Choque de gestão: o que vem por aí
Arte de Claudete Sieber sobre foto de Tânia Meinerz
Arte de Claudete Sieber sobre foto de Tânia Meinerz
O quadro financeiro encontrado pelo novo governo estadual não é nada animador. A dívida consolidada do Estado, que era de pouco mais de R$ 26 bilhões em 2003, em abril de 2006 chegou a mais de R$ 32 bilhões, apesar de terem sido pagos mais de R$ 1 bilhão em juros no ano. Somente em 2004, o serviço da dívida comprometeu 14,6% da receita corrente líquida do Estado. As previsões indicavam que esse comprometimento chegaria a cerca de 19%. Esse quadro de endividamento está acima do que é permitido pela Resolução nº 40 do Senado Federal, que prevê que a dívida líquida dos Estados não pode superar o equivalente a duas vezes sua receita corrente líquida. O acordo de renegociação da dívida, assinado em 1998 pelo ex-governador Antônio Britto e pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não ajudou a melhorar esse quadro, representando uma despesa de cerca de R$ 1,8 bilhão por ano, mais um fator de estrangulamento para o Estado.
Para enfrentar esse cenário, a governadora Yeda Crusius (PSDB) anunciou que vai executar um choque de gestão. Esse choque ainda não tem contornos muito bem definidos, mas deve envolver severos cortes de gastos e de investimentos por parte do Estado e uma reestruturação do modo de trabalhar dos servidores. Entusiasta de padrões de gerenciamento da iniciativa privada, o governo já anunciou que pretende governar a partir de metas e de avaliações permanentes do trabalho de secretários e servidores, com a instituição de prêmios pelo bom desempenho. Essas medidas foram confirmadas pelo marido da governadora, Carlos Crusius, e pelos secretários Aod Cunha (Fazenda), Daniel Andrade (Infra-Estrutura e Logística) e Fernando Schüler (Comunicação). Segundo eles, o processo de avaliação começa com experiências-piloto em áreas específicas. Ainda não foram confirmadas quais serão essas áreas e como essas experiências serão implementadas.
Primeiros meses serão decisivos
O caráter gradual do choque de gestão prometido pelo governo permanece uma incógnita. No que diz respeito aos prêmios por desempenho, por exemplo, o que se sabe é que eles só serão aplicados ao conjunto dos servidores após ter sido obtido o equilíbrio fiscal no Estado, o que pode levar um tempo considerável. Pelo que já foi dito até aqui pelos integrantes do primeiro escalão do governo Yeda, os primeiros meses de gestão devem ser dedicados à reorganização de secretarias, cortes de gastos e reestruturação dos planos de carreira. Segundo o economista Carlos Crusius, que não tem função oficial no governo, mas que desempenhou um papel protagonista no processo de transição, o conjunto de “programas estruturantes” do “novo jeito de governar” deverá ser anunciado lá pela metade de 2007. O governo de Aécio Neves, em Minas Gerais, apontado por
Yeda como modelo, adotou 34 desses programas, extinguindo secretarias e reorganizando carreiras.
A idéia geral, logo nos primeiros meses de governo, era promover um pesado ajuste fiscal com o objetivo de tentar equilibrar rapidamente as contas públicas – o que acabou sendo abortado com a rejeição do pacote fiscal pela Assembléia Legislativa. Segundo estimativas feitas pela equipe de transição, o déficit de caixa poderá chegar a R$ 3,3 bilhões em 2007. Para se ter uma idéia, esse valor é quatro vezes maior do que aquele que o governo Aécio Neves recebeu em seu primeiro ano de governo. Além disso, o governo pretende reestruturar toda a máquina estatal, com extinção de algumas pastas, fusão de outras e definição de metas e indicadores que deverão ser seguidos por todos os órgãos de governo. No entanto, esse conjunto de medidas pode ser insuficiente para dar conta do rombo financeiro no Estado, o que leva a equipe do governo a insistir em uma medida contra a qual se comprometeu durante a campanha eleitoral: o aumento de impostos.
