As várias faces da desumanização na saúde

Foto: Simers/ Arquivo/ Divulgação
“Nem sempre a desumanização é culpa do profissional que presta o cuidado, podendo estar relacionada a especificidades de determinados paradigmas científicos e a deficiências no próprio sistema de saúde”
Foto: Simers/ Arquivo/ Divulgação
Desumanizar é negar a alguém sua condição humana plena. Em um mundo cada vez mais acelerado e virtualizado como o nosso, é fácil desumanizar as relações com as outras pessoas nas situações mais variadas. O que nem todos percebemos é que até mesmo na área da saúde e na própria medicina – a atividade que mais precisa respeitar essa condição de plenitude do ser humano – a desumanização é uma ameaça constante.
Pouca gente discorda de que os cuidados de saúde estejam cada vez mais desumanizados. Essa impressão geral é reforçada por um elevado grau de insatisfação das pessoas com os cuidados recebidos. Até mesmo os profissionais de saúde mais atentos parecem insatisfeitos com os cuidados que conseguem prestar às pessoas.
Fala-se muito na necessidade de resgatar os aspectos mais humanos da medicina ou de re-humanizá-la, mas para isso é importante conhecer as diversas formas de desumanização dos cuidados de saúde. Além disso, nem sempre a desumanização é culpa do profissional que presta o cuidado, podendo estar relacionada a especificidades de determinados paradigmas científicos e a deficiências no próprio sistema de saúde.
O exemplo mais evidente de desumanização se dá pela transformação em números e ocorre quando os profissionais se referem às pessoas atendidas pelo número do leito que ocupam em vez de seu nome, como quando se fala do “paciente do leito 201-C” em vez de falar no “Sr. Paulo, aquele homem de meia-idade que apresentou um infarto do miocárdio após descobrir que a empresa onde trabalhava o havia despedido sumariamente junto com dezenas de colegas”. Isso despersonaliza o sofrimento ao negar toda uma história de vida que o acompanha, obviamente desumanizando todo o cuidado prestado.
A modernidade também exibe uma curiosa tendência para medir tudo e transformar todas as coisas em números e estatísticas, e na medicina isso não é diferente. O próprio paradigma médico atual muitas vezes leva os profissionais a tratarem as pessoas como números ao tomarem decisões em nível individual com base em dados estatísticos de estudos populacionais que não necessariamente se aplicam ao paciente que está sendo tratado, o qual tem suas particularidades, experiências de vida e valores pessoais que deveriam ser respeitados e considerados na tomada de decisão clínica.
Já a desumanização pela transformação em máquinas ocorre quando obrigamos as pessoas a “conversarem” com máquinas quando o que elas mais precisam é do acolhimento de outro ser humano. Isso acontece desde o momento em que alguém liga para marcar uma consulta e, em vez de obter o atendimento de uma pessoa de carne e osso, é obrigado a seguir o roteiro proposto por um algoritmo estúpido que pode servir apenas como gargalo para controlar o acesso das pessoas ao sistema de saúde.
Outra forma cada vez mais comum desse tipo de desumanização ocorre quando aceitamos que o contato entre médico e paciente seja intermediado por máquinas, o que pode incluir telas de smartphones e computadores que impedem o contato físico nas chamadas teleconsultas ou robôs que realizam a cirurgia propriamente dita interpondo-se entre médico e paciente e afastando-os física e emocionalmente.
Em uma época em que as redes sociais escancararam a busca desenfreada dos profissionais por novos “clientes”, a desumanização pela transformação em mercadorias é óbvia. Nessa bizarra situação as pessoas não passam de “seguidores” ou consumidores de produtos e serviços. Além disso, o fato de a medicina estar dominada pelos interesses corporativos da indústria farmacêutica e das grandes operadoras de saúde transforma não apenas os pacientes, mas também os próprios profissionais de saúde, em mercadoria a ser explorada.
Outro exemplo de exploração comercial ocorre quando pacientes e suas doenças são usados para que grandes hospitais e clínicas obtenham o máximo de lucro, como quando pessoas com problemas banais são submetidas a extensas baterias de exames claramente desnecessários como parte de protocolos engessados que pouco ajudam a saúde das pessoas e os próprios profissionais, embora engordem o lucro de hospitais e clínicas privadas.
Os pacientes também são desumanizados e submetidos a uma transformação em objetos quando são jogados de um lado a outro por encaminhamentos intermináveis dentro do sistema de saúde, muitas vezes à revelia de sua vontade e sem verem seu problema resolvido.
Também os médicos são reduzidos a meros objetos inertes quando obedecem cegamente a protocolos e diretrizes clínicas e não se permitem colocar algo de pessoal nessa troca de experiências com o paciente representada por uma relação clínica verdadeira.
Uma forma moderna de desumanização é a transformação em dados. Em um mundo digitalizado onde a coleta e venda de dados é permanente, nada mais “natural” que também os seres humanos – e, junto com eles, suas histórias de vida e sofrimentos – sejam reduzidos a dados continuamente coletados e usados para gerar lucros para as megacorporações de tecnologias digitais.
Isso pode ser visto em muitas instâncias da medicina, desde farmácias que coletam e vendem informações sobre medicamentos prescritos até dispositivos vestíveis como relógios “inteligentes” que coletam dados biométricos continuamente. Além disso, há diversos casos em que dados sigilosos de prontuários eletrônicos – os quais deveriam estar adequadamente protegidos – foram vazados ou compartilhados com empresas que não faziam parte dos cuidados das pessoas.
Porém, a mais triste entre as formas de desumanização é vista na transformação em animais, a qual ocorre quando as pessoas são tratadas em condições sub-humanas dentro do sistema de saúde. Isso também ocorre naquelas situações – cada vez mais raras, embora ainda existentes – em que profissionais insatisfeitos com as condições de trabalho esquecem daquele imperativo médico de cordialidade e delicadeza no trato com as pessoas e abusam da estupidez nas consultas de uma maneira que – para fazer justiça aos cavalos e a outros seres considerados inumanos – nem mesmo animais fariam.
A boa notícia é que há uma preocupação crescente na medicina em relação à re-humanização dos cuidados, o que já acontece desde a fase da formação básica dos novos médicos nas faculdades de medicina. Já existem várias iniciativas no mundo todo que visam tornar os cuidados de saúde mais humanizados, como a Slow Medicine (Medicina Sem Pressa), a Medicina Narrativa e a Medicina Centrada na Pessoa. E, no final das contas, o que importa termos bastante claro é que toda forma de desumanização da medicina e dos cuidados de saúde é uma deturpação de seus ideais e valores mais básicos que deve ser imediatamente reconhecida e combatida, tanto pelos pacientes que utilizam o sistema quanto pelos profissionais que nele trabalham.
André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem, O risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.