso, se somando a várias entidades de movimento popular, usuários do sistema único de assistência social, acompanhando grupo de mães, fórum social das periferias, ou seja, discutindo com os vereadores, tanto da oposição como da situação”, afirma.

Dói mais nos pobres

A falta de saneamento atinge principalmente as pessoas de menor poder aquisitivo, aquelas que mais precisam da mão do poder público, enfatiza o engenheiro e sanitarista Arnaldo Dutra, que foi diretor do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), presidente da Corsan, presidente da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento) e membro do Conselho Nacional das Cidades e conhecimento bem a realidade de Porto Alegre. “Logo, pensar que a privatização, a qual traz no seu nojo a ideia do lucro, vai alcançar essas pessoas é um grande equívoco dos governantes. A universalização do saneamento é dever do estado e passa pela gestão pública”.

Segundo o especialista, Porto Alegre, apesar da incúria de alguns governos, está muito próximo da universalização dos serviços de saneamento. No abastecimento de água há 99,9% da população atendida e no quesito esgotamento sanitário, segundo dados da autarquia, existe uma capacidade instalada para tratar 80% do esgoto coletado, sendo que a meta era 90% até 2033.

“Privatizar significa transferir bens que são públicos, ou seja, que pertencem ao povo, para as mãos de um grupo pequeno de pessoas ricas e poderosas, ávidas por dinheiro. Por consequente, eles farão de tudo para aumentarem seus ganhos, ainda que isto possa significar tarifas elevadas e excludentes”, avalia Dutra.

Para ele, o propalado discurso da eficiência do setor privado não tem resistido às experiências concretas e vem se desmanchando mundo a fora. “Sendo assim, e considerando que vivemos um ambiente regulatório de muitas incertezas, com estruturas de regulação que ainda engatinham na sua tarefa de fiscalizar e regular serviços, fica a pergunta: por que correr o risco e jogar a população nesta aventura privatista?”, questiona.

Sanha por privatizar

Para o engenheiro Vicente Rauber, ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) de Porto Alegre, nem na ditadura se tinha tanta sanha por privatizar como agora. Pelo contrária. “Havia a visão de os serviços essenciais serem universalizados para um desenvolvimento nacional forte. Depois, com o neoliberalismo, “vende-se até a mãe””, destaca. E argumenta: “Universalizar o serviço é incompatível com o serviço de saneamento privado”.

Ele ainda rebate o argumento de que é preciso privatizar para cumprir o Marco Civil do Saneamento. Segundo o engenheiro, as regras da política de saneamentol mudaram desde o governo Lula e Porto Alegre está dentro da meta, praticamente com o serviço universalizado, ainda com R$ 430 milhões em caixa no Dmae. Além disso, tem uma inadimplência de 20%, enquanto o índice deveria ser entre 4 a 5%, afirma Rauber. “E quem está devendo não é o pobre, porque este tem tarifa social. Se fosse cobrar os devedores, poderia arrecadar em torno de um bilhão de reais por ano”, garante o engenheiro.

E, neste caso, seria possível investir 300 milhões por ano deste valor. “Se não estão cobrando de quem deve, nem investindo o dinheiro parado, é por que querem sucatear para justiçar a privatização”, analisa Vicente Rauber.

Reestatizar

Desde 2000, ao menos 884 serviços foram reestatizados no mundo. Segundo o TNI (Transnational Institute), centro de estudos em democracia e sustentabilidade sediado na Holanda. “O motivo é que as empresas privadas priorizavam o lucro em detrimento da qualidade dos serviços. A tônica era tarifas caros e serviços ruins. Países referências do capitalismo como EUA, Alemanha e Inglaterra aparecem com destaques nestas reestatizações”, constata Arnaldo Dutra.

Para ele, se em países onde a universalização do saneamento já é uma realidade e as agências de regulação já têm uma expertise de regulação e fiscalização, não foi possível fazer com que as empresas privadas cumprissem as metas prevista em contrato, imagina o que vai acontecer aqui. “Em nosso país e, mais especificamente em Porto Alegre, há milhares de pessoas ainda não dispõem plenamente destes serviços. A regulação e a fiscalização são muito frágeis, como podemos ver nos episódios recentes com a Equatorial”, reflete Dutra.

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