Segundo reza a crença, certa vez o mundo emudeceu por 40 dias e 40 noites.
Naqueles tempos, os povos veneravam uma divindade trovejante: em troca da fertilidade do solo, exigia uns dias por mês de esterilidade nas línguas. Para sestear nos algodões celestes.
Agradecidos ao deus dos decibéis pela fartura, as tribos cultuavam o ribombar nos céus e cumpriam rituais fonéticos, em que depositavam bandejas de murmúrios em altares nos vales sem eco. O silêncio era sagrado.
Assim se passaram séculos e o Todo-Estrondoso via que o suave era bom.
Assim se multiplicaram as tribos. Mas como onde há mais bocas o vozerio é maior, o linguajar acabou desregrado. E assim, nos festejos sazonais das colheitas, germinava a algazarra, o alarido brotava. As línguas agora eram linguarudas, o vocabulário estridente, a alaúza subira às alturas.
Seja por falta de devoção, seja pelos dias não mais consagrados, os tempos se tornaram ruidosos demais aos tímpanos divinos. A fúria se prenunciou na insônia entre nuvens.
Então o Trovejador escolheu um homem, Sié, o único que ainda cochichava, e disse:
– Prepara um abrigo para ti e os teus. Nele não deve ter frestas nem sonoridades. Depois separa pares de cada tipo de palavra e preserva contigo. Guarda de modo que nada ressoe. Sossega com os teus por 40 dias e 40 noites.
Sié, temente ao Tonitruante, procurou uma caverna profunda, ninho de argila. Obediente, enfileirou dois a dois de tudo que faz a fala: verbos, substantivos, adjetivos, advérbios, artigos, pronomes, numerais, preposições, conjunções, interjeições. No interior soturno, cismou calado a calamidade.
Então, de repente, desabou o vazio. Logo uma imensa mudez alagou horizontes. Por fim, desaguou uma surdez completa. E assim foi: por 40 dias e 40 noites o inaudível inundou a terra.
Na infinita irressonância, o ar parou de propagar, dialogar, declarar, citar, avisar, questionar, mencionar, debater, narrar, explicar, afirmar, definir, manifestar, pronunciar, expor, divulgar, exprimir, e um indizível etcétera. As tribos foram aniquiladas numa enxurrada de quietude, na escassez da reverberação vital.
Quando Sié saiu do antro, a silenciosa terra – paisagem arável por expressões gentis – era apenas dele. Viu que a suavidade era boa. De um bornal, soltou uma das tantas palavras salvas. Aspirada pela paz, ela sussurrou à aurora: “Psiu!” E o mundo soou manso e macio.
Assim se lê no Antigo Textomento.