Amadeu Thiago de Mello, 83 anos, desde o final da década de 70, quando retornou do auto-exílio, vive em Barreirinha, no interior da Floresta Amazônica. Nos últimos anos, o destaque ao tema da preservação do ambiente tem atualizado a poesia comprometida do poeta amazonense, autor de 12 livros de poesia e 24 de prosa. Em entrevista exclusiva ao Extra Classe, lembra sua trajetória e conta das novas lutas: “Até o final deste século, a humanidade será diferente. Será outra. Vai ter a oportunidade de aprender um novo jeito de viver, mais solidário, menos egoísta”.
Extra Classe – Como vive o poeta Thiago de Mello? Onde mora? Como é conviver com e nesse habitat tão diverso para a maioria de nós brasileiros?
Thiago de Mello – Hoje moro numa casa do Lúcio Costa* à beira do rio Andirá, que é um rio que corta Barreirinha, como eu disse antes. Eu moro numa comunidade chamada Freguesia do Arandirá, não tem automóvel, não tem motocicleta, não tem telefone. Lá tem a canção do vento, dos pássaros, das crianças. E de lá eu saio para todos os lugares do mundo. Eu sou filho de Barreirinha, nasci lá. Gosto de viver lá, mas não sou igual ao pessoas de lá, porque tenho exigências culturais que eles não têm. Os índios sabem mais do que eu sobre a floresta, as crianças sabem distinguir uma árvore, mas isso agora eu já sei um pouco. Outra coisa é a vocação solidária que eles têm, muito mais poderosa do que a minha. Tenho muito a aprender com eles, mas também preciso ouvir Vivaldi e eles acham engraçado um Miró que tenho na parede. Tanto como conselheiro do Itamarati quanto como adido cultural da Embaixada, vivi em muitos países. Eu era um homem de metrópole e voltava para morar na floresta, onde não há escola, não tem biblioteca. Mas estava decidido a fazer minha casa lá. (*Nota do editor: Lúcio Costa é pioneiro na arquitetura modernista no Brasil e ficou conhecido mundialmente pelo projeto do Plano Piloto de Brasília).
EC – Sua infância e juventude foram lá?
Thiago – Nasci em Barreirinha, município cortado pelo rio Andirá, como já disse, ele é o rio dos índios maués, uma das tribos com as mais belas histórias da narrativa oral da Floresta Amazônica. Saí de lá aos cinco anos, já sabendo ler e escrevendo alguma coisa. Fui estudar em Manaus, onde fiquei até os 15 anos. Meus pais eram do campo e trabalhavam plantando cacau. De Manaus fui para o Rio de Janeiro, porque lá não havia universidade naquela época e eu queria estudar. Conseguimos ajuda de um amigo de meu pai, antigo diretor de um internato carioca. Fui estudar Medicina, carreira escolhida pelo meu pai. Éramos pobres e tive que trabalhar no colégio para pagar meus estudos e me manter. Foi bom, porque aprendi a lavar pratos, trabalhando na cozinha. O diretor era um homem muito sensível e bom, me levou para trabalhar na secretaria do colégio porque viu que eu tirava notas boas. Dois anos depois, voltei a Manaus. Desde então não deixei de voltar todos os anos. Voltava para viajar naquelas águas e ver o chão da minha infância, conviver com as árvores, com os ventos nas árvores.
EC – Quando vivia lá, já percebia a grandiosidade da região?
Thiago – No final de 77, antes da anistia, eu estava na Alemanha. Convivi com estudantes e professores da universidade que sabiam mais do que eu sobre a vida na floresta, sua devastação, a degradação da cultura dos índios. Sabiam muito mais do que eu, embora eu já tivesse livros publicados com metáforas, com descrições da vida da minha floresta. Foi numa noite lá na Alemanha, não no Brasil, atravessando uma, que tomei a decisão não só de voltar à minha pátria antes da anistia, como também consagrar minha vida à grande causa da preservação da Floresta Amazônica. Eu estava no exílio, foi o preço que paguei pelo amor a meu povo, à justiça. Eu não era de partido político algum quando fui para o exílio, entrei na luta contra a ditadura por indignação moral. Então decidi, a partir daquele instante, consagrar minha vida à grande causa da preservação da Floresta Amazônica. Não por ser filho dela, mas para lutar pela preservação do maior manancial de vida e fonte de biodiversidade do planeta Terra.
