JUSTIÇA

Réu vai a júri popular por feminicídio de menina caingangue em reserva indígena

Estupro e assassinato de Daiane Griá Sales, de 14 anos, ocorreu em 2021 na Terra Indígena da Guarita, em Redentora, na Região Nororeste do RS. Réu está preso
Por Gilson Camargo / Publicado em 7 de fevereiro de 2025
Agricultor vai a júri popular por feminicídio de menina caingangue em reserva indígena

Foto: Divulgação

Crime ocorreu em 2021 na reserva indígena da Guarita, em Redentora. Maior reserva do estado, com 24 mil hectares, a Guarita ocupa parte dos territórios de Redentora, Tenente Portela, Erval Seco e Miraguaí e abriga mais de 9 mil indígenas em 16 setores Kaingang e dois da etnia Guarani

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O Foro da Comarca de Coronel Bicaco, no Noroeste do RS, sediará na próxima quinta-feira, 13, a partir das 8h, o julgamento de Dieison Corrêa Zandavalli, 36 anos, acusado pelo estupro e morte da menina caingangue Daiane Griá Sales, de 14 anos. O crime ocorreu em agosto de 2021.

O júri popular será presidido pela Juíza de Direito Ezequiela Basso Bernardi Possani, titular da Vara Judicial da Comarca de Coronel Bicaco.

Estão previstos os depoimentos de 11 testemunhas, além do interrogatório do réu.

A acusação estará representada em plenário pelas Promotoras de Justiça Jaquiline Liz Staub e Lucia Helena de Lima Callegari, e a defesa do réu estará a cargo de três mulheres, as advogadas Pamela Londero, Ana Caroline da Rosa Massafra e Laura Villar Piccoli.

Serão assistentes de acusação os advogados Ubirajara Machado Teixeira e Celso Rodrigues Junior.

O crime ganhou repercussão mundial após ser enquadrado pela promotoria como um feminicídio e não como homicídio comum como chegou a ser tratado no início das investigações; e ainda por ter sido cometido no contexto de etnofobia.

Daiane foi embriagada, estuprada e estrangulada na madrugada de 1º de agosto de 2021, na Terra Indígena da Guarita, município de Redentora, a 425 quilômetros de Porto Alegre.

Agricultor vai a júri popular por feminicídio de menina caingangue em reserva indígena

Foto: Reprodução

Daiane foi aliciada em uma festa de rua nas proximidades da reserva, antes de ser assassinada

Foto: Reprodução

Maior reserva do estado, com 24 mil hectares, a Guarita ocupa parte dos territórios de Redentora, Tenente Portela, Erval Seco e Miraguaí e abriga mais de 9 mil indígenas em 16 setores Kaingang e dois da etnia Guarani.

Moradora no Setor de Bananeiras, a vítima foi aliciada em uma festa de rua antes de ser violentada e morta por estrangulamento próximo de uma lavoura da reserva.

O réu está preso preventivamente no Presídio Estadual de Três Passos.

Indiciado pela polícia civil no dia 16 de setembro daquele ano, Zandavalli foi acusado dos crimes de estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras: meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime e feminicídio.

Segundo o promotor de Justiça Miguel Germano Podanosche, o denunciado conduziu seu carro por uma localidade no interior de Redentora, “ciente de que ali aconteciam alguns bailes naquela noite”, e passou a oferecer carona a jovens indígenas que se movimentavam a pé pelas imediações.

“A vítima aceitou a carona e foi conduzida até o local do crime, especialmente selecionado em razão de ele o conhecer muito bem, dado que sua família havia possuído, em outros tempos, uma propriedade lindeira por ele frequentada. Lá, a ofendida, embriagada excessivamente, sem poder resistir, foi estuprada, estrangulada e morta”, explica.

Etnofobia e feminicídio

A prática, conforme a denúncia, decorreu de motivo torpe, correspondente ao desprezo do denunciado para com a população originária Kaingang e seus integrantes (etnofobia), nutrido pela falsa ideia de que tal comunidade e as autoridades constituídas reagiriam com passividade ao estupro em razão de sua condição de indígena, anotou o promotor.