Obstáculos políticos
E essa medida acrescenta um novo tipo de obstáculo de natureza política. A mera menção à possibilidade de manter o tarifaço aprovado pelo governo Germano Rigotto e de aumentar a alíquota básica do ICMS de 17% para 18% despertou uma enxurrada de críticas, inclusive junto à base aliada do governo Yeda. Por conta disso, o pacote acabou derrubado pela maioria dos deputados. Em dezembro de 2004, o ICMS de gasolina, álcool, energia elétrica e telefonia foi elevado em cinco pontos percentuais, através de projeto de lei enviado à Assembléia pelo governo Rigotto e aprovado por uma pequena minoria. A medida acabou repercutindo negativamente no desempenho da indústria gaúcha, provocando protestos de entidades de trabalhadores e de empresários. O vice-governador Paulo Feijó, então presidente da Federasul, foi um duro crítico da idéia durante a campanha. Como aconteceu no período de transição, Feijó não foi consultado sobre o tema e não ficou quieto quando ficou sabendo da medida.
Ele fez duras críticas à proposta, inclusive depois da derrota na Assembléia: “ Aumentar as alíquotas de ICMS significa tirar dinheiro do bolso do trabalhador e colocar dinheiro nos cofres do governo, e essa não é a saída para o desenvolvimento”. A tentativa de fazer passar o tarifaço foi admitida antes da posse pelo secretário da Fazenda, Aod Cunha, e desmentida mais tarde por Yeda Crusius. A simples circulação dessa idéia já serviu para indicar o alto grau de dificuldades políticas que a proposta de choque de gestão do governo tucano pode enfrentar. A maioria dos deputados da base do governo rejeita a idéia e manifesta preocupação com os rumos do anunciado choque de gestão. Jornais de Porto Alegre chegaram a anunciar que deputados do PMDB estariam pensando em sair da base de apoio do governo tucano, dependendo das primeiras medidas que forem adotadas.
O vice Paulo Feijó representa outra incógnita no que diz respeito ao modo pelo qual será aplicado o choque de gestão. Sem função definida no governo, o empresário entrou em rota de colisão com a governadora diversas vezes durante a campanha eleitoral e no processo de transição. Defensor das privatizações e do Estado mínimo, Feijó acredita que sem a privatização de empresas estatais não há solução para a crise do Estado. Logo após o segundo turno das eleições, o vice-governador, durante uma palestra a estudantes universitários em Porto Alegre, chegou a relacionar as empresas públicas que, na sua opinião, deveriam ser privatizadas: Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (Corag), Companhia de Processamento de Dados do Estado (Procergs), Fundação de Economia e Estatística (FEE) e Centrais de Abastecimento do RS (Ceasa). Além disso, voltou a defender a federalização do Banrisul, o que poderia ser o primeiro passo para sua privatização.
Críticas ao modo tucano de governar
Nos dias 7 e 8 de dezembro, a bancada do PT na Assembléia Legislativa promoveu um seminário para analisar as experiências de governos tucanos em São Paulo e em Minas Gerais nos últimos anos. Para tanto, convidou os coordenadores das bancadas estaduais petistas nos dois Estados: o sociólogo Ricardo Guterman (SP) e o advogado Carlos Eduardo Araújo Morato (MG). Guterman e Morato fizeram várias críticas ao “modo tucano de governar”. Segundo eles, o choque de gestão proposto pelas administrações do PSDB se traduziu em transferência de capital público para o setor privado e no desmantelamento de estruturas do Estado, com sérias conseqüências na qualidade dos serviços públicos, especialmente aqueles destinados aos setores mais pobres da população. Para eles, o Rio Grande do Sul terá dias difíceis com esse modelo de governo.
O seminário dedicou atenção especial ao caso de Minas Gerais, apontado por Yeda Crusius como modelo para gestão. Morato foi duro na crítica ao programa de governo adotado em Minas, dizendo que “a maior contribuição que temos a dar ao país é a desconstituição de Aécio Neves”. Segundo ele, o modelo tucano de gestão começou a ser implementado no governo de Eduardo Azeredo que, articulado com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, deu início a um processo de privatizações no Estado. Essa primeira gestão do PSDB em Minas, observou, teve como resultado uma profunda desorganização da estrutura pública. Morato diz que, quando Aécio Neves assumiu, não era possível nem determinar quantos servidores públicos o Estado tinha. “O que Aécio fez foi adotar uma forte estratégia de marketing com o objetivo de dar uma nova coloração ao que havia sido iniciado por Azeredo”.
Ainda segundo o coordenador da bancada estadual do PT em Minas, o eixo do choque de gestão praticado por Aécio Neves pode ser definido por duas medidas: congelamento de salários do funcionalismo e redução do crescimento vegetativo da folha. O governador mineiro conseguiu aprovar na Assembléia Legislativa um instrumento legal que lhe deu poderes para tanto: a Lei Delegada, que dá ao governador o poder de editar leis. Logo no primeiro mês de mandato, relatou Morato, Aécio conseguiu aprovar 61 Leis Delegadas. Através delas, ele promoveu uma reforma administrativa que extingüiu seis secretarias, mas, por outro lado, dobrou o número de secretarias adjuntas. A reforma de Aécio incluiu um sistema de avaliação do desempenho individual dos servidores, adicional de desempenho, prêmio por produtividade e possibilidade de perda de cargo público por desempenho insuficiente.
Dois garotos: funcionalismo e infra-estrutura
A avaliação do funcionalismo, através de prêmios por produtividade e desempenho, com a possibilidade de perda do cargo, preocupa o funcionalismo público, afetado por uma política de arrocho salarial nos últimos anos. Pelos números da crise apresentados até aqui e pelo tom adotado pela equipe de transição, dificilmente os servidores públicos terão algum tipo de reajuste no primeiro ano de governo. A ordem de Yeda é zerar o déficit para só depois falar em reajuste salarial. Nos Estados onde foi implantado, como Minas Gerais, o sistema de adicional de desempenho e prêmio por produtividade acaba beneficiando uma minoria de funcionários e despertando muita polêmica em torno dos critérios para a concessão desses prêmios. Com o nível de poder aquisitivo em queda há vários anos, os servidores serão chamados mais uma vez a apertar o cinto e aumentar sua produtividade.
Outro gargalo que o governo Yeda encontra é na área de infra-estrutura, especialmente no setor de energia. A governadora já pôde constatar os problemas nesta área, que exigem investimentos urgentes, antes de assumir. Com a chegada do verão e das altas temperaturas – que parecem cada vez mais altas a cada ano –, os cortes de energia estão tornando-se freqüentes no Rio Grande do Sul. No dia 18 de dezembro, diversos bairros de Porto Alegre e de outras cidades da Região Metropolitana ficaram cerca de quatro horas sem energia por conta de problemas nas linhas de transmissão. O aumento do consumo provocado pelo forte calor vem escancarando os problemas de manutenção no sistema elétrico do Estado. No dia 20 de dezembro, cerca de 40 mil pessoas ficaram sem energia após um temporal que se abateu sobre várias regiões do Rio Grande do Sul. Somente em São Gabriel, 20 mil pessoas foram atingidas pelo corte de energia.
Também em dezembro, em Porto Alegre, ocorreu uma série de estouros de transformadores que não suportaram o volume do consumo. Até aqui, esses casos vêm sendo tratados de forma isolada, mas não dá mais para esconder que há um problema estrutural afetando o sistema elétrico do Estado, um problema que exige recursos para a manutenção das linhas existentes e para a ampliação do sistema de geração e transmissão. A pergunta para o início do novo governo é se o anunciado choque de gestão é compatível com investimentos emergenciais em infra-estrutura e na qualificação dos serviços públicos oferecidos à população. Yeda Crusius tem dito que o Estado só retomará sua capacidade de investimento através de um choque fiscal. A dúvida que preocupa a oposição e mesmo alguns aliados da governadora é se esse choque não acabará matando o paciente.