GERAL

Licença para matar

Por César Fraga / Publicado em 29 de abril de 2006

Às vésperas de seus 84 anos, um dos mais reconhecidos militantes da luta pelos Direitos Humanos no Brasil, Hélio Bicudo, esteve no Rio Grande do Sul, a convite do Sinpro/RS, para realizar duas aulas inaugurais, uma em Pelotas e outra em Santa Maria. Ele já foi um dos principais nomes do PT, desfiliou-se em 2005 em decorrência do episódio do mensalão e da não-renovação dos quadros diretivos do partido. Diz que não votará em Lula (votará em branco para presidente), mas acredita que ele se reelegerá. Em setembro, lançará um livro de memórias sobre o período que vai da ditadura militar à rede-mocratização. Bicudo é procurador de Justiça, ex-vice prefeito de São Paulo (no governo de Marta Suplicy) e foi deputado federal por duas vezes. Atualmente, é membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).

EC – Avaliando a partir de uma perspectiva histórica, como estão os Direitos Humanos no Brasil e no mundo?
Hélio Bicudo
– Houve um retrocesso na área dos direitos humanos. No resto do mundo houve o problema do terrorismo. No Brasil houve recuo, mas não por esse motivo. O FHC deu passos importantes para que o Estado realmente participasse dessa luta pelos Direitos Humanos (DH), que ele enfatizava repetindo aquilo que a Constituição dispõe, de que os Direitos Humanos são fundamentos do Estado de direito. A ele se deve o primeiro programa nacional de DH, que foi obtido através de discussões em várias regiões do país, e que teve sua elaboração terminada a partir do momento em que a comissão de DH da Câmara dos Deputados realizou uma conferência nacional sobre o assunto e pôde trazer novas sugestões àquilo que já estava mais ou menos elaborado pelo grupo de trabalho que consolidou esse primeiro programa. Mas também foi no seu governo que ocorreram grandes violações, como os casos de Vigário Geral, Can-delária, Eldorado do Carajás e o Carandiru.

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Foto: César Fraga

Foto: César Fraga

EC – Foram eventos ocorridos durante o próprio governo de FHC.
Bicudo
– Foram no governo do FHC. Mas nós tivemos alguns avanços nesse sentido de acertar alguns pontos inconsti-tucionais. Alguma coisa se fez, embora nem tudo. Nenhum desses casos tiveram soluções amistosas ou chegaram a um termo sequer razoável. A coisa foi feita, mas a maior parte não se fez, do ponto de vista de indenizações, de insatisfação moral. Um ponto importante que ocorreu também no governo do Fernando Henrique foi o fato de que o governo brasileiro reconheceu a jurisdição contenciosa da corte interamericana de DH. Isso foi feito em 1998. Havia uma grande resistência do próprio Itamaraty para o reconhecimento da jurisdição da corte. A partir de determinado momento, o Brasil reconhece a jurisdição da corte e isso não atinge, evidentemente, o governo de FHC, mas foi um passo muito importante porque foi o resultado de uma luta que se desenvolveu nas altas esferas da administração pública, pois o Itamaraty, ligado a uma concepção muito atrasada do que seja soberania nacional, era um obstáculo para que se tivesse esse reconhecimento, que foi feito na gestão do Celso Lafer, do Ministério das Relações Exteriores, um homem aberto, que tem uma vida jurídica ligada aos DH, sempre foi uma pessoa que buscou dentro dos limites das suas competências, das suas atuações, lá em Genebra, e depois no Ministério das Relações Superiores, alargar esses passos para as discussões sobre os DH.

