Aclamado no exterior como o mais importante escritor cubano da atualidade, Pedro Juan Gutierrez é um anônimo na ilha. Ao contrário de outras lendas da literatura local, como o poeta Nicolás Guillen e Alejo Carpentier, ele é um fantasma nas bibliotecas e livrarias nacionais. O motivo? Ter levado para o resto do mundo um retrato cru da sociedade cubana da década de 90 em livros como O Rei de Havana e O insaciável homem-aranha. A atitude foi considerada contra-revolucionária pelo governo de Fidel Castro, que boicota sistematicamente seu trabalho. No início dos anos 90, durante o chamado “Período Especial”, pós-queda da URSS, a situação econômica do país era tão dura que quem tinha sorte vivia com um salário entre 2 e 5 dólares e, em algumas partes da ilha, não havia comida nem água para consumir. Taxado de oportunista pela crítica cubana, Gutierrez confessa nessa entrevista que, diante da situação do país, “a literatura foi um escape para evitar o suicídio”. A recuperação econômica de Cuba nos anos 2000 coincide com a volta da auto-estima do autor, que deseja apenas se afastar de um mundo que o consumiu durante anos: álcool, cigarros e sexo. “Estou tratando de me distanciar desse ambiente, de dissolver-me um pouco”. Foi assim, de cara limpa, que Pedro Juan Gutierrez recebeu a reportagem do jornal Extra Classe para tomar um café no coração de Havana, capital de Cuba. Gutierrez admite que, com o fim da depressão – econômica do país e psicológica dele mesmo – se foi também a inspiração para criar. “ A literatura se produz do assombro e, no momento, eu o perdi”, confessa. Ainda assim, lançou em Cuba, na Grécia, Itália e Espanha uma novela que tem como personagem central Graham Greene, e se baseia em fatos verídicos sobre a passagem do escritor inglês por Havana, em 1955. O autor revela que já assinou contrato para a tradução de Nuestro GG em La Habana no Brasil, onde a obra ganhará o selo da Cia. das Letras, tal como seus títulos anteriores, e será lançado em 2008. Gutierrez já confirmou presença no próximo ano como painelista de importante evento cultural do estado.
Extra Classe – Havana não inspira nada mais do que as coisas sujas que você escreve?
Pedro Juan Gutierrez – É muito complexo te explicar isso. Sobretudo na Trilogia Suja de Havana, O Rei de Havana e Animal Tropical – que seguramente é ao que você se refere – eu escrevo em um momento de crise em todos os sentidos. Crise política, ideológica, moral, ética. Tinha 44 anos quando comecei a escrever isso, em 1994. Era outra situação, muito diferente da que vivemos agora. Isso influi por um lado, porque fui jornalista durante 26 anos. Quando você é jornalista por tantos anos, se converte em um radar, capta tudo o que está passando ao seu redor. E entende, sobretudo, o que está passando no seu país. Entende todos os códigos: a forma como se vestem as pessoas, como falam, como se projetam, a gestualidade. E esses livros são, de algum modo, um pouco sociológicos, antropológicos, jornalísticos ou testemunhais de uma época do país, de uma parte de Havana e de uma época de minha vida. É uma mescla de ficção com realidade. Não se pode tomar a literatura ao pé da letra.
EC – Como assim?
Gutierrez – Nessa etapa eu estava muito aturdido. Levara uma vida de gente de classe média. Tinha viajado desde 1982 pela Europa, Brasil, México, todos os lados. Fazia poesia experimental, que é uma coisa muito elitista, pouco compreendida. Dedicavame à poesia visual, experimental. Estive em São Paulo em 1984 ou 85 – minha primeira vez no Brasil – numa exposição muito grande com Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos, toda essa gente tão experimentalista. Esse era o meu mundo. E, de repente, me vejo obrigado a estar na rua, sem um centavo, vendendo qualquer coisa para sobreviver. Foi um choque muito forte para uma pessoa que tinha viajado, que se graduou na Universidade de Havana, um jornalista com dois carros. De repente me vejo sem família, sem casa, feito um vagabundo, sem um centavo e sem saber de onde tirar dinheiro. O projeto político que eu defendera, a capa e espada, se convertem em sal e água da noite para o dia. Meu mundo caiu em pedaços. E minha resposta foi um alcoolismo desesperado, um tabagismo desesperado, uma luxúria… Estou vivo por milagre: era para ter morrido de Aids ou sífilis! A literatura foi como um escape brutal a toda essa situação tão desesperante para evitar o suicídio. Então, em algum momento, penso em escrever tudo o que estava vivendo.
EC – E o que estava vivendo?
Gutierrez – Trepei com todas as mulheres que há neste bairro em Havana, tomei todo o rum que havia nos bares, fumei todos os charutos que apareceram. Então, em algum momento, me dou conta que estou levando uma vida apocalíptica e começo a escrever bêbado, pela noite. E guardava os contos em uma pasta. Nisso estive por três anos, até que não podia mais. Porque é muito desmoralizante quando levas uma vida tão terrível, mas ainda tens capacidade de análise. Porque eu não era um imbecil.
