Precisamos falar dos sonegadores
Foto: Leonardo Savaris
Setembro foi um mês de desânimo para o contribuinte. Enquanto o governo federal anunciava novos cortes no orçamento da União e propunha a recriação da CPMF (que incide sobre a movimentação financeira dos cidadãos), no Rio Grande do Sul a Assembleia Legislativa aprovou o aumento da alíquota de ICMS proposto pelo Piratini. Em ambos os casos, a justificativa para a mordida é a mesma: falta caixa para sustentar o serviço público.
Com déficits previstos para o ano de 2016 de R$ 30,5 bilhões e R$ 6,2 bilhões, respectivamente, União e Estado buscam novas receitas para cobrir as despesas – no Rio Grande do Sul, o descompasso entre arrecadação e gastos já levou o governo a parcelar duas vezes consecutivas os salários do funcionalismo, obrigando servidores do Executivo a passarem um terço de setembro com R$ 600 – valor que foi complementado de forma parcelada até atingir a totalidade da remuneração de cada categoria no dia 22.
Entretanto, o aumento de impostos não é, necessariamente, a única saída para aumentar a arrecadação. Um estudo do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) concluiu que, em 2014, foram sonegados R$ 443,9 bilhões em impostos no Brasil. Seria o suficiente para suprir 14 vezes o déficit previsto nas contas da União para o ano que vem, esse que serve de justificativa para um ajuste que tem, entre outras medidas, cortes em programas sociais e mudanças nos direitos trabalhistas.
Entre o início do ano e o dia 22 de setembro, a conta do “sonegômetro” – ferramenta criada pelo Sinpro para medir a evasão fiscal e que pode ser acessada on-line aqui – ultrapassava os R$ 375 bilhões. Essa conta aumenta aproximadamente R$ 1,5 bilhão ao dia, e a seguir neste ritmo, em apenas 20 dias seria possível cobrir o rombo nas contas do governo federal.
Identificar esses desvios não é tarefa simples porque as grandes empresas lançam mão de mecanismos jurídicos para dissimular a sonegação e, quando o fisco consegue enquadrá-las, não duvidam em utilizar meios ilícitos para não pagar. É o caso da compra de votos no Conselho Administrativo de Recursos Tributários (Carf), investigado pela Operação Zelotes a partir de decisões suspeitas que perdoaram dívidas de R$ 19 bilhões às maiores empresas brasileiras.
Arte: Bold Comunicação
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Olho nos peixes grandes
Em 2015, a Receita Federal conseguiu comprovar a sonegação de R$ 75,13 bilhões apenas nos seis primeiros meses – o valor entre janeiro e julho é mais que o dobro do déficit previsto para todo o ano de 2016, e cerca de 10% de toda a arrecadação no período, que foi de R$ 607,2 bilhões. O grosso dessa grana tem nome, sobrenome e status social: 75,8% do total, ou R$ 57 bilhões, deveriam ter sido recolhidos por grandes empresas cuja receita mensal ultrapassa R$ 150 milhões.
No montante devido, destacam-se os setores industrial, que responde por R$ 19,3 bilhões de impostos não pagos, e o de serviços financeiros, com R$ 16,4 bilhões de dívidas tributárias. Entre as pessoas físicas, a parcela que mais sonega é a de proprietários e dirigentes de empresas, que responde por ¼ dos cerca de R$ 2 bilhões evadidos por cidadãos no primeiro semestre de 2015.
Lembrando que os dividendos usualmente distribuídos a acionistas, assim como prêmios dados aos altos executivos são livres de tributação e não entram nessa conta. Um estudo do Instituto de Justiça Fiscal (IJF) aponta que 60% do total da renda de quem ganha mais de 80 salários mínimos provêm de lucros não tributados.
Caso o governo desse o mesmo tratamento a essas fortunas que o recebido pela classe média, seria possível isentar de Imposto de Renda toda a população brasileira cujos contracheques não chegam a R$ 5 mil. “E a arrecadação cresceria três vezes”, aponta o auditor fiscal da Receita Federal Dão Real Pereira dos Santos.
