Delegacias pegando fogo e cidades com um só policial civil no RS
Foto: Ugeirm/ Sindicato
Salários baixos para uma atividade de alto risco, condições de trabalho precárias, delegacias em situação crítica e cerca de 15% dos municípios com apenas um policial civil para atender à população. Esse cenário é a receita perfeita para desestimular a carreira policial no Rio Grande do Sul, segundo o Ugeirm, sindicato que representa escrivães, inspetores e investigadores. A entidade cobra medidas para estancar o que chama possível início de “debandada” que, no limite, coloca o estado sob risco de um colapso em seu sistema de segurança.
Apesar de especialistas e até mesmo representantes da categoria entenderem que é histórica a rotatividade na carreira policial, “pois o regime de trabalho permite se organizar e se preparar para outros concursos, em carreiras mais atrativas”, conforme o professor de criminologia da faculdade de Direito da PUCRS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, a Ugeirm ressalta a importância de se manter um sinal de alerta ativado.
Nos últimos dois anos, de acordo com dados do sindicato, 120 agentes pediram exoneração. Neste início de 2025, cinco já deixaram a corporação e estão nesta conta, “fora os que estão no aguardo de chamadas de concursos realizados e que não temos estimado”, diz o vice-presidente do Ugeirm, o comissário de polícia Fábio Castro.
Rotatividade acelerou de 2020 a 2023
Foto: Ugeirm Sindicado/ Divulgação
A rotatividade de profissionais é chamada de turnover no mundo corporativo. Esse termo se refere à taxa de entrada e saída de funcionários em uma organização durante um determinado período.
No histórico da Ugeirm, 16 policiais civis pediram exoneração de seus cargos em 2020, 24 em 2021, 43 em 2022, 64 em 2023 e 51 em 2024.
Se houve um crescimento acelerado de afastamentos entre 2020 e 2023, a queda em 2024, após três anos consecutivos de alta, não significa necessariamente, para Castro, que os desligamentos a pedido estão refluindo.
“Isso depende muito do chamamento dos concursados, né? Depende do número de concursos que estão em aberto. Isso nos preocupa.
Foto: Ugeirm Sindicato/ Divulgação
Em 2024, 51 que pedem para sair são muitos para quem tem um efetivo já defasado como a polícia civil gaúcha. Somam-se a isso as aposentadorias que ocorrem normalmente”, explica o dirigente.
Deixando claro que qualquer posição da entidade vai parecer corporativista, Castro diz que os números traduzem o que se ouve na Ugeirm: o aumento da procura por outros concursos públicos, com o argumento recorrente da busca de outra profissão por causa de questões salariais e estruturais.
“O cara que faz concurso para a polícia quer ser policial. Mas, diante de uma série de adversidades, ele, já saturado e até adoecido, acaba buscando outras áreas”, entende o dirigente.
Efetivo não acompanhou o crescimento populacional e de municípios
Hoje o efetivo da Polícia Civil gaúcha gira em torno de 5.100 agentes, entre escrivães, inspetores, investigadores e delegados. Há 29 anos, em 1996, eram 6,4 mil. Também em 1996, o Rio Grande do Sul comportava 466 municípios. Agora, são 497.
Em números absolutos, isso revela que, se em 1996 havia um policial civil para cada 1,5 mil habitantes no estado, nos dias atuais há um para cada 2.202 habitantes. É um acréscimo de 702 pessoas por agente.
O salário inicial de um policial civil no RS é de R$ 7.018,00 No topo da carreira, como comissário, após mais de 20 anos de serviço, o valor chega a R$ 19.142,00.
Foto: UCPel/ Divulgação
Para o professor da PUCRS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, a ideia de um apagão na segurança pública é alarmista. Ele reconhece que as demandas corporativas dos policiais são legitimas, porém contemplam uma visão parcial da questão.
“Na minha opinião, de maneira geral, o Rio Grande do Sul evoluiu em matéria de política de segurança pública na gestão Leite, em relação ao período anterior, que foi um período catastrófico. O governo, tanto no primeiro mandato quanto, agora, no segundo, não tem trabalhado numa linha de populismo punitivo, ao contrário, tem trabalhado em cima de evidências e tem feito uma política de segurança com base em resultados. Isso tem sido interessante”, avalia Azevedo.
“A questão da forma como o governo lida com as demandas corporativas é sempre um tema tenso, mas não houve atraso no pagamento de salários, enfim, e tem havido concursos. Agora mesmo foi aberto”, conclui.
Fábio Castro, da Ugeirm, concorda com a chamada evolução apontada por Azevedo, mas credita boa parte aos policiais e evidencia sua preocupação com políticas de retenção do efetivo. Em contraponto ao professor, ele relata situações preocupantes.
Por exemplo, 71 municípios gaúchos operam delegacias com apenas um policial. “Se ele sair de férias, tem que buscar outro em outra localidade ou fechar a delegacia”, relata o dirigente ao lembrar que já há proposta da Ugeirm de fechar essas repartições que se localizam em pequenas cidades e agrupá-las em polos regionais. “Mas, aí é aquela história. Compra-se briga com os prefeitos, com os vereadores”, ressalva.
Problemas não se restringem a pequenas localidades
Na Delegacia de Pronto Atendimento (DPPA) de Bagé, outro exemplo. Houve casos de equipes reduzidas a um único servidor. Castro, explica: “A DPPA de Bagé tem equipe de plantão que já chegou a contar com até três servidores por turno. No entanto, a falta de efetivo fez com que, em algumas ocasiões, o plantonista ficasse sozinho. O problema já foi solucionado, mas à custa da realocação de servidores de outras unidades, ou seja, aquela velha questão do cobertor curto”, lamenta.
Foto: Carlos Ismael Moreira/Arquivo SSPRS
Em Porto Alegre, registra Castro, a Delegacia de Pronto Atendimento à Mulher tem um efetivo muito reduzido de servidores. “As pessoas, as vítimas, no caso, lá, esperando seis, sete, oito horas para serem atendidas. Isso é desumano para todo mundo; para quem está atendendo, para quem está ali precisando do atendimento. Ou seja, não me parece nem um pouco alarmismo a gente se preocupar com a perda de 120 policiais em dois anos”, argumenta.
Ainda há casos irônicos, como a sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) que recuperou para o RS mais de R$ 250 milhões em ativos de organizações criminosas. Ela, segundo Castro, já incendiou três vezes.
Isso, por si só, reflete ele, já demonstra que há um nível grande de sucateamento das estruturas da segurança pública no estado. “Os prédios da Polícia Civil na sua maioria não têm Plano de Prevenção e Combate a Incêndios (PPCI), são insalubres”, conclui o vice-presidente do Ugeirm ao lembrar que os incêndios no Deic não são fatos isolados. A 2ª DP de São Leopoldo suspendeu o atendimento ao público na segunda-feira, 3, após um princípio de incêndio. Em maio de 2022 o fogo atingiu a 9ª DP de Porto Alegre. O caso mais grave ocorreu em 14 de julho de 2021, quando a sede da Secretaria de Segurança Pública (SSPRS) na capital foi destruída por um incêndio provocado por um curto-circuito no sistema elétrico, provocando a morte de dois bombeiros, perda de 95 mil processos do Detran e um prejuízo de quase R$ 55 milhões ao governo estadual.