O que se segue deveria ser uma entrevista. Virou um debate. Na verdade, transformou-se em uma coletiva ao contrário, em que os entrevistados fuzilaram o entrevistador com as respostas antes mesmo que fossem feitas as perguntas. Cinco artistas, quatro em uma mesa de bar, o Fofa, localizado na Cidade Baixa em Porto Alegre e outro via e-mail enxertado virtualmente na conversa (Pt Barreto, que reside em São Paulo). Sob o guarda-chuva “futebol e arte”, valeu de tudo, uma verdadeira pelada. O motivo da conversa: a exposição coletiva dos artistas na Fundação Ecarta a partir do tema futebol, intitulada “Olheiro”. Também participou Hugo Gusmão Rodrigues, organizador da exposição. Cada um fala do seu trabalho e da sua relação pessoal com a bola, sem deixar de lado as analogias existentes entre a arte e o futebol. No final das contas, o pessoal bateu um bolão. E olha que não tinha juiz.
Extra Classe – Sendo o futebol tão presente na cultura nacional, não existe uma escassez de trabalhos artísticos e teóricos sobre o tema?
Eduardo Haesbaert – Existem artistas do centro do país que usam o futebol como tema. Por exemplo, há um cara do Rio que tem um trabalho totalmente em cima do jogo de bola. Então isso prova que existe inspiração no futebol, e são vários os trabalhos. Eu, por exemplo, jogava futebol desde guri, lá na Campanha, naqueles campos verdes que não acabavam nunca. E o detalhe do jogo de bola na coxilha é que, diferente daqui, que se joga um tempo contra o sol e outro a favor, o melhor é pegar o segundo tempo na parte mais alta, porque aí é só descer a ladeira na direção do gol (risos).
EC – Mas é uma coisa recente?
Flávio Gonçalves – Não acho. Já tinha uns Portinari com uns guris jogando bola em um campinho.
Pt Barreto – O Rebolo jogou no Corinthians dos anos 30, tem belas pinturas retratando futebol e foi quem pôs os remos e a âncora no escudo do timão (referindo-se ao Corinthians).
EC – Mas não tem essa coisa da alta cultura olhar o futebol com desdém?
Gonçalves – Mas concordo que o futebol nunca foi um grande tema para a arte. O que se tem são coisas esporádicas. Essas histórias de tema em arte é uma coisa muito complicada. Quando existe uma delimitação temática, isso limita a criação. Trabalhos de temática aberta tendem a me parecer mais interessantes. Qual o tema das artes? Não precisa ter tema.
EC – Mesmo o futebol sendo um elemento recorrente no cotidiano brasileiro, a arte brasileira não olha para ele como olha para o carnaval?
Gonçalves – Não concordo. Essa é uma visão estereotipada. Acho que tanto a arte como o futebol, assim como o carnaval, possuem um elemento que os une, que é a idéia de jogo. E essa idéia de jogo é inspiradora. O que a alta cultura faz é pegar a essência disso. Do contrário seria uma redução. A arte e a filosofia sempre olharam para a festa, e o jogo como objeto.
Fabio Zimbres – Dá até para se dizer que o futebol no Brasil domina o cotidiano em uma dimensão absurda, que até os indiferentes não conseguem escapar. Sem falar em ano de Copa do Mundo. Eu acho que outras manifestações, como a arte e a filosofia não dão ao futebol o mesmo peso que ele tem na vida das pessoas. Mas ele aparece eventualmente. Eu citaria, por exemplo, um trabalho acadêmico de design e sistemas de um cara chamado Cláudio Ferlauto, que é daqui e dá aulas na USP. Ele utiliza o futebol para exemplificar a evolução de sistemas. Isso serve para mostrar que o esporte pode servir como ponto de partida para se falar de várias coisas e até como metáfora.
Barreto – Nas aulas de desenho destaco o valor que a diagonal tem para o desenhista comparando-o com o que ela tem para o centroavante.
EC – Mas também não tem essa coisa de querer ver no futebol metáfora para tudo. De transformá-lo em filosofia?
Gonçalves – Pois é, tem esse risco. Alguns comentaristas adoram. Mas outro dia soube de um cara que fez uma pesquisa sobre futebol na música popular brasileira. E é um absurdo o material que existe nesse sentido.
Haesbaert – Tem aquela crônica do Drummond, quando o Brasil perdeu a Copa de 1982. Aquilo é um achado. Só queria registrar.
EC – Qual a relação de vocês com a bola e como vocês exploram os materiais para ver o futebol com o olhar de artista?
Nelson Rosa – Todo artista tem sua pesquisa individual. Para mim o futebol é imagem. Eu faço uma seleção de imagens para desenvolver meu trabalho. Digamos que eu escolha fotos do Ronaldinho, da Xuxa e do ACM a partir de jornais, não que eu goste deles, mas porque os considere expressivos para o resultado do meu trabalho. São os ícones que vou explorar. A idéia é fazer uma espécie de quebra-cabeças com imagens de uma revista Placar antiga. Essas imagens são colocadas dentro de hexágonos em formato de gomos. De longe vai dar a sensação de se ver uma bola.
Barreto – Passo o tempo todo procurando imagens na internet, coisas que me estimulam, mas ainda não fiz nenhum desenho do Teves, quem sabe depois da Copa.
EC – Como foi reunir o pessoal para a coletiva (para o Hugo)?
Hugo Gusmão Rodrigues – Foi fácil. Foi só reunir três colorados e dois corinthianos (risos). Quando recebi o convite da Fundação Ecarta, pensei que no caso do futebol seria mais rico se fosse feita por artistas que têm alguma vivência com o esporte. O Pt, por exemplo, é um cara que vai a campo e os desenhos dele retratam isso. É coisa de quem entende os movimentos.
Barreto – A começar do time (risos).
Haesbaert – Há um lugar onde eu passo que sempre tem uma mulher costurando bolas, e eu a fotografei. Tem também o time de 11 jogadores com uma cabeça só. E depois parti para o jogo de bola propriamente dito. Embarrei uma bola e usei minhas habilidades para marcar a parede (risos). Então, a minha idéia com isso é retratar o cotidiano do meu jeito.
Zimbres – O meu trabalho tem relação com minhas referências de infância com o futebol. Até porque em alguns momentos da minha vida o futebol foi algo bem distante. Tem épocas que eu fico muito ligado e em outras nem ligo a televisão e não quero saber de nada referente ao assunto.
Hugo – O envolvimento dele com futebol depende da fase do Corinthians (brinca).
Fábio – Não tem nada a ver com o Corinthians (responde irônico, fingindo aborrecimento – riso geral). Uma das coisas mais importantes da minha infância é a lembrança da Copa de 70. Foi uma das coisas que vi quando criança e acompanhei inteira. Até hoje me lembro de todos os jogos, dos gols. De ficar esperando o gol contra a Inglaterra e, de repente, saiu. Isso foi uma coisa super forte para mim. Eu jogava futebol de botão. Montava os times com escalação e tudo. Era realmente muito ligado nisso. Então meu trabalho vai partir de desenhos infantis, como os que eu fazia, bolando jogadas até chegar ao gol. A idéia é desenhar uma partida inteira com várias jogadas sobrepostas. Outras crianças desenhavam guerras. Eu desenhava gols e mais gols.
EC – E o teu envolvimento agora como é?
Zimbres – Só voltei a prestar atenção em futebol quando vim para Porto Alegre. Quando estava em São Paulo eu não ligava muito. Mas, quando cheguei aqui e vi a rivalidade Grêmio e Inter, parece que tinha a obrigação de tomar um partido.
Gonçalves – Eu gosto mais de jogar futebol do que assistir ao futebol. Inclusive acho um saco ver jogo de futebol. Joguei bola a vida inteira e adoro o jogo. Meu trabalho com arte tem mais a ver com desenho e fotografia. Então eu resolvi pensar uma idéia que tive um tempo atrás numa direção diferente. Eu acho que futebol tem estratégia comum à de guerra. Então utilizo bolas de futebol com soldadinhos de plástico grudados como se eles estivessem dominando as bolas, como se fossem planetas. Outra idéia é utilizar uma parede como um campo de botão, também como um campo de guerra. Aí estão todas as idéias associadas ao futebol, de dominação, de inimigo, de combate, da disputa em si. Há também um terceiro trabalho baseado em desenho.
Barreto – A Copa de 70 também me marcou muito. Entre outras coisas, foi a única chance da minha infância em que pude torcer para aquele maldito Pelé. Depois de uma reflexão madura cheguei à conclusão que o futebol é o principal responsável por eu estar em cadeira de rodas; se eu jogasse um pouquinho melhor, não inventava de me meter com o rugby (risos). (N.E.: O artista foi jogador da Seleção Brasileira Juvenil de Rugby e após um acidente em jogo perdeu parte dos movimentos.)
EC – Essa idéia do futebol associado com guerra remonta às origens do jogo, quando tribos nômades disputavam jogos com a cabeça dos adversários derrotados.
Gonçalves – Tem isso também. Nem lembrava disso, mas esse dado também é importante.
Haesbaert – Lá em Livramento a gente jogava bola de pé no chão. As goleiras eram de latas, chinelos ou pedras. Antes e depois do colégio sempre tinha jogo. E se jogava muito. Eu e meu irmão íamos a uma vila onde aconteciam campeonatos de várzea.
Nelson – A minha história de futebol é mais urbana. Essa coisa de morar perto da Redenção (Parque Farroupilha, em Porto Alegre) ou então de jogar na calçada, quando morava em Curitiba, não tem essa coisa de várzea. O negócio era atrapalhar os pedestres mesmo. Mas era o espaço que se tinha.