EC – Um poeta pode ser ouvido de dentro da floresta?
Thiago – Em 1977, depois da anistia, lembro que a Veja publicou naquelas folhas amarelas uma matéria com o título A decisão de voltar. Dei uma entrevista coletiva onde avisei que viveria na minha terra, apesar da opinião contrária de meus companheiros mais amáveis e de meus editores, eles achavam que minha voz e minha presença nas cidades grandes teriam mais força do que lá na floresta. “Lá ninguém lê,” argumentavam. Mas eu não vou para ensinar, vou para aprender com eles o que não está nos livros. Em 1978 fui para o Amazonas onde vivo até hoje. A minha idéia era fazer uma casa para onde eu levasse minhas coisas, e fiz. Não me isolei na floresta, não fugi do mundo para viver sossegado na floresta, naquele silêncio. Fui aprender para poder defender e lutar pela preservação da floresta e não como muitos ecologistas e falsos defensores da floresta que são de ONGs. Fui fazer uma espécie de antropologia cultural, aprender a ser mais humano. Nós que somos escritores, comunicadores, jornalistas, somos capazes de uma linguagem acessível cada dia mais para um número maior de pessoas. Alguém me perguntou recentemente em uma universidade: “Você acha que com a sua poesia, poeta, você pode ajudar o mundo”? Respondi que o mundo eu não sei, mas quem sabe a poesia pode ajudar a salvar a ti, pode ajudar a tua vida. Uma página de romance de repente ilumina um caminho na tua vida.
EC – Sua poesia é marcada pelo compromisso com a preservação da Amazônia. Seus interesses permanecem os mesmos?
Thiago – Minha preocupação, bem antes de voltar para Barreirinha, não era apenas com o homem da floresta, nem com o homem do Brasil, eu hoje me preocupo com a sorte da humanidade, dos habitantes do planeta Terra. Tenho livros nos quais falo muito de como se vive na Europa. Tenho um sobre a Ilha de Páscoa. Conheço quase todos os cantos dos continentes. Sou chamado para congressos literários, para recitais, para palestras. Estive no Japão representando o Brasil. E lá vou aprendendo o que é a vida do homem nesse lugar chamado Terra. Como dizia Gabriel Garcia Marques a mim e a um grupo de dez escritores reunidos em Havana, faz pouco tempo, o Brasil e a América Latina atravessam uma grande crise de perda da ética. A gente vê que os políticos profissionais no Brasil estão ajudando na degradação da formação de gerações jovens que não acreditam mais no poder transformador. Há uma grande diferença com o que acontece com a sociedade de nações européias. Ninguém lembra mais que o menino João Hélio há menos de um ano foi puxado por um carro numa distância de 10 quilômetros – por adolescentes, o que é pior. E ninguém se lembra mais disso não, já tem o caso terrível da menina Isabela, cujos pais assassinaram a filha. Enfim, atravessamos um momento muito perverso, muito injusto para um povo tão bom como é o nosso.
EC – Voltando à questão ambiental, como avalia o nível de consciência das pessoas neste sentido?
Thiago – Participei em maio da Conferência Nacional de Meio Ambiente ao lado da então ministra Marina Silva, essa brasileira notável, essa cabocla filha do Acre, filha da mata, que dá um exemplo luminoso com a sua luta pela preservação da floresta. A conferência deste ano foi destinada às mudanças climáticas. O brasileiro em geral, inclusive gente que tem formação cultural e universitária, as ditas camadas médias e a alta classe média são indiferentes à ação perversa do homem contra a natureza, e ele que é o seu filho mais ilustre. De todos os seres que a natureza criou o mais ilustre é o ser humano. Só que esse homem se transformou num ente desumano, de ferocidade tão grande que queimou a Terra com os gases malignos, resultantes da queima dos combustíveis fósseis. Esse homem não se dá conta, especialmente o habitante das regiões tropicais, das chuvas ácidas. Na Conferência falamos sobre o efeito estufa, que é o calor que produz essas chuvas, provocando mudanças do comportamento da própria natureza. De repente, a natureza é tão boa que criou uma camada tão carinhosa. Uma camada de carinho para proteger a Terra da penetração dos raios infravermelhos do sol. Só que essa camada de ozônio foi perfurada pelos gases da energia resultante desses combustíveis, principalmente o petróleo, e as pessoas e nações foram esquecendo da conseqüência pior que é o próprio aquecimento do planeta. E quando foram se dar conta já era irreversível. Até que o painel internacional de mudanças climáticas das Nações Unidas se dê conta de que este século será o século no qual a humanidade sofrerá grandes desgraças, será a ruína da própria humanidade.
