Foto: Arquivo Pessoal
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O carrancudo cantor de rap MV Bill – nome artístico de Alex Pereira Barboza, 41 anos – é ídolo e porta-voz dos moradores das favelas cariocas, mas também exerce influência sobre jovens país afora com suas letras de afirmação.São composições que abordam as relações raciais, a violência e o preconceito racial e social, o cotidiano cru da periferia. Define-se como um cronista das favelas, cujo papel é incentivar a conscientização e a valorização da cultura dos guetos, daí as iniciais MV, de “Mensageiro da Verdade”. “Periferia é JPA, aqui é subúrbio”, demarca ele já no começo da conversa, numa referência ao status de bairro conquistado pela midiática favela Cidade de Deus, que tem 36,5 mil habitantes e se desmembrou de Jacarepaguá (JPA). Cantor de rap independente, líder comunitário, MV Bill ajudou a fundar e foi embaixador da Central Única das Favelas (Cufa). Organização popular reconhecida pela ONU por ações educadoras, de lazer, esportes, cultura e cidadania, a Cufa tem sedes em 27 estados brasileiros, escritório em Nova York e outras 600 cidades em 18 países. “Um grande diferencial é o incentivo ao protagonismo, não deixar que a gente vire coadjuvante da nossa própria história”, define.Considerado pelos aficionados do gênero o rapper mais influente do país, Bill é escritor, compositor, arranjador, documentarista, roteirista e apresentador do programa de entrevistas homônimo de um dos seus quatro CDs, O bagulho é doido, no Canal Brasil. Com Celso Athayde, realizou o documentário Falcão – Meninos do Tráfico, depois publicado em livro; e é coautor, com Athayde e Luiz Eduardo Soares, do livro Cabeça de Porco. Pela militância no movimento negro e iniciativas sociais, ganhou os prêmios Juventude, da Unesco; Direitos Humanos, do Ministério da Justiça; Cidadão do Mundo, da ONU; e Wladimir Herzog, do Sindicato de Jornalistas de São Paulo. “Começo a pensar em criar o partido da favela, não como solução, mas como contraponto”, resume nesta entrevista ao Extra Classe.
Extra Classe – A opção pela música te salvou do tráfico e da violência que atingem a maioria dos jovens da periferia. Como foi?
MV Bill – A primeira coisa é deixar claro que periferia é Jacarepaguá. Eu nasci no subúrbio, na favela Cidade de Deus, e como sabemos, nesses ambientes é onde as relações são mais tensas por todas as coisas que sabemos, seja pelo descaso do Estado ou pela repressão a que essas pessoas estão submetidas. Reconheço que dos meus 14 anos pra cá melhorou muito, mas estamos longe do ideal. Minha infância foi igual a de todos os jovens da favela que são criados nas vielas e nos campinhos, mais expostos a balas e à sedução da vida bandida. Eu era desses, que transitava pelos mais diversos segmentos da favela, vivendo sempre no limite. Um filme me mostrou que há saídas e me apresentou ao hip hop, Colors (As cores da violência, 1988, de Dennis Hopper). Mas conhecer o rap ainda não foi o bastante, resolvi ajudar a transformá-lo em um movimento social e hoje participo do rap que acredito, aquele que tem compromisso com o que prega nos palcos.
EC – Compromisso com o quê?
Bill – Acima de tudo, com a nossa capacidade e protagonismo. Com uma atitude política que não apenas pede para o sistema aceitar os pretos, para a TV nos permitir papéis de protagonistas. Pois bem, definimos que nosso plano de paz é ocupar todos os lugares, com dignidade. Por isso tenho hoje três livros e estou escrevendo mais três, dirigi filmes e fiz muitas outras coisas e isso é, sobretudo, para mostrar que podemos, na prática.
EC – Quem são as tuas referências?
Bill – Tenho muitas. Desde Noriel Vilela, passando por NWA (sigla do extinto Niggaz Wit Attitudes – Negros com atitudes, grupo de Gangsta Rap norte-americano formado em 1986 em Compton, Califórnia, por Eazy E, Dr. Dre, Ice Cube, DJ Yella, MC Ren e Arabian Prince), flertando com Bezerra da Silva, indo até Dr. Dre. Eu sei que é clichê dizer que a música não tem fronteiras, mas isso é a mais pura verdade. Gosto de muitos estilos e tendências, mas o amor pelo rap vai além da batida: é pela liberdade que essa arte me proporciona.
EC – Como explicar o rap para pessoas que não curtem ou não conhecem esse gênero musical e com frequência o associam com apologia à violência, às drogas, ao mundo do tráfico, à sujeição das mulheres, à ostentação?
