Na mira da justiça, as organizações não-governamentais (ONGs) estão sendo alvo de investigações dos Ministérios Públicos (MP) estaduais e federais, do Tribunal de Contas da União, da Controladoria Geral da União (CGU) e de Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI) no Congresso Nacional e em vários legislativos estaduais do país. Desvios de recursos, falta de estrutura e de capacidade técnica para desenvolver os projetos figuram entre as irregularidades que estão sendo averiguadas. Outro aspecto que chama a atenção é a falta de acompanhamento, por parte dos governos, da aplicação desses recursos, fator que, segundo promotores, advogados e integrantes das organizações, cria um terreno fértil para que o dinheiro público escoe pelo ralo. E é, no mínimo, lamentável que essas ilegalidades prejudiquem, principalmente, a população de baixa renda, visto que a maioria dos projetos visa a ofertar atendimento social a esse público.
Um pequeno demonstrativo da seriedade da situação pode ser constatado na investigação realizada pela CGU em apenas 10 organizações no decorrer de 2006. Ao analisar 28 convênios com recursos federais, entre os anos de 1999 e 2005, foram detectados diversos problemas em 15 deles. Entre eles, os auditores apontaram “deficiências na avaliação técnica, na apreciação jurídica dos planos de trabalho, nos termos de convênios e aprovação de convênios na ausência ou à revelia de pareceres”. Resultado, dos R$ 150 milhões repassados, mais de R$ 82 milhões, correspondentes a 54,5% do total, foram utilizados indevidamente. A inexistência de mecanismos de fiscalização fica clara com o caso da Urihi – Saúde Yanomami, uma das que apresentou irregularidades. Essa organização celebrou três convênios com a Funasa, sendo que o primeiro, no valor de R$ 8.778.787,09, foi repassado apenas três meses após a fundação da mesma. Esse exemplo, segundo relatório da CGU, deixa evidente a falta de preocupação dos órgãos em avaliar as condições práticas antes de transferir recursos. E se o dinheiro parece sair com uma certa facilidade, o mesmo não acontece quando se constata a necessidade de devolução. No relatório, consta que a ONG alega não ter condições de devolver os recursos, visto que foi criada para trabalhar especificamente nesse projeto.
Longe de ser um panorama completo, as irregularidades descobertas pelos auditores parecem ser apenas a ponta do iceberg. No Rio Grande do Sul, por exemplo, – um dos estados em que nenhuma dessas instituições passou pelo pente fino da CGU – , tramitam nos MPs cerca de 13 investigações: três referentes a verbas provenientes do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, e o restante diz respeito a recursos municipais. Segundo César Facciolli, promotor de justiça no Rio Grande do Sul, a proliferação das ONGs e as brechas legais, aliadas à falta de mecanismos eficientes para fiscalizar, permitem o estabelecimento de convênios duvidosos. “Constamos que, nos últimos anos, tem aumentado a incidência de denúncias na mesma proporção em que cresce o número de instituições. Essa era uma realidade que nós desconhecíamos, porque, há alguns anos, tínhamos a imagem de que as ONGs eram formadas por grupos de abnegados que se reuniam para trabalhar pela sociedade”, avalia. Faciolli ressalta ainda que também há anormalidades cometidas pelos gestores públicos, visto que muitos fazem contratos de trabalho através de ONGs, sem fazer concurso público. De acordo com promotor, os cerca de 10 casos que estão em processo de averiguação foram abertos devido a denúncias, que vão desde a má execução dos projetos até a apropriação indevida de recursos públicos por parte de dirigentes das organizações.
Para a promotora de justiça Karin Sohne Genz, que atualmente coordena o Centro de Apoio Operacional Cível e de Defesa do Patrimônio Público em Porto Alegre, é fundamental que, além de investigar, sejam planejadas ações de combate. Ela explica que no Rio Grande do Sul está sendo realizado um mapeamento de todas instituições que atuam no Estado. “Temos indícios de que existem desvios de recursos e vamos nos organizar para enfrentar essa situação”, pontua. Ela explica que, após a conclusão do levantamento, o qual deve estar concluído até o meio do ano, será discutido e elaborado um plano de ação para orientar os promotores, diz.