EC – Mas você ainda trabalhava nessa época…
Gutierrez – Tinha uma vida dupla: seguia trabalhando na revista Bohemia, onde me pediam um trabalhinho uma vez ao mês, coisa de uma ou duas páginas, e ganhava uma merda. O que eu ganhava equivalia a 30 ovos. Se eu conseguisse comprar 30 ovos, porque não havia comida nesse país, não havia nada, nada, nada. Ninguém imagina como foram os anos 90 em Cuba. A partir de 1991 não havia nem água para tomar nessa cidade, nada que cozinhar. É muito desmoralizante quando você leva essa vida e escreve sobre essa realidade. É uma coisa masoquista, dilacerante, auto-destrutiva. Quando termino a Trilogia, de contos, me restam dois personagens que ficam flutuando dentro de mim, porque escrevo com muitas emoções. Surge O Rei de Havana, uma novela que escrevo em dois meses, muito mais concentrado. Escrevia pela manhã, desesperadamente e, depois, pelas tardes. Disfarçava-me de mendigo e ia ao mercado Cuatro Caminos, pegava um tubinho de pasta de dente, passava terra na cara para parecer sujo. Minha então mulher acreditava que eu estava louco. Mas eu queria estar o dia inteiro nesse ambiente de miseráveis. Esses velhinhos que vendem pasta de dente…
EC – Como esses da avenida San Lazaro, de Centro Havana, que vendem pacotinhos de café…
Gutierrez – Sim, pacotinhos de café, pasta de dente. Eu passava ali o dia inteiro, falando com eles como se fosse um deles. Assim escrevi O Rei de Havana em dois meses. E tive muita sorte, porque isso se encaminhou na Espanha e fiz um dinheirinho, muito pouco, mas para quem não tem nada… Pude então começar a me recuperar economicamente. Já quando escrevi Animal Tropical, tinha uma situação econômica um pouco melhor. Seguia muito louco, muito machista, agressivo, alcoólico, luxurioso. Eu era um macho furioso! Essa coisa de ser furioso era como um mecanismo de conservação. Agredir as mulheres, os vizinhos, todo mundo. Então, escrevi poesia, que praticamente não se publicou. Mas a poesia é ainda mais agressiva, ainda mais furiosa, mais louca.
EC – Li na internet, no seu site…(www.pedrojuangutierrez.com)
Gutierrez – Leu, é? Toda essa historia começa em 1994. Em 12 anos publiquei sete livros pela Anagrama, a melhor editora da Espanha, e Melancolia de Los Leones, que não saiu no Brasil, por uma editora de Madrid. Tenho uma novela, que não sei se publicarão e outro, recém-terminado, se chama Corazón Mestizo. São dez livros de narrativa e quatro de poesia em 12 anos. A única coisa que quero, vou te contar. Estou me distanciando de Centro Havana. Tenho uma casinha fora de Havana. Estou tratando de me distanciar desse ambiente, de dissolver-me um pouco. Desgraçadamente, a vida não é assim… Tenho muitos compromissos na Colômbia e, inclusive, no Brasil, onde sou convidado de um congresso de Literatura Erótica.
EC – Sente vontade de escrever sobre outras coisas?
Gutierrez – A literatura se vive por dentro, é igual ao amor: uma idéia que se tem por dentro. A literatura, como o amor, se faz do assombro e, nesse momento, eu perdi o assombro. Você tem que estar emocionado por algo. Sempre vivi em Pinar del Río, na província de Matanzas. Estudei cinco anos na Universidade de Havana, prestei o serviço militar em Havana. Cheguei aqui com 37 anos e fui viver em Centro Havana, em um sótão no oitavo piso. Um bairro que já era horrível antes mesmo de começar a crise. Meu filho tinha 11 anos. Um rapaz do edifício me disse: “tenha cuidado porque você vem de uma cidade da província, aqui embaixo vendem drogas, maconha, cocaína. Podem usar seu filho e você vai ser o responsável”. Fiquei apavorado.
EC – Foi um choque…
Gutierrez – Então aí começou o assombro. Já tinha muitos vícios de escrita, passei muitos anos num processo de aprendizagem. Quando isso se mescla com o assombro de me encontrar numa realidade que nunca imaginei, começo a produzir uma literatura muito estranha, diferente, para a qual vinha me preparando mentalmente desde os 17, 18 anos. Quando li Boneca de Luxo, de Truman Capote, senti uma naturalidade que não há na maioria dos livros. É impossível perceber os truques de narrativa. Dei-me conta da maravilha que era e decidi escrever dessa maneira. Coloquei isso na cabeça e demorei 30 anos para aprender a escrever assim. Quem sabe por isso meus livros sejam tão convincentes… Sei que são, não me subestimo, quem os lê reconhece Havana. Mas quando chega aqui, vê que é uma visão de uma zona de Havana, de um determinado tipo de gente. Mas não é Havana totalmente, não é uma reportagem jornalística.
EC – Por que suas obras publicadas em Cuba não tratam dessas mazelas sociais e psicológicas? Se considera censurado?
Gutierrez – Sim, totalmente. Aqui não suportam meus livros. Se sentem agredidos com eles. É evidente que meus livros incomodam. Quando saiu a Trilogia Suja de Havana, me excluíram do jornalismo sem uma explicação. Tive sorte que a União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), que apesar de ser uma organização oficial, me apoiou em todos os sentidos. Já a União de Jornalistas me expulsou imediatamente. Fizeram uma leitura política da Trilogia. Neste país fazem leitura política absolutamente de tudo. Tu comentas que não há aspirina na farmácia e isso vira uma frase política. Então, é lógico que Trilogia incomodou, poisé um livro muito visceral, que penetra nas entranhas de um setor da sociedade cubana em um momento específico. Inclusive existe muita gente que me ignora aqui. Eu não existo, sou um fantasma em Havana.
EC – De fato, não se encontram seus livros nas livrarias e tampouco nas bibliotecas.
Gutierrez – Meus livros não estão nas livrarias, nas bibliotecas, não estão classificados, não me publicam, nada. Agora acaba de sair pela Editora da Uneac, Nuestro GG en La Habana, que não foi publicado no Brasil (onde será traduzido pela Cia. das Letras). Publicaram em Cuba, mas é um livro que se desenvolve em julho de 1955, com Graham Greene pelo meio, não tem nada a ver com a Revolução… São esses livros que publicam. Eu agradeço, porque ao menos fazem algo, não é? Mas, em geral, me dou conta que não caio bem, que sou um pouquinho pesadito. Aqui em Cuba, dizemos pesadito para alguém que não é muito tratável, que causa mal-estar.
EC – E você se incomoda com essa situação?
Gutierrez – Isso se passa com quase todos os escritores, não é? Um escritor ou um jornalista que se decide a ser forte, a não ser agradável, cai pesadito em um determinado momento. Porque essa é a sua função. Está exercendo uma função crítica na sociedade, como faz a maioria dos escritores de frente. Faz a gente pensar. Por isso, há determinados governos que têm medo dos escritores, gente de pensamento, de idéias. Porque um escritor faz dez pessoas pensarem, mas depois, essas dez já são cem, depois mil, dois mil, e vai ampliando. É o que acontece no Brasil com Rubem Fonseca, por exemplo. Que é um sujeito que escreve de maneira muito taxativa, muito visceral também. E faz pensar a essa gente. Não é Isabel Allende, que é tão amável… para o meu gosto, ela é desagradável. Rubem Fonseca é outra coisa, então tem que cair pesadito, tem que haver uma sociedade muito preparada para assimilar intelectuais dessa maneira.
EC – O que não é o caso de Cuba, não é?
Gutierrez – Não estamos nessa situação. Creio que toda a humanidade está atravessando um momento muito frenético. Estamos muito intolerantes, numa etapa de inflexibilidade incrível, agravada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, que não é o mesmo de 1939, da época de Hitler. Naquela época se manipulava mais, porque não havia televisão, não havia internet, a rádio tinha muitas limitações. Hoje nos inteiramos agora mesmo sobre o que se passa no Iraque, em Washington. O que acontece em Havana está em todo o mundo dentro de dois minutos. Atravessando uma etapa de frenesi, desespero, intolerância e inflexibilidade. E isso faz com que as pessoas que se dedicam ao pensamento, às idéias, a escrever, a fazer pensar não passem muito bem. O que querem é gente sorridente, para quem possam dar uma medalha, um prêmio, um carguinho qualquer. Ficam assombrados quando se encontram com um escritor, um intelectual sério, perspicaz, que diz: “eu não quero aplauso, sou um kamikaze e você me respeite.”
EC – Você defendia a revolução?
Gutierrez – Defendi um projeto revolucionário, um projeto político toda minha vida. Desesperadamente o defendi, com a minha própria vida. Era um jornalista oficial oficialíssimo, de muito respeito, muita confiança. Mas, por sorte, a gente vai mudando, evoluindo, não é sempre o mesmo. E há um processo de informação, de conscientização, que vai me afastando da política. Me distancio da política e vou necessitando levar uma vida mais privada, mais intensa, mais interior. E isso coincide com essa situação de pobreza, de miséria, de crise econômica, moral, ética e todo tipo. Me dedico a escrever sobre isso e nada mais.
EC – Pode-se dizer que a sua inspiração vinha da tristeza?
Gutierrez – Não só da tristeza, mas do desencanto também, vem do desespero produzido por esse desencanto. Estava acostumado a ver o mundo de uma maneira e, de repente, começo a vê-lo de outra. E isso me produz muito desencanto, muito aturdimento… Você se dá conta de que há algo mais, de que o mundo não é tão bonito. Não é tão justo e equilibrado.