EC – Por isso o senhor afirma que sua luta atual não se restringe à Floresta Amazônica?
Thiago – A minha luta hoje é para tentar amenizar as terríveis conseqüências do aquecimento da Terra sobre a vida na floresta. Agora, no Nordeste brasileiro, cinco estados foram inundados em conseqüência da elevação do clima. A Floresta Amazônica vai murchar, vai secar. Então, se cada um de nós se conscientizar que pode fazer sua parte é possível amenizar as conseqüências. O capitalismo perverso, chamado capitalismo selvagem, muda a consciência das pessoas, muda a ética, a moral, impõe a necessidade de consumir de tal maneira que o sujeito é chamado a comprar tal produto, tal carro. E, cada dia cresce o número de automóveis nas cidades. Aqui em Manaus há uma quantidade enorme de carros e o gás carbônico que sai do cano de descarga é um dos piores inimigos da saúde do planeta. A gente fala em saúde do planeta para não parecer alarmista. A nossa luta hoje é para tentar salvar a vida de uma criança que vai nascer ainda. Até o final deste século a humanidade será diferente. Será outra. Vai ter a oportunidade de aprender, depois da desgraça, um novo jeito de viver. Um jeito mais solidário, menos egoísta. Como disse um companheiro na Conferência Nacional do Meio Ambiente, vamos ter que aprender um novo modelo de vida a partir de agora. Se cada pessoa não desperdiçar gás, energia, água. Se uma família que tem três carros decidir que só vai sair um carro por dia, já está ajudando um pouco a vida do planeta.
EC – Existe ainda outro tema recorrente referente à vida na Amazônia que é a questão da identidade indígena e o recente debate a respeito dos índios de fronteira. Qual a sua opinião a respeito?
Thiago – Eu que vivo junto com os índios, percebo que o processo de aculturação deles vem sendo feito com a intenção de isolá-los, de protegê-los. Não, os índios são brasileiros. Chamam de nação indígena, mas são tribos e já são aculturados, já fazem parte do povo brasileiro. “Respeitar o idioma deles”, muito bem, só enriquece nossa cultura, respeitar sua língua, seu modo de viver. Os índios na verdade não gostam mais de ser índios. De manter a vida deles, eles querem a vida do branco. Eles cortavam árvore com peito de tartaruga afiado, hoje usam motos-serra. Eles falam muito mais o nosso idioma do que o deles. Eu estou dando meu testemunho. O Noel Nutels, médico indigenista, tinha pena de dizer: “Índio aculturado é índio degradado”. Esses índios maués de onde vivo estão na fronteira estrema da degradação cultural. Onde o branco entra, o índio se desfaz. Na verdade o índio gosta da convivência com o branco. Há aldeias notáveis nas entranhas da Amazônia, Roraima, fronteira com os índios ianomâmis que não querem contato, não. Eles têm direito a ter território, mas faz parte do território brasileiro. Eu tenho um poema chamado o monólogo do índio onde ele sofre porque não pode mais ser índio. Não vem tanto japonês para o Brasil? Italiano? Outras etnias que vieram para cá? Vamos aproveitar as nossas etnias cada vez mais. O problema de fronteira tem que ser resolvido de maneira que agora é impossível não retirar os arrozeiros. O chefe dos caiapós é um grande chefe. Ele tem trator, tem avião, ele veio de moto no Fórum da Lei. Essa é minha posição, por sorte não estou sozinho. A Funai é um órgão protetor: protetor de quê? Protetor da desgraça que eles vivem? Há uns três anos levei duas vezes um poeta nicaragüense à Barreirinha. Ele foi à aldeia dos índios maués e ficou muito perturbado porque eles usam camisa da coca-cola, não sabem mais as próprias lendas. Tudo isso porque já não existe mais aqueleí ndio de antes, eles agora votam, já estão assimilados à nova cultura. Com a chegada do branco, há 500 anos, eles foram se transformando, se aculturando, fazem parte hoje da nossa cultura.