Falta de fiscalização facilita abusos
Uma das brechas bem-aproveitadas por entidades que agem de má-fé é a falta de fiscalização e de rigor na aprovação de financiamento de projetos. Daniel Lisboa, ex-dirigente da União de Apoio e Prevenção à Aids (Uapa) de Gravataí, reconhece que os trâmites são feitos apenas no papel. “Não há nenhuma acompanhamento in loco. Tanto a prestação de contas quanto o planejamento são feitos através de relatórios”, ressalta. Ele estava na presidência quando a entidade recebeu R$ 56,9 mil do Programa Nacional DST/AIDS para o HIVerde. O projeto previa a criação de um espaço para que os portadores de HIV realizassem atividades de plantação, cunicultura e apicultura com o objetivo de gerar renda. “A prefeitura cedeu o terreno, mas, por falta de preparo técnico, o projeto acabou não sendo executado”, declara. No Ministério da Saúde, não há registro de irregularidade. A assessoria de comunicação do programa registra apenas que o projeto iniciou em 2001 e finalizou em 2003. De 2002 a 2005, a Uapa recebeu mais R$ 99 mil do DST/AIDS para outras ações.
A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids – (RNP+ POA) também está no crivo do Ministério Público Federal. A RNE recebeu, também do DST/AIDS, mais R$ 65 mil. A verba deveria ter sido usada na implantação de um projeto de geração de renda e de um consultório odontológico para beneficiar os portadores de HIV. Nenhum dos dois foram executados e, mesmo estando sob investigação, ela continua constando no site do programa (http://www.aids.gov.br) como uma das entidades parceiras, só que o endereço e os telefones de contatos estão desatualizados. Procurada pela reportagem, a responsável pela entidade, advogada Maria Beatriz Pacheco, não quis manifestar-se sobre o assunto.
Para Jaime Berdias, que integra a Rede Nacional de Portadores Vivendo com Aids, organização sem vínculo jurídico e integrada por soropositivos, aponta para a necessidade de mais rigor. “Reconheço que as ONGs tiveram um papel importante na luta pelos nossos direitos, mas queremos que os recursos públicos sejam realmente utilizados para melhorar a nossa qualidade de vida e ajudar no combate da proliferação da doença”, cobra.
Outra organização que está sendo investigada é a Hathor – Ações de Amor à Vida. Ela desenvolvia o programa Escola que Protege, que prestava atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência. Além de Porto Alegre, o programa passou a ser implantado nas cidades de Fortaleza, Recife e Belém. Pelo convênio, a entidade assumiria o monitoramento e a avaliação da equipe que seria treinada para a ação. Resultado, além de estar sendo fiscalizada acerca da utilização dos R$ R$ 692.397,57 repassados pelo Ministério da Educação, a Hathor também foi denunciada por intermediar a contratação de profissionais para prestação de consultoria à prefeitura de Santa Maria. A então responsável pela entidade não foi encontrada pela nossa reportagem.
Disputa pelo dinheiro público
Levantamento do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) mostra que entre o período de 2001 a 2006, o total de recursos repassados diretamente da União às entidades privadas sem fins lucrativos chegou a R$ 14 bilhões. Para 2007, o projeto de orçamento prevê o repasse de R$ 2 milhões, sem contabilizar os repasses dos Estados e municípios. Uma coisa é certa: a disputa por esses recursos tende a se acirrar. Levantamento realizado pelo IBGE mostra que em 2002 havia no Brasil 276 mil ONGs. Atualmente, abalizados nos números de pedidos de parcerias com os governos e benefícios tributários, estima-se que surgiram de lá pra cá em média oito por dia.
Cláudio Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil não mede palavras para criticar a falta de critérios para estabelecer essas parcerias. “Como existe uma tendência fortíssima de as pessoas se convencerem por palavras de ordem politicamente corretas, muitas ONGs vivem disso. Formulam babaquices inacreditáveis, e as pessoas acham o máximo”, dispara, acrescentando que é preciso investigar os interesses que essas organizações defendem e o que fazem.