OPINIÃO

O ponto final

Publicado em 12 de novembro de 2015

A literatura não só cria um mundo fictício como a ficção, às vezes, invade a realidade e interfere na paisagem. Por exemplo: Romeu e Julieta nunca existiram, o que não impede que milhares de turistas cheguem a Verona todos os anos para ver o balcão da casa dos Capuletos, de onde os trágicos amantes de Shakespeare viam a madrugada chegando na ponta dos pés sobre a bruma das montanhas. Eram tantos turistas com o mesmo objetivo que a prefeitura de Verona decidiu satisfaze-los. Hoje existem a casa e o balcão, sempre com uma multidão na frente.

O ponto final

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

Coisa parecida aconteceu com o túmulo de Walter Benjamin na pequena cidade de Port Bou, ao pé dos Pirineus. Benjamin demorou para seguir o exemplo dos intelectuais e cientistas europeus que fugiram do nazismo, como seu colega no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt Theodor Adorno, que foi para os Estados Unidos em 1938. Benjamin ficou na França, foi internado pelos alemães, finalmente conseguiu um visto dos americanos e rumou para a fronteira com a Espanha. Sua passagem pela fronteira seria tranqüila, mas, por uma pequena questão burocrática, foi adiada para o dia seguinte e o grupo de Benjamin teve que dormir em Port Bou. Naquela noite, 26 de setembro de 1940, Benjamin se matou com uma overdose de morfina.

Nunca ficou claro por que Benjamin demorou para fugir e por que se suicidou. Ele tinha escrito que viera ao mundo “sob o signo de Saturno, o astro com a rotação mais lenta, o planeta dos desvios e dos atrasos”. Susan Sontag, num ensaio sobre Benjamin (intitulado Sob o signo de Saturno), disse que ele era dominado pela melancolia, e que tinha o pendor da personalidade saturnina pela solidão. Mas a sua era uma solidão ativa e desafiadora, que tanto lhe permitia a observação cosmopolita do “flaneur” tipificado por Baudelaire, outro melancólico ativo e um dos seus heróis intelectuais, como independência das ortodoxias marxistas de Adorno e seus pares. Pode-se especular que, frustrado pelo adiamento na fronteira, enojado pelas indignidades acumuladas que sofrera e doente, Benjamin tenha apenas se negado a mais vida e optado por outro tipo de fuga.

Segundo Sontag, Benjamin achava que era um tipo em extinção, que tudo que ainda havia de valor no mundo era o último exemplar, como o surrealismo, que era a última expressão, apropriadamente niilista, da inteligência europeia. Deixou incompleta a sua maior obra (publicada não faz muito) sobre as “arcades”, as galerias de Paris, que ele chamava de a capital do século dezenove. A capital de um mundo que talvez tenha pensado, antes da morfina terminava ali. Em vez de outro refugiado na América, preferiu ser também o último exemplar da sua espécie, o ponto final de uma certa Europa.

O ensaísta italiano Roberto Calasso conta no seu livro Os quarenta e nove degraus que Hannah Arendt procurou em vão pela sepultura de Benjamin no cemitério de Port Bou, que descreveu como um dos mais belos que já conhecera. Hoje, como o balcão de Romeu e Julieta, a sepultura existe. O interesse de turistas e peregrinos como Arendt era tão grande que o cemitério providenciou uma com o nome dele. O lugar é bonito, diz Calasso, mas “a sepultura é apócrifa”. Ninguém sabe onde Benjamin está enterrado.

Comentários