EC – Mas e a blindagem do passado por meio da proibição da abertura de arquivos da ditadura ocorrida no final do governo FHC e mantida por Lula, como que o senhor vê isso? Falta ainda uma satisfação para as famílias dos perseguidos e para a sociedade?
Bicudo
– Eu acho que não houve essa satisfação com as famílias, houve um arremedo. A esperança era muito grande quando o PT assumiu o poder no sentido que se alargassem os horizontes para defesa de implementação dos DH no Brasil, e isso não ocorreu. A Secretaria Especial de DH, embora com status de ministério e com um orçamento até razoavel, não buscou dizer a que veio, e continuaram as violações, as antigas violações. Não mereceu por parte de Secretaria Especial a atenção que deveria merecer, e tivemos violações graves, como por exemplo: sistemas de presídios com saldo de detentos mortos muito grande. Nós tivemos evidências de violência pro-vocada dentro da Fe-bem, no Complexo do Tatuapé. Isso é recente. Tem também o caso dos moradores de rua de São Paulo. Isso sem falar nas favelas do Rio de Janeiro sendo invadidas pelo exército. Isso é absolutamente incompatível com as funções que são determinadas pela Constituição às Forças Armadas.

EC – E parece que ações como essa, e eu gostaria que o senhor retomasse o caso do Castelinho (em São Paulo), em que o Estado recorre a ações que utilizam da tru-culência policial para tentar dar uma satisfação para a sociedade com respeito à falta de segurança, isto é, o Estado tentando mostrar serviço… mas ferindo o direito das pessoas…
Bicudo
– Veja bem. O caso do Castelinho, que ocorreu durante o governo do FHC, em São Paulo, no primeiro mandato de Alckmin, é um caso típico de governo tentando mostrar à população que ela não está desamparada, e que a polícia é capaz de dar segurança. É mais ou menos como aconteceu no episódio Esquadrão da Morte, um momento em que a violência crescia, ou pelo menos era apontada pela imprensa como tendo um crescimento muito grande, e que a atuação do Esquadrão da Morte era exatamente para mostrar que a polícia estava ali, eficiente, matando bandido.

EC – Como foi esse episódio?
Bicudo
– Surgiu a notícia nos jornais de que a polícia emboscara um ônibus conduzindo 12 pessoas que se encaminhavam para assaltar um avião pagador que chegaria em determindo dia – não me lembro exatamente a data – às 8h da manhã no aeroporto de Sorocaba. Foram mortos todos os integrantes desse plano no pedágio do Castelinho (que é uma estrada que liga a Castelo Branco a Sorocaba). A polícia esperou o ônibus passar, bloqueou o ônibus onde estavam essas 12 pessoas e matou todas elas. Isso foi dado como um fato surpreendente da polícia paulista expondo que ela funcionava dentro dos princípios da inteligência investigativa e que com isso ela mostrava absoluta eficiência. Assim, a população podia ficar tranqüila quanto à sua segurança, que vinha sendo abalada por inúmeros seqüestros, por fugas espetaculares das penitenciárias de São Paulo e pelo aumento sensível da criminalidade comum. A polícia mostrava competência nesse episódio. Esse episódio foi elogiado pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, dizendo que realmente tínhamos uma polícia na qual podíamos esperar que a questão da segurança estava sendo realmente resolvida no Estado.

EC – O que o senhor fez?
Bicudo
– Alguns fatos me levaram a questionar: por que aconteceu isso, como aconteceu? E eu comecei a “mexer os pauzinhos”. Eu tinha muito boas relações com o ouvidor de polícia, e eu pedi a ele que conseguisse os exames do corpo de delito das pessoas que foram eliminadas nesse episódio. E ele mandou o exame. Aquilo (as mortes) não havia sido fruto de um encontro entre bandidos e polícia, e sim uma eliminação pura e simples. Pela localização dos tiros pôde se perceber isso: do peito para cima, nos braços – quando as pessoas assumem uma posição de defesa. Então, peguei esses laudos e solicitei a um legista do Rio de Janeiro, que já tinha feito um laudo muito interessante sobre os homicídios, eliminações no Carajás. E ele fez um laudo completo desse episódio e mostrou que eu tinha razão no que eu estava pensando que aquilo não tinha sido fruto de um encontro entre polícia e bandidos, mesmo porque a polícia não teve nenhum soldado morto ou ferido. Eu fiz uma representação ao Procurador-Geral do Estado de São Paulo para que os fatos fossem investigados. Nós tivemos conhecimento de policiais que compunham um grupo que funