CULTURA

Um caudilho no Piratini

Porto Alegre, 1959. Do Palácio Piratini, Leonel Brizola comanda um plano para tirar a economia gaúcha da estagnação. O salão Negrinho do Pastoreio, antes reservado a festas, foi dividido ao meio
Por Cleber Dioni Tentardini / Publicado em 16 de agosto de 2009

Há meio século, iniciava um período de rupturas e de retomada do projeto trabalhista que iria marcar em definitivo o estado pelo pioneirismo e pela ousadia, bem ao estilo dos caudilhos com quem Brizola conviveu desde sua infância.

Recém havia completado 37 anos quando tomou posse como governador, em 31 de janeiro de 1959, e já nos primeiros dias lançou o 1º Plano de Obras, a fim dar suporte a suas promessas de campanha. E começou a preparar o terreno para atacar dois problemas crônicos do estado: a precariedade dos sistemas de comunicações e a escassez de energia elétrica, ambos sob o controle de empresas estrangeiras.

Ao estatizar as companhias, o governador rompeu com a cartilha do governo Kennedy, mas não desprezou recursos norte-americanos para reequipar sua polícia e construir a Estrada da Produção.

Com os aportes da União reduzidos, ele criou taxas de educação e Comunicação, aumentou a taxa de eletrificação e ainda constituiu outras fontes de recursos, como as ‘Brizoletas’, as Letras do Tesouro emitidas via lei estadual.

Brizola incentivou, entre outros projetos, a criação da Aços Finos Piratini, em 1960; participou em parceria com a Petrobras da implantação da Refinaria de Petróleo Alberto Pasqualini (Refap), que viabilizaria a instalação do III Polo Petroquímico e de indústrias de adubo; e incentivou a exploração das reservas de carvão mineral com a criação de termelétricas, como a de Charqueadas.

O governo chegou a criar a Agasa (Açúcar Gaúcho S.A.), para oferecer álcool como combustível alternativo, mas a iniciativa não deu certo.

O Banco Regional de Desenvolvimento Econômico do Extremo Sul (BRDE) foi constituído em parceria com Santa Catarina e Paraná, e até hoje financia projetos voltados para o desenvolvimento da região. Também nesse sentido foi criada a Caixa Econômica Estadual e o Banco do Rio Grande do Sul foi incorporado ao patrimônio estadual.

Comunicador habilidoso, Brizola se notabilizou por usar o rádio para falar ao povo e prestar contas de suas realizações. Falava todas as sextas à noite, o que lhe rendeu o apelido de “lobisomen”.

Através do rádio ele comandou o Movimento da Legalidade, em 1961, a favor da posse de João Goulart na presidência da República.

Multiplicam as escolinhas caudilho

A construção de escolas primárias, uma das marcas de Brizola na prefeitura da capital, de 1955 a 1958, foi mantida como prioridade.

“Escolinha pequenininha, a maioria era chalezinho suíço de madeira. Eu montei três fábricas e botei a iniciativa privada junto. E depois, escolas de duas, três salas, de oito, de 12 salas, escolas técnicas. Tem um ginásio em cada município. Eu me dediquei a esse tema”, diria anos depois.

Nas “escolinhas do Brizola” ou “Brizoletas”, estudaram nomes como João Pedro Stédile, do MST, e Caco Barcellos, da Rede Globo.

O déficit escolar em 1959 era de 273 mil matrículas. O de professores somava 23 mil. Empunhando o slogan Nenhuma criança sem escola, o governo negociou vagas gratuitas do ensino primário nas escolas particulares em troca de verbas para ampliação e aparelhamento e a cedência de professores da rede pública.

Entre 1960 e 1961, o governo concedeu 1.689 auxílios e assinou 277 convênios. O total de professores cedidos chegou a 668. Já as matrículas nas particulares passaram de 11.358, em 1959, para 26.319, em 1961.

O passo seguinte ficou a cargo da Cepe, comissão que iria atuar junto à Secretaria de Obras para erguer escolas. No final de 1962, segundo o escritor Luiz Muniz Bandeira, autor de Brizola e o Trabalhismo (1979), tinham sido construídos 6.302 estabelecimentos de ensino: 5.902 primários, 278 escolas técnicas e 122 ginásios e cursos normais. Foram abertas 688.209 matrículas e contratados 42.153 professores.

O RS passou a ter a mais alta taxa de escolarização.

A primeira a ser encampada

Uma das grandes batalhas de Brizola começou no dia 13 de maio de 1959. Ele assina um decreto para encampação da Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense (Ceerg), da Bond and Share, uma subsidiária da American and Foreign Powers Company que tinha o monopólio da distribuição de energia elétrica em Porto Alegre e Região Metropolitana.

Foi um baque geral. Nem Fidel Castro havia encampado uma empresa norte-americana após a revolução cubana em 1958. Os EUA consideraram Brizola um péssimo exemplo para os países latino-americanos. Em casa, os eletricitários protestaram, temendo perdas trabalhistas.

Os jornais já falavam, dois anos antes, de uma encampação da Ceerg diante do descontrole dos serviços. A Folha da Tarde noticiava, em 3 de agosto de 1957: “Ontem, avenidas e praças estavam apagadas, tendo agravado o problema nos bairros”.

Antes de assinar o decreto de expropriação, o governador presidiu exaustivas negociações com os dirigentes da Companhia. A concessão estava vencida e a empresa não fez nenhum novo investimento. Mesmo assim, seus diretores exigiam novo contrato por um período de 35 anos e revisão tarifária. Após receber a autorização do presidente Juscelino Kubitschek, Brizola expropriou os bens da multinacional pelo valor simbólico de 1 cruzeiro.