“Convém esclarecer que o denunciado estava procurando sua vítima em eventos sabidamente frequentados por jovens indígenas, havendo, inclusive, oferecido carona a outras garotas da mesma etnia, de modo que se pode afirmar que o fato de a ofendida integrar tal etnia foi fator determinante para que ela fosse objeto preferencial da escolha do denunciado”.

De acordo com Podanosche, a “infração penal foi perpetrada mediante dissimulação, dado que a vítima fora atraída para o cenário dos eventos criminosos aceitando uma proposta de carona oferecida pelo denunciado, sem sequer imaginar o que lhe poderia acontecer em seguida”.

Ainda conforme a denúncia, a morte da menina indígena teria acontecido na sequência dos atos pelos quais o réu cometeu o crime sexual, aproveitando-se do estado de embriaguez da menina, impossibilitada de reagir, usando de violência, com toques e beijos, apoiando-se sobre ela. Segundo o MP, o corpo da vítima foi achado mais de três dias depois dos fatos, em um matagal.

Entre as qualificadoras do crime contra a vida, a denúncia indica o desprezo do denunciado para com a população originária Caingangue e seus integrantes (etnofobia, motivo torpe), e o menosprezo e discriminação à condição de mulher da vítima (feminicídio).

Em interrogatório durante a instrução do processo criminal, o acusado negou ter cometido os crimes. A Defesa pediu a impronúncia em razão da existência de fundada dúvida quanto à autoria dos fatos. Incidente de sanidade mental chegou a ser instaurado, concluindo que o denunciado é totalmente capaz de compreender o caráter ilícito dos fatos.

A sentença de pronúncia, determinando que o caso seja analisado pelo Tribunal do Júri, foi proferida em outubro de 2023.

Mobilização

Na segunda-feira, 10, às 19h, será realizada audiência pública on-line com a participação de deputadas e deputados federais, indígenas e não indígenas – Juliana Cardoso (SP), Celia Xakriabá (MG), Paulo Guedes, (MG) Maria do Rosário (RS), Dionilso Marcon (RS) e da deputada estadual Stela Farias, além da presidenta da Funai, Joênia Wapichana e do advogado Bira Teixeira.

A reunião foi organizada pelo Comitê Por Todas Daianes, composto pelas mulheres do GT Guarita pela Vida, pela campanha nacional Levante Feminista Contra o Feminicídio e pela Articulação Nacional de Mulheres Indígenas da Ancestralidade (Anmiga), Força Tarefa de Combate aos Feminicídios do RS e outras entidades. O movimento de solidariedade se organizou desde o início das investigações, com a criação do Comitê Por Todas Daianes e um coletivo local, Guarita pela Vida, que se constitui num espaço de luta e resistência das mulheres indígenas.

Para a coordenadora do GT Guarita pela Vida, Regina Goj-Tej Emilio, trata-se de um caso simbólico. “Pela primeira vez conseguimos tirar um feminicídio indígena da invisibilidade e transformar também o luto em luta. Hoje, somos todas Daianes Kaingang”.

Vítimas de violência crescente e mais vulneráveis em diversos âmbitos sociais, mulheres indígenas e coletivos se articulam contra a violência sexual, o sexismo e o racismo em todo o país.

A Campanha nacional e estadual Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio, composta por dezenas de coletivos no RS e cerca de 2 mil integrantes em âmbito nacional, que acompanham o desdobramento do crime, em parceria com a Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, têm respaldado os movimentos locais com notas, protestos, difusão e denúncia do caso inclusive em cortes internacionais.

Na mesma semana do assassinato de Daiane, outra indígena, Raissa da Silva Cabreiara, uma criança guarani kaiowá de 11 anos, foi morta na Reserva Indígena de Dourados, em Mato Grosso do Sul, após um estupro coletivo seguido de morte. Ela foi jogada de um penhasco.

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