Depois da demolição contínua e sistemática de prédios históricos em Santo Ângelo, onde a política de tombamento nunca foi exatamente o ponto forte das administrações, a mais recente agressão ao patrimônio ocorre dentro de uma igreja. Recentemente “ reinaugurada”, a Catedral Angelopolitana abriu suas portas para os fiéis e os turistas ostentando uma mutilação. A pintura mural executada no altar central, há menos de 20 anos, pelo artista plástico Tadeu Martins, desapareceu.
Todos lembram que a grande polêmica se dava em torno da imagem de uma índia de seio desnudo. Nada mais adequado ao sétimo povo missioneiro que tivesse dentro de sua catedral a marca maior de sua obra, numa referência à evangelização dos índios Guaranis. Justamente pela fidelidade histórico-astística dessa representação, onde os verdadeiros donos desta terra aparecem em estado puro, despreocupados de pudor, a comunidade não só perde uma obra de arte magistral, como também reproduz o preconceito do colonizador para com as culturas diferentes.
Na tarefa cruel da submeter povos gentios à tutela do Deus cristão – que se desenvolvia paralelamente na busca por ouro e territórios – , muito sangue nativo foi derramado. Levou tempo até que os Guaranis tivessem que optar entre cair nas mãos dos bandeirantes escravizadores e se deixar “domesticar” no aldeamento das missões jesuíticas. Mas a glória da experiência missioneira, sempre evocada na arquitetura monumental e nas artes remanescentes, tem nos nativos uma história de resistência que a própria Santa Madre Igreja evoca com desconforto – quando o faz! E isso vem à baila quando perguntamos o seguinte: Por que, em quase século e meio de dominação, as reduções não produziram um único padre índio?
A resposta, ironicamente, vem de um jesuíta paraguaio, padre Bartolomeu Meliá, talvez a maior autoridade em estudos missioneiros ainda viva. Escreve ele que a religiosidade dos índios não reconhecia o pecado. Logo, desprovidos de culpa, não teriam como ser submetidos pelos padres, porque o maior instrumento de coerção da cristandade – a ameaça do castigo eterno – não surtia efeito. Essa pureza ainda pode ser observada por aqueles que convivem com os atuais Guaranis da região missioneira. No entanto, os esforço pela descaracterização dessa cultura hoje prossegue quando autoridades mal-intencionadas ou ignorantes estendem luz elétrica e televisão até os acampamentos. Perdendo o status de índios, que ainda os protege um pouco, e isolados de sua identidade, tornam-se párias a esmolar na porta do templo.
A nudez na índia de Tadeu Martins foi acusada de ofender a sacralidade do altar. Mas como fica esse mesmo respeito ao sagrado quando tantos sacerdotes são pedófilos, delatores, omissos ou legitimadores de desmandos aboletados no regaço confortável dos coronéis de plantão? Há uma moral hipócrita flutuando entre as naves da catedral, reeditando valores ancestrais da inquisição. Nem estamos evocando o bom selvagem idealizado por Rousseau, mas um povo verdadeiro a cuja sabedoria a Igreja deveria se curvar. No entanto, aquele preconceito doentio deixa seus herdeiros. E Jesus Cristo, que, numa metáfora pela inocência, pedia que deixassem ir a ele os pequeninos, vê a representação dos seus indiozinhos apartada de sua companhia justamente por obra de um religioso. Não é uma incoerência?