Expropriação da telefonia

A situação da telefonia no estado era caótica naquele final da década de 60. Porto Alegre, com seus 670 mil habitantes, tinha apenas 14,3 mil telefones. A lista de espera tinha 30 mil pedidos.

Após um ano de negociações com a CRT, pertencente à International Telephone and Telegraph (ITT), o governo gaúcho propôs a formação de uma empresa de economia mista, na qual o estado participaria com 25%, a ITT com 25%, ficando os outros 50% com o público.

A Companhia concordou, os deputados aprovaram a lei em dezembro de 1960, mas o grupo recuou. Achou pouco receber um 1 bilhão e 350 milhões de cruzeiros por seus bens. As reuniões se arrastaram por mais de dois anos e em fevereiro de 1962 Brizola decidiu encampar a Companhia e incorporá-la à recém-criada CRT. O valor foi recalculado e reduzido para 70 milhões de cruzeiros.

A pressão veio de todos os lados, mas o governador gaúcho não recuou. E também não queria mais conversa, chegando a abandonar uma reunião com embaixadores dos dois países.

A indignação foi tamanha que o Congresso dos EUA aprovou uma emenda constitucional – Hickenlooper – em que proibia o governo de fazer empréstimos a países que expropriassem o patrimônio de empresas norteamericanas.

Nos anos seguintes, o governo dos EUA continuou em busca de indenizações para suas empresas, o que conseguiu depois do golpe de 1964, em valores muito superiores aos arbitrados antes. Só a Bond & Share levou 470 milhões de dólares dos cofres brasileiros.

Aliados e desafetos

Companheiro fiel de Brizola por 55 anos, Sereno Chaise descreveu o estilo de trabalho do amigo:

“Quando éramos jovens e morávamos juntos, ele acordava de madrugada e ia trabalhar na prefeitura, voltava ao meio-dia e almoçava comigo na pensão, estudava até 2 da tarde, depois íamos para a Assembleia e, quando o Legislativo fechava, Brizola ficava na frente do prédio, atrás de um balcão, atendendo o povo, até as 10 da noite. Os funcionários da portaria tinham horror a ele”, afirmou

Chaise que, mais tarde, enquanto Brizola se manteve no Piratini, foi líder do PTB na Assembleia. Nos anos 90, Chaise mudou de partido. Aliás, romper com companheiros de partido não era incomum para Brizola, como aconteceu com Loureiro da Silva, Fernando Ferrari e Tristão Sucupira Viana, só para citar três aliados que viraram desafetos naquela época.

O jornalista Carlos Bastos, amigo e ex-correligionário, traçou um perfil do caudilho: “Ele tinha o autoritarismo de Júlio de Castilhos, a preocupação com o social de Getúlio Vargas, a ânsia de poder de Borges de Medeiros, a simpatia e o frasismo de Flores da Cunha, o discurso de João Neves da Fontoura, o carisma e o poder de articulação de Osvaldo Aranha e a determinação de Raul Pilla”.

“Brizola não era um caudilho, mas um possuído”, resumiu o jornalista Carlos Heitor Cony ao descrever a personalidade forte do ex-governador. Para o jornalista Jânio de Freitas, se os militares, com seu mito de patriotismo, tivessem o mesmo nacionalismo integral e inviolável de Brizola, o teriam visto como aliado.

Reforma agrária, na lei ou na marra

“Eu nunca disse que a reforma agrária seria feita na lei ou na marra”, afirmou Brizola, em 2000, à revista Caros Amigos. E surpreendeu ao afirmar que foi ele o fundador do MST, movimento inicialmente chamado de Master, e também quem organizou os primeiros acampamentos dos sem-terra, no início de 1962.

“No começo eram os sem-terra, depois agregamos os de pouca terra, os colonos que tinham até 25 hectares, para quatro, cinco filhos… começamos associar essa gente ‘sobrante’ do campo… Então, nos surgiu a ideia do acampamento com vistas à reforma agrária…”.

O primeiro grande acampamento reuniu cerca de 10 mil pessoas em Sarandi, onde uma multinacional que mantinha 20 mil hectares de terras sem produção alguma. O outro foi no Banhado do Colégio, em Tapes, com 25 mil hectares de terras devolutas.

“Chamei um primo meu, lá dos Mouras, e disse pra ele ir na rádio ler um manifesto convocando todo mundo e comunicar o governador… Eu tomaria providências daqui… mas avisei de que eles não deveriam passar o alambrado… e disse pra colocarem uma faixa ‘Acampamento João XXIII, somos cristãos e queremos terra’, e mandar chamar um padre, mas a Igreja recusou-se rezar a missa…”

O governador chamou representantes do Tribunal de Justiça e da Assembleia, o comando do 3º Exército, o arcebispo Dom Vicente Scherer e produtores rurais, e os levou para conhecer o local.

“Criei um ambiente público para desapropriar”, definiu Brizola 38 anos depois.

O governo criou o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (Igra) e distribuiu 14 mil títulos de propriedades; criou o Programa de Reforma Agrária e Desenvolvimento Econômico-Social (Prade), para dar assistência técnica aos produtores.

“Depois a ditadura criou o Ibra, mas claro que eles nem sabiam que era coisa do Brizola”, brincou o ex-governador com os jornalistas da Caros Amigos.

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