Bill – Isso não tem a ver com o rap, tem a ver com o olhar dos homens do asfalto que acham que todas as vozes que se levantam de favela são apologia. Foi assim com o samba, até que se asfaltizou, mas antes era discriminado, como a capoeira, o funk… quando você vai ao teatro e tem gente nua é arte, se você for um MC e colocar uma mulher nua como forma de arte para seu show, aí é pornografia. Ou seja, o problema não tem a ver com a favela, pois fazemos as mesmas coisas, a favela e o asfalto. A questão é que somos interpretados de maneiras diferentes. Fui processado por apologia por ter escrito um livro chamado Falcão – Meninos do tráfico (2006, com Celso Athayde) no qual eu relatei alguns casos reais. Fui taxado de fazer oficialmente apologia ao crime e associação ao tráfico. Eu disse que não era apologia coisa nenhuma e desafiei a provarem a acusação. Não provaram. Vivemos num país onde, por exemplo, existem dois livros que são chamados de literatura, um é Comando Vermelho e o outro é CV-PCC – A irmandade. Pois bem, quem escreveu foi o Carlos Amorim. Se fosse um favelado seria apologia, como não foi, é arte. Então o problema não está conosco, está com o asfalto e com quem reproduz esse tipo de pensamento.
EC – Mas as tuas músicas, por exemplo, mostram que é possível abordar as relações raciais, a violência e a realidade da periferia sem a apelação machista recorrente nas músicas de certos compositores do gênero, não?
Bill – Nem sempre foi assim. A diferença é que percorri ao longo dos anos um longo caminho e sou mais compreendido hoje. O olhar da mídia é diferente para mim em relação aos meus pares. Os cantores desses lugares são cronistas, que por isso fazem seu trabalho de narrar os fatos. Se querem mudar a narrativa, é melhor mudarem a realidade de onde eles vivem. Mas é lógico que o machismo e todos os outros “ismos” estão presentes no mundo e, seja da favela ou do asfalto, as pessoas colocam parte do que pensam em suas músicas, na favela também é assim.
EC – Por que o nome MV Bill?
Bill – No início eu pregava o rap para as pessoas na Cidade de Deus como se fosse uma religião. Alguns passaram a me chamar de “o cara da mensagem” e outros “o maluco da verdade”. Juntei as duas coisas e criei a sigla MV (Mensageiro da Verdade). Eu só tinha 14 anos, muito inocente. Há três anos uma fã deu uma nova definição à sigla pela internet: “Missão de Vida”.
EC – Em 2003 você criticou o filme Cidade de Deus. O filme não agradou a comunidade?
Bill – A polêmica foi grande e já faz parte do passado, mas a questão não era o filme. Todos têm o direito de fazer o filme que quiser. A reflexão que eu trazia era outra: o Estado que viabiliza recursos públicos para mostrar a desgraça de uma favela é o mesmo que nega a essa favela seus direitos básicos e diz que não tem dinheiro. Sou a favor do protagonismo e as favelas devem ter seus filmes também, filmados por elas mesmas. Só que até aquele momento não tínhamos o nosso direito de escolha, hoje sim. Muita gente que faz cinema em favela hoje não sabe o quanto foi importante aquele debate para essa compreensão. Mas o que importa é que o filme foi fundamental para mostrar uma realidade e nós não desperdiçamos a chance de refletir sobre vários assuntos que o envolviam.
EC – Como a mídia mostra a realidade dos morros?
Bill – A mídia é a reprodução dela mesma. Não faço crítica aos redatores e nem aos´jornalistas, eles tratam a favela com a mesma distância que falam de Marte. E tem todo o sentido, somos mesmo objetos estranhos para eles. Não poderia ser diferente. Nosso trabalho em parte é esse, ajudar a construir uma comunicação que fale com a favela, como ela deseja, mas não podemos esquecer que a favela é uma grande sociedade formada por 23 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Então, falar com a favela é falar com todas as suas diferenças e classes sociais. Não é simples.
EC – Por que a tua música não toca nas FMs? Há resistência?
Bill – Em primeiro lugar, não fazemos músicas para as rádios. Tocar em rádio significa fazer uma música com o padrão entendido pelos coordenadores, e como todos eles se formaram na mesma escola, só aprovam os mesmos tipos de música e definem a tendência. É como no mercado financeiro, se sair do óbvio vira uma tragédia. Isso limita a arte, que é feita sob medida para um programador de FM e também alimenta a cultura do jabá, justificada pela sobrevivência da própria rádio. Certo ou não, isso é uma grande prostituição fonográfica. O rap não entra nessa e eu em particular não participo. Nossas músicas fogem a esse padrão e vão continuar. Se por um lado é limitador, por outro eu não saio da mídia de rádio porque nunca entrei nela. Não estou associado à execução em FMs.
EC – A música Raiz afirma: “tomo cuidado para não sumir como o Amarildo”. O que aconteceu com o pedreiro?
Bill – É uma incógnita. O morador tem medo da polícia, mesmo ela se dizendo pacificadora.
EC – Nem todo mundo aprova as UPPs?
Bill – Elas estão nas favelas e eu sempre apoiei a ideia das UPPs. O problema é que não são máquinas que vão entrar para fazer o trabalho, são policiais, PMs, homens e mulheres que se formam no mesmo lugar. Sinto pena do governador (Luiz Fernando Pezão) e do Beltrame (José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio). Tenho certeza de que não concordam com o que esses PMs fazem de errado, pois o que fazem de certo é o trabalho deles. Não podemos por exemplo premiar um profissional por fazer o que é seu ofício. A corrupção impera na relação, os PMs e os traficantes querem as mesmas coisas, a mobilidade social, e esse é o maior problema. Eles descobriram que podem ser sócios e seus comandantes descobriram que não podem evitar.
Foto: Arquivo pessoal
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A Milícia é uma tragédia que muita gente prefere. O tráfico é uma tragédia que sustenta muita gente. A polícia combate e se beneficia de tudo isso. Estamos num beco sem saída
EC – A violência é mais letal para o jovem, negro e morador da periferia, como demonstra o relatório Você Matou Meu Filho! – Homicídios Cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro, da Anistia Internacional. Como vocês lidam com essa realidade?
Bill – A violência é o efeito colateral de outras anomalias. Há anos estamos falando isso.Os escândalos nacionais se sucedem. Não acho que eles sejam desculpas para a criminalidade, mas é um tempero importante para a desestruturação das relações institucionais, como a própria polícia e o fim da sua pretensa honestidade. Se queremos falar a verdade, olho para o crime, as drogas, usuários, Estado, política de segurança, política antidrogas e só vejo um futuro mais trágico. Os números mostram isso, estamos enxugando gelo há anos e parece que o gelo vai acabar e o caos está se instalando definitivamente. Falo disso há 22 anos, tem gente que fala há 50. E só tem piorado. A milícia é uma tragédia que muita gente prefere, o tráfico é uma tragédia que sustenta muita gente, a polícia combate e se beneficia de tudo isso. Estamos num beco sem saída. A cultura de violência é contra todo mundo, ninguém vai escapar desse problema. A questão é que vamos nos acostumando e nos adaptando ao tipo de violência que se apresenta na semana atual. No livro Cabeça de Porco, em coautoria com os mestres Celso Athaíde e Luiz Eduardo Soares (Objetiva, 2005), ajudamos a destruir alguns mitos e o maior deles é o mito da invisibilidade desses atores, que sofrem a violência e a reproduzem.
EC – A violência atinge todo mundo, mas há um recorte racial: 80% das vítimas de homicídio no país são negros…
Bill – Há poucos anos racismo era política oficial de governo no Brasil.Quando os negros ganharam a liberdade, que não foi dada, não deram terras e os negros voltaram para as senzalas, para trabalhar de graça, ou melhor, em troca de comida e um porão para dormir. Quer dizer, trouxeram os negros, os libertaram, mas não lhes concederam o básico, a liberdade. Então, temos hoje duas sociedades, os que estão nas ruas, presos e nas favelas, que são os herdeiros do caos; e os outros, que não são culpados de nada, mas são herdeiros da riqueza ou, se não são, parece, pois têm a cor dela. Por isso é natural que os pretos sejam os que mais matam e os que mais morrem como resultado da violência. Mas isso era óbvio e historicamente estava nos planos de quem os trouxe para cá. O problema é que a elite está perdendo o controle sobre eles. Sobre nós.
EC – Qual a sua opinião sobre extinção da PM e polícia única?
Bill – Tenho acompanhando as discussões das PECs. Tem duas coisas que chamam a atenção: a Polícia Militar me parece que está reivindicando o direito de fazer tudo quando for desmilitarizada.Ela iria fazer a prevenção, a prisão e iria lavrar os autos até chegar ao juiz. Bem, se eles hoje simulam, matam covardemente as pessoas, imaginem se tiverem a prerrogativa de levar a investigação dos crimes até o final, substituindo a Polícia Civil e produzindo as peças dentro dos batalhões como muitos defendem. Posso estar errado, e se estou, então falta um debate com a sociedade para ela escolher que polícia ela quer. A Polícia Civil precisa se posicionar também, o que não podemos é ter delegados de um lado, coronéis do outro e nós espremidos no meio.
EC – Como está a realidade das favelas no Rio?
Bill – São mais ricas, são mais autônomas, são melhores, são mais esclarecidas, mais organizadas e mais controladas. Pelo tráfico, pela milícia e pelos cabrestos políticos.