Gonçalves – Eu jogava lá na Restinga com goleirinhas pequenas e era regra tabelar com o meio-fio ou no campinho. Então eu acho que o futebol tem uma coisa democrática.
EC – E as regras dependem do saneamento do local… (risos)
EC – Compara-se muito os craques do presente com os craques do passado. Como funciona isso no universo das artes visuais, quando se força a comparação entre artistas contemporâneos e artistas considerados clássicos?
Hugo – É como comparar o Pelé com o Ronaldinho gaúcho. Quem é o melhor?O futebol no tempo do Pelé é diferente do futebol de agora. No futebol do passado existia mais espaço para jogar, que hoje não existe. O Garrincha não jogaria hoje, por exemplo. Na arte é a mesma coisa.
Gonçalves – Outro dia lia um artigo do Teixeira Coelho e ele citava Nietzsche, que teria dito que é bom, é fácil, no sentido de que é muito fácil reconhecer aquilo que é bom. Não existe como fazer uma analogia com a arte do passado e a contemporânea, assim como não é possível fazer o mesmo com o futebol de antes e o de agora. Então não é o caso do que é melhor ou pior. O Pelé em um jogo no Maracanã em 82, onde sempre que ele pegava a bola no meio de campo se percebia logo que o cara era bom naquilo. Era fácil identificar. Hoje também dá para saber o que é bom. Se pegarmos o Picasso como exemplo, no tempo dele a produção era imensa e havia muita coisa ruim daquele período. No futebol é a mesma coisa, quando o cara pega a bola dá para perceber se ele é do ramo ou não é. O legal da arte é que cada um faz o que está a fim, e se botar o olho e gostar é o que vale. Nesse sentido, a arte é democrática também como é o futebol.
Barreto – Para ser artista não é necessário tanto dom quanto para ser jogador de futebol, é uma mistura bem equilibrada de escolha com dom. Se bem que para chegar à profissional tem que ter muita vontade além do dom.
Nelson – E tem uma coisa na arte, que é de uma escola que surge sempre quebrando aquilo que a outra construiu. No futebol é um pouco diferente: uma geração aprimora de onde a outra parou. Nesse ponto não há analogia.
Haesbaert – Acho que a gente tem que fazer essa analogia, mas do juiz de futebol com o crítico de arte. Até porque existe o crítico bom e o ruim. Vamos fazer a crítica da crítica (risos gerais).
Zimbres – O juiz não tem que trancar o jogo e ficar só disciplinando. Ele tem que fazer o jogo andar. O papel da crítica é o mesmo.
Barreto – Não comento atuação de juiz.
EC – E qual seria a regra da arte.
Hugo – Arte não tem regra. Como é que vai ter juiz? É uma coisa de moda.
Gonçalves – As tendências são ditadas pelos curadores que fazem um recorte. Os trabalhos não valem mais por si só. O artista não tem autonomia. As obras valem por estarem afiliadas a determinado pensamento. Hoje em dia estamos no período mais bunda-mole que existe das artes visuais. Pois todo mundo quer estar dentro. Existe muito pouca crítica ao sistema de arte. Para muita gente é uma questão de afiliação à arte contemporânea de forma acrítica.
EC – E a cartolagem no mundo das artes visuais?
(todos riem, ninguém quer responder)
Gonçalves – A arte sobrevive também em função da comercialização da arte. É uma relação econômica. E isso é normal. Mas hoje existe uma preocupação demasiada com o mercado. É preciso pensar até que ponto a mediação muda o caráter do trabalho.
Zimbres – Hoje até a escolha dos materiais denota valor. Hoje se trabalha com coisas que permanecem. Tem um investimento aí. Então isso tudo pesa para o artista também.
EC – Hoje o nível de indústria, enquanto negócio organizado de artes visuais, é maior do que no passado? A arte é mais mercantil?
Barreto – Para mim, consumidor de arte são aqueles malucos que atacam obras em museus (debocha).
Gonçalves – Vamos falar de Porto Alegre. Para a arte ser mercantil, precisa existir um mercado, e ele não existe aqui. Não é o caso de outras capitais e países.
Hugo – O artista que vive de arte vive principalmente de ilustrações, de dar aula, essas coisas.
EC – Em Porto Alegre se bate um bolão, mas se joga na várzea. Seria isso?
Flávio – É, e tem gente que joga na várzea e pensa que está jogando no Maracanã (risos).
Gonçalves – Mas tem “ronaldinhos” na várzea também.
Haesbaert – O umbigo ainda está muito presente.
Gonçalves – O Carlos Asp, que é um artista que viajou o país inteiro, disse uma coisa: se alguém aqui em Porto Alegre virar um edifício do avesso, sempre vai ter alguém para dizer “acho que já vi isso em algum lugar” (tumulto). Mas, para encerrar, queria dizer uma coisa: o bom do futebol e da arte é que nenhum dos dois serve para nada.