Zelotes escancara corrupção no setor privado
A Receita Federal instituiu um sistema especial de monitoramento direcionado às 9.478 maiores empresas do Brasil. Embora sejam apenas 0,01% dos CNPJs existentes no país, respondem pelo recolhimento de 65% dos tributos federais – e também pela maior parcela do calote nas contas públicas.
É o que revela a Operação Zelotes da Polícia Federal, que denuncia a compra de sentenças favoráveis no Carf por empresas com débitos de imposto superiores a R$ 100 milhões cada uma. Há indícios de irregularidades em pelo menos 74 julgamentos em que foram perdoadas dívidas que somam mais de R$ 21,6 bilhões.
Em uma gravação feita pela PF para gerar provas para a operação, um dos participantes do esquema diz: “No Brasil, só paga imposto quem quer. A gente resolve qualquer pendência para as empresas, basta nos contratar”. No Rio Grande do Sul, RBS, Gerdau e Marcopolo são suspeitas de pagar propina em troca do perdão de dívidas, mas a lista de empresas investigadas inclui a empresa de telefonia TIM, os bancos Santander e Safra, as montadoras Ford e Mitsubishi e a Mundial-Eberle.
Arte: Bold Comunicação
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“É a corrupção da elite do Brasil”, constata o deputado federal Paulo Pimenta, sub-relator de uma comissão que acompanha a investigação na Câmara. Os primeiros denunciados, cujas fraudes somam R$ 5,7 bilhões, devem ser conhecidos ainda em outubro. As provas, embora ainda não tenham sido tornadas públicas, são contundentes a ponto de o Ministério Público Federal ter solicitado a prisão preventiva de 26 pessoas – o que o Judiciário negou.
E em tempos em que os noticiários trazem diariamente detalhes das delações premiadas da Lava Jato, que investiga a corrupção em contratos da Petrobras, surpreende que não tenha sido possível levantar o sigilo da Zelotes – cuja soma é bem mais elevada – também por ordem da Justiça. “Eles ainda determinaram o fim das interceptações telefônicas aos suspeitos”, lamenta Pimenta, que denunciou o juiz que acompanhava o caso ao Conselho Nacional de Justiça – na sua opinião, ele estava tentando “abafar” a investigação.
Sonegação supera receita do novo ICMS no estado
No Rio Grande do Sul, a previsão do governo do estado é arrecadar R$ 1,9 bilhão por ano com a elevação das principais alíquotas de ICMS de 17% para 18% – e, no caso da telefonia, da energia elétrica e dos combustíveis, de 25% para 30%. Não é apenas insuficiente, como admite a própria Fazenda, diante do déficit financeiro de R$ 6,2 bilhões previsto para 2016, é também menos do que se sonega em território gaúcho.
Levando em consideracão somente os débitos tributários que puderam ser rastreados, o Rio Grande do Sul poderia ter incrementado seu caixa em R$ 1 bilhão apenas nos seis primeiros meses de 2015. Se os resultados da fiscalização no estado forem mantidos entre agosto e dezembro, o valor comprovadamente sonegado ultrapassará as previsões de arrecadação com as novas alíquotas de ICMS.
“O problema é que a sonegação não é uma solução imediata, é coisa de anos de discussão”, admite o subsecretário da Receita Estadual, Mário Luís Wunderlich dos Santos. De fato, o caminho da cobrança é árduo para o poder Executivo. Comprovada a sonegação de algum tributo, o contribuinte pode contestá-la em pelo menos duas instâncias administrativas. Se não obtiver sucessona discussão, o devedor leva a cobrança para o Judiciário (em suas três instâncias), que, entretanto, precisa recomeçar a investigação do zero, sem utilizar o acumulado na esfera anterior.
A tramitação completa pode levar décadas e quando reconhecida, a dívida muitas vezes nem tem mais como ser cobrada. Estima-se que dos R$ 30 bilhões atualmente na conta da Dívida Ativa do Estado, apenas R$ 9 bilhões possam ser recuperados. “Se o débito for anterior a 1996, fica quase impossível”, lamenta o coordenador do Serviço de Auditoria e Instrução do Parecer Prévio do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), Carlos Dornelles. Seu colega, Ivan Almeida dos Santos, que coordena o Serviço de Apoio e Suporte Operacional e Técnico do TCE-RS, entende que é preciso incrementar a cobrança administrativa, antes de partir para a execução judicial.Protestar um título em cartório, por exemplo. “A pessoa ou empresa entra na lista de negativados e terá restrição de crédito, o que pode inviabilizar o negócio e fazê-la pagar o que deve”, sugere.
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Falta gente para fiscalizar
Esse bilhão que a Fazenda conseguiu autuar como sonegação no primeiro semestre de 2015 poderia ser muito maior. A estimativa do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) é que a média da sonegação de ICMS no Brasil seja de 27,6%, o que, aplicado ao Rio Grande do Sul, chegaria a um patamar de R$ 9,6 bilhões e ultrapassaria em R$ 3 bilhões o déficit programado para 2016. Enquanto a Secretaria da Fazenda aposta na tecnologia com chips, sensores, câmeras e softwares que permitem realizar o cruzamento de dados declarados pelas empresas com os cadastros para coibir a sonegação, os técnicos tributários do Rio Grande do Sul cobram investimentos em pessoal. “O modelo adotado é insuficiente, somente a fiscalização de rua pode verificar fisicamente as cargas”, critica o presidente da Afocefe Sindicato, Carlos De Martini Duarte.
Ele exemplifica: em uma madrugada recente, a turma de fiscais volantes de Santa Cruz do Sul teve condições de parar quatro diferentes veículos na estrada. Um deles levava 32 toneladas de carne das quais 13 toneladas não estavam registradas. Em outro carreto, a carga de móveis transportada havia sido declarada em notas fiscais com valor de R$ 3 mil, enquanto que efetivamente valia R$ 44.520.
Não são desmentidos pelo secretário da Receita Estadual e tampouco pelos auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE), que fazem coro ao afirmar que com mais equipes o resultado da arrecadação poderia ser majorado. “Em Santa Catarina, há 472 técnicos, em uma economia que equivale a 60% da nossa”, aponta Wunderlich, salientando que no Rio Grande do Sul são 394 servidores.
Ele usa o comparativo mesmo questionando o dado levantado pela Afocefe, de que no estado a arrecadação cresce a um ritmo muito mais lento do que nos vizinhos. “Se o Rio Grande acompanhasse Santa Catarina e Paraná, a arrecadação em 2014 seria R$ 3,2 bilhões maior do que foi”, conclui Carlos De Martini Duarte.
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Grandes empresas devem quase R$ 400 bilhões à União
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional divulgou, no dia 14 de outubro, a lista das 500 empresas que mais dinheiro devem aos cofres da União. São R$ 392 bilhões sonegados ao Estado brasileiro e cuja cobrança é mais difícil do que parece, apesar de já não haver mais discussão sobre a legitimidade do débito.
O valor equivale a 10 vezes o déficit financeiro do governo federal previsto para 2016, que é de R$ 30 bilhões e levou o Planalto a baixar um pacote de ajustes que inclui a retomada da CPMF, o corte de verbas para programas sociais e mudanças na legislação trabalhista.
Entre as 10 empresas apontadas como as maiores devedoras, destacam-se a mineradora Vale do Rio Doce (em primeiro lugar), a Petrobras (em terceiro), e o Banco Bradesco (sétimo). A lista das 500 inclui ainda a petroquímica Braskem (na 17ª colocação), a montadora Asia Motors, subsidiária da Kia Motors, fabricante das caminhonetes Sportage (22ª), a cervejaria Kaiser (40ª), o banco Itaú (44º), a Volkswagen (57º), Bombril (58º), Unilever (60º), Banco Santander (69º) e a Coca Cola (92º).