EC – Em 1999, você criou junto com Celso Athayde e Nega Gizza a Central Única das Favelas (Cufa). Qual a importância dessa iniciativa?
Bill – A importância está demonstrada pelos fatos. Ela está em 18 países e acaba de ser reconhecida no Conselho da Organização das Nações Unidas (ONU). A existência da Cufa, uma organização que fala com partidos, mas não faz política partidária, que vai na mídia, mas não fica fazendo careta dentro dela e nem se encanta. A Cufa tem demonstrado maturidade e avançado, formado gente em grande escala. Era isso que ela queria, produzir espaços para as favelas terem senso crítico sólido. Temos uma participação importante no avanço das favelas e sabemos disso. Mas sabemos que a luta só está no começo e somos um grupo importante, mas que não queremos ocupar o lugar do Estado. Podemos contribuir, mas quem tem que fazer o seu papel de criar alternativas
para todos os jovens é o Estado, não nós.
EC – A guerra ao tráfico está perdida?
Bill – Se está perdida eu não sei, só não vejo solução. Em nenhum lugar. Uma alternativa é a descriminalização, mas nem sobre isso há posições claras e coerentes. Ouço discursos inflamados e inteligentes, mas se as propostas que estão colocadas vão funcionar para a nossa realidade é outra coisa.Termos o controle sobre a maconha. É uma coisa…, mas quando falamos de crack, merla, cocaína, por exemplo, como vamos controlar a noia (crises de abstinência)? Esse é o problema, as propostas são boas e precisam ser testadas, mas, antes, debatidas seriamente. Só que depois que colocar na rua não teremos como voltar a página.
EC – Se o tráfico promete ao jovem da periferia poder, armas, trabalho e brenda, como a sociedade pode fazer para atrair esses jovens para a escola e o mercado formal de trabalho?
Bill – Muitos jovens que trabalham no tráfico trabalham também no mercado formal, o tráfico é só um complemento. Mas a forma mais eficaz de combater o tráfico é proporcionar oportunidades para os jovens a partir da estabilidade dos pais. Afinal, como pensar um futuro para crianças que em casa não têm o que comer?
EC – Como as políticas sociais como o Bolsa Família incidem sobre a realidade das comunidades dos morros? Onde o Estado falha e onde acerta?
Bill – As políticas sociais foram importantes na medida que tiraram uma parte dos recursos que estavam no pico da pirâmide e passaram para a base. Isso fez com que houvesse uma distribuição de renda entre os ferrados, gerando e circulando esse dinheiro na barraca do camelô, por exemplo. Essas pessoas passaram a olhar para o futuro e ver algo, o que antes não era possível. E quando se perde as esperanças, se perde tudo, a vida não tem mais valor. Mas existe risco de dependência se cada um não definir
seu próprio projeto de futuro.
EC – Como vê o avanço de ideias ultraconservadoras no atual Congresso?
Bill – Posso ser a favor da maioridade penal para pessoas de dez anos de idade, desde que seja para todos. Sabemos que não é assim e se não é assim é melhor deixar como está. Dividiram esse país. Não sei até que ponto isso é bom, pelo menos nessa divisão as relações ficaram mais claras e por isso mais justas. Antes era muito confuso porque ninguém se definia como de nenhum lado. Hoje sei quem não merece meu voto porque sei a sua posição. Os bacanas dizem que os pobres não sabem votar, como se eles próprios soubessem. A diferença é que os pobres passaram a votar a partir dos seus interesses, ainda que seja cesta básica ou dentadura. No fundo, todo mundo vende voto, a diferença é que cada classe social tem seu preço. O Congresso é conservador e entendo que precisamos mudar isso, porque eu estou do lado de quem não é conservador. Os movimentos apoiados pela mídia que colocam certas pessoas como referências nacionais são preocupantes, mas as pessoas que vivem onde eu vivo não estão embarcando nessa onda conservadora. A corrupção deve ser combatida sim. Mas se pedir a quebra do sigilo de todos os parlamentares vamos descobrir que 80% têm patrimônio maior do que o declarado e escondem dinheiro no exterior. Começo a pensar em criar o partido da favela, não como solução, mas como contraponto.
EC – Tens outras incursões pela literatura e aparições na televisão inclusive em novela. Como são essas experiências?
Bill – Têm a ver com o protagonismo que eu referi. Tenho hoje três livros e estou escrevendo mais três, dirigi filmes e fiz muitas outras coisas e isso é para mostrar que somos capazes. Acabei de lançar o primeiro clipe no Brasil feito em realidade virtual (360 graus) da música Só Deus pode me julgar, gravei dentro da Cidade de Deus numa parte onde poucos vão. E um EP com cinco faixas inéditas… acho que cada faixa tem um pouco do que a gente falou nesta entrevista.