Extremos climáticos devem afetar o RS com mais intensidade, alertam cientistas
Foto: Marcelo Curia
Os efeitos da intensificação do aquecimento global e da poluição são percebidos de diversas formas na Antártica, o continente mais longínquo e desabitado do planeta. Já há córregos de derretimento sobre geleiras e plataformas de gelo que não existiam antes; o oceano Austral (principalmente perto da costa) está mais ácido devido a maior concentração de água doce; microplásticos e resíduos de fuligem de queimadas são encontrados em amostras da neve; e é expressiva a expansão de campos de musgo onde antes a paisagem era branca.
Essas foram algumas das constatações apresentadas pelos pesquisadores Jefferson Simões, Francisco Aquino, Venisse Schossler e Filipe Lindau à imprensa em uma coletiva na segunda-feira, 3 de fevereiro, no Centro Cultural do Campus Centro da Universidade. Enquanto os cientistas compilam o material coletado que aponta para uma intensificação dos fenômenos climáticos extremos na Região Sul, o estado vive uma intensa onda de calor que deve se estender por todo o mês de fevereiro. Em Quaraí os termômetros marcaram 43,8 graus centígrados nesta terça-feira. A reitora da Ufrgs Marcia Barbosa participou da coletiva e ressaltou a importância da expedição.
Durante 70 dias, 57 pesquisadores de mais de 10 áreas, de sete países (Argentina, Brasil, Chile, China, Índia, Peru e Rússia) exploraram a região em busca de evidências do aquecimento global. Desses, 27 são brasileiros, inclusive a coordenação do projeto, devido ao protagonismo dos pesquisadores brasileiros. A iniciativa inédita, que celebra anos de diplomacia científica foi batizada de Expedição Internacional de Circum-navegação Costeira Antártica (ICCE). O navio russo Akademik Tryoshnikov percorreu mais de 29.316 quilômetros, entre os dias 22 de novembro e 31 de janeiro.
Embora as pesquisas necessitem de dois a quatro anos para serem finalizadas, revisadas por pares (revisadas e aceitas por cientistas anônimos) e estampadas em publicações científicas ou debatidas em eventos, os cientistas chamaram a atenção para as evidências encontradas. E enfatizaram a necessidade de se considerar o contexto climático para projetos futuros, principalmente no Rio Grande do Sul, um dos estados mais sensíveis às mudanças climáticas.
Na expedição, coletaram mais de 90 metros de testemunhos de gelo, além de testemunhos de sedimentos (quando se perfura um ponto em busca de encontrar partículas de substâncias que indicam que gases circulavam tempos atrás), líquens e musgos. Lançaram 43 balões atmosféricos, chegando a 33/35 quilômetros de altitude e montaram 19 estações de pesquisa para determinar temperatura, salinidade, acidez em diferentes profundidades, até 2 mil metros. Agora esses materiais serão analisados por laboratórios pelo mundo afora, proporcionando uma visão mais abrangente das transformações ambientais na região.
Durante a expedição puderam identificar rios voadores atuando dos trópicos para a Antártica. Rio voadores são cursos d’água onde se concentram bilhões de toneladas de água em forma de vapor pelas correntes aéreas em 1.500 metros de altura. Vale lembrar que boa parte da chuva que cai no RS vem de rios voadores da Amazônia.
O que acontece na Antártica reflete aqui
Foto: Marcelo Curia
Devido à localização geográfica, a influência de massas polares, as correntes marítimas, a latitude, entre outros fatores, os estados mais austrais do Brasil, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, são os mais afetados por eventos climáticos e meteorológicos extremos.
“Oceano, neve e gelo ditam o que acontece aqui”, resume o professor do Departamento de Geografia da UFRGS Francisco Aquino, secretário da Action Group on Tropical Antarctic Teleconnections (TATE) .
O grupo tem entre seus objetivos a promoção do debate e a colaboração sobre as interações climáticas e meteorológicas tropicais e polares. Reúne pesquisadores que investigam a circulação atmosférica no presente e no passado recente (os últimos 200 anos) e a relação entre padrões climáticos e meteorológicos complexos nas regiões do Atlântico Sul, Índico e Pacífico e a cobertura de gelo do Oceano Antártico, e como eles estão conectados a modos naturais de variabilidade climática.
Um dos aspectos destacados pelos pesquisadores na coletiva, foi a sensibilidade da costa gaúcha, com relação as consequências da crise climática. Um dos sinais do quanto a temperatura dos oceanos está aumentando pode ser constatado pela presença marcante de mães d’água no litoral gaúcho no veraneio deste ano. As águas mais quentes propiciam a proliferação dessa espécie. A temperatura da água do litoral gaúcho está mais quente devido a alteração de correntes marítimas.
Mais acidez, maior impacto ambiental
O derretimento da água do continente antártico no oceano está deixando o ambiente marinho mais ácido. Isso significa que o oceano com menor concentração de sal, diminui a sua capacidade de absorção de gás carbônico (CO2), um dos Gases de Efeito Estufa (GEEs). O professor Jefferson Cardia Simões lembra que aumentou a emissão de GEEs 40% do CO2, desde os tempos pré-industriais. As montanhas e as cordilheiras continentais também estão derretendo, fica mais difícil ainda a absorção de CO2 pelos oceanos.
Correntes profundas nos oceanos são formadas na Antártica
Foto: Marcelo Curia
O glaciologista Simões explica que todos os cenários indicam que aumentará o nível do mar significativamente na próxima década. “Já subiu 12cm de 1993 a 2022, sendo quase o total a partir de 2010” observou a especialista em dinâmica costeira e marinha do litoral gaúcho Venisse. O Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima tem trabalhado com a previsão de 28cm a 1,20 m o aumento do nível do mar. Há prognósticos, inclusive de elevação de cinco a sete metros o nível nos próximos 300 anos.
Vale lembrar que estamos quase no ponto de não retorno do aquecimento global. Pois apesar de quase 30 Conferências das Partes sobre Mudanças Climáticas (COPs) as emissões de GEEs não diminuíram, inclusive aumentaram. O ano mais quente já registrado da história foi o 2024, em julho. O Global Tipping Points Report (Relatório Global sobre Pontos de Não Retorno), produzido por uma equipe internacional de mais de 200 pesquisadores e lançado em 2023, afirma que se as emissões não forem reduzidas “serão desencadeados efeitos dominó devastadores, incluindo a perda de ecossistemas inteiros e da capacidade de cultivo de culturas básicas, com impactos sociais que incluem deslocamentos em massa, instabilidade política e colapso financeiro”.
Como a capital gaúcha e muitas cidades se localizam na Planície Costeira, essa previsão é catastrófica. No curto prazo, temos visto o aumento da frequência de eventos extremos. Aquino recorda o primeiro caso de evento extremo climático que foi conectado ao contexto da Antártica. Quem estava em Porto Alegre lembra naquele fatídico dia 9 de janeiro de 2016? Partes da cidade foram altamente afetadas, milhares de casas e estabelecimentos ficaram sem luz, copas e até troncos de árvores do Parque Marinha do Brasil foram arrancadas e a tempestade deixou rastros de destruição. Os episódios de maio do ano passado, assim como os de setembro e novembro de 2023, foram condicionados a posição e a intensidade de uma frente fria que é do Mar de Wedell. Na expedição, o navio russo precisou fazer uma volta enorme para fazer o percurso porque um fenômeno semelhante apareceu no caminho.
E apesar desse contexto, há políticos, empresários, entre outros interessados na construção de um porto em Arroio do Sal, o que é considerado um absurdo pelos cientistas que estudam as consequências da crise climática no litoral gaúcho.