É preciso imaginar Sísifo feliz: por uma pedagogia do absurdo
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Foto: Reprodução
Imagem Sísifo sobe a montanha com uma pedra – Jan Mesker – 1890
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E se a educação fosse um teatro? Qual seria o seu enredo? Durante séculos, o palco da escolarização – a escola – esteve montado sob um roteiro previsível: um currículo disciplinar cujos conteúdos se tornaram o grande objeto de avaliações a serem vencidas. Tudo para que a promessa de um grand finale fosse consubstanciada com o encerramento de uma trajetória na educação básica que tem sua mais significativa expressão simbolizada pelo discurso do protagonismo do estudante – seja lá o que isso possa significar.
Mas e se tudo isso for uma ilusão? E se a busca por sentido em educação esbarrar, como sugere Albert Camus, na constatação de que o mundo – e neste caso, a própria escolarização – seja indiferente às nossas expectativas? Talvez a escola, ao invés de um palco de certezas, devesse assumir-se como um território de estranhamento. É nesse ponto que a ideia de uma pedagogia do absurdo surge como um convite ao questionamento não apenas dos conteúdos escolares, mas do papel de uma educação diretriz. Tal proposta não se contentaria na proposição de uma reforma das práticas vinculadas às estratégias de ensino e de aprendizagem, mas se assumiria como o convite que nos permitiria constantemente colocá-las sob suspeita. Seu objetivo não seria o de destruir ou de reinventar – palavra da moda – a escola, mas o de expor a arbitrariedade dos discursos pedagógicos capturados pelos excessos do pensamento lógico-formal e da racionalidade neoliberal, estimulando e abraçando outros elementos cuja supressão tem tornado as aprendizagens assépticas e os sujeitos cada vez menos politizados: o erro, a incerteza, o improviso e a diferença.
A palavra “absurdo” (do Latim, absurdus), diz respeito ao que é dissonante, incoerente. Ela deriva da junção do prefixo “ab”, que indica afastamento, e “surdus”, que corresponde a “surdo”. Assim, etimologicamente, remete àquilo que não é ouvido de forma correta, que tende a soar estranho ou estar desconectado de algum padrão ou harmonia esperados. Essa ideia de dissonância ressoa no core da proposta de uma pedagogia do absurdo, que renuncia a quaisquer previsibilidades em nome da abertura ao inesperado e do questionamento de certezas estabelecidas.
No clássico O Mito de Sísifo, Camus descreve o absurdo como o choque entre o desejo humano relacionado à necessidade de atribuição de sentido (às coisas e aos acontecimentos) e um universo silencioso. No campo educacional, essa tensão se manifesta na promessa de que o ensino sempre conduz a um futuro melhor que, por sua vez, tende a significar um bom emprego, estabilidade financeira e toda e qualquer forma de sucesso; principalmente relacionada à acumulação de capitais como o econômico, cultural e social. Mas, e se isso for um erro? E se a escola abdicasse disso – desse eufemismo para “preparar para o futuro” – para se concentrar no oferecimento de uma experiência do presente?
O Mito de Sísifo poderia, assim, ser interpretado como uma metáfora pedagógica. Assim como o personagem é condenado a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra montanha acima apenas para vê-la rolar de volta, os estudantes muitas vezes se veem presos a um ciclo de estudos, a um currículo-programa sem sentido, onde o aprendizado se totaliza ou reduz a um meio para alcançar um futuro previsível, delimitado por valores específicos, mas sempre abstrato. No entanto, Camus nos convida a imaginar Sísifo feliz, encontrando sentido na própria revolta contra a sua condição. Deve-se imaginar Sísifo feliz porque, para ele, a experiência do absurdo não leva necessariamente ao desespero, mas pode ser encarada como uma forma de liberdade e revolta.
O autor sugere que, ao reconhecer e aceitar essa falta de sentido, Sísifo pode encontrar alguma forma de liberdade. Ele não espera recompensas nem teme punições; ao abraçar seu destino sem ilusão, ele se torna senhor de sua própria existência. É nesse ato de aceitação e revolta contra o absurdo que residiria a sua felicidade. Não se trata de um conformismo incondicional ou de um otimismo ingênuo, mas, neste caso, trata-se de uma afirmação da possibilidade de encontrar realização na própria experiência educativa, mesmo quando a escolarização e os projetos educativos não oferecem garantias para alguma redenção: o ato de aprender não como um meio para um fim distante ou utópico, mas como uma experiência transformadora em si mesma.
Longe de oferecer respostas prontas, uma pedagogia do absurdo seria útil à criação de espaços para a incerteza. Em vez de ver a educação como uma escada para um destino fixo (e longe de estar garantido a todos), ela a trataria como um percurso sem mapa, onde a revolta – no sentido camusiano – seria exatamente o questionamento aos valores impostos como um ato de liberdade. Isso implica em dirimir a passividade dos estudantes em relação a um currículo predeterminado, convidando-os a cartografarem as suas próprias aprendizagens ao incitá-los a explorarem diferentes conhecimentos sem a necessária obrigação de encaixá-los em uma lógica tão somente utilitária, valorizando também sua dimensão estética.
Se Camus nos ajuda a ver a escola como um espaço de tensões, Michel Foucault a desvela como uma tecnologia do dispositivo educacional ao revelar como a organização disciplinar é útil à moldagem dos corpos e das mentes a partir do controle dos gestos e dos comportamentos, o que acaba por transformá-la em uma engrenagem de classificação, avaliação e normatização dos indivíduos. O que aprendemos na escola não é apenas língua portuguesa, matemática, ciências, literatura ou quaisquer outras disciplinas, mas também como se comportar, como obedecer, como se encaixar. Assim, a pedagogia do absurdo seria configurada como uma pedagogia da desobediência. Em vez de reforçar regras invisíveis sobre o que significa aprender “corretamente”, ela buscaria evidenciar, denunciar e, por extensão, questionar os mecanismos de controle presentes na escola.
Tudo para que o erro não fosse considerado um desvio; a avaliação deixasse de ser um mero instrumento de poder para assumir seu caráter processual e reflexivo; e o ensino não se limitasse a um currículo considerado oficial que marginaliza outras formas, diversas, de saber.
Por outro lado, onde Camus evidencia um debate necessário em torno da significação e Foucault nos alerta em relação aos efeitos de um currículo que normatiza e normaliza formas de saber, Gilles Deleuze seria aquele que nos convidaria a repensar a própria natureza do conhecimento. Em Diferença e Repetição, ele desafia a ideia de que aprender implica a necessária reprodução de modelos. Para o filósofo, o aprendizado está na criação, o que nos leva a pensar: e se a educação fosse, antes, um processo de invenção?
Trata-se de descortinar outra dimensão de uma pedagogia do absurdo que visa incentivar o caos produtivo. Em vez de um currículo linear, tem-se a proposição de outro, rizomático, intrincado, imbricado e implicado, onde diferentes áreas do conhecimento se agenciam, conectam-se de maneira até mesmo, por vezes, inesperada, produzindo linhas de fuga em relação ao que se ensina com impactos potentes sobre o que se aprende. Um pensamento sem imagem – sempre em busca do novo, do singular – seria, assim, estimulado por diferentes formas de experimentação, fazendo com que as aulas se desdobrassem como narrativas abertas em suas múltiplas possibilidades.
O fato é que a educação que conhecemos se baseia em um pacto silencioso em torno de uma não problematização que implica a falsa ideia que sustenta a crença do senso comum de que aprendemos tão somente para nos encaixarmos em um mundo que está posto. Mas e se o papel da escola não for esse encaixe, esse enquadre, mas sim a produção de um deslocamento? Em tempos de múltiplas crises – econômica, política, ambiental, epistemológica – o grande desafio da educação permanece sendo o de ensinar a pensar o impensável, questionar o inquestionável, habitar o absurdo sem buscar soluções simplistas. É nesse sentido que a educação descolada da crítica se torna impossível.
Uma pedagogia do absurdo não propõe um ensino caótico ou sem propósito. Pelo contrário, ela defende que a única possibilidade de transformação em educação passa pelo desafio constante das normas tomadas como verdades incontornáveis e inquestionáveis. Porque, no fim, como Camus nos ensina, aceitar o absurdo não significa desistir do mundo, mas descobrir maneiras para aprender a recriá-lo.
José Luís Ferraro é doutor em Educação, professor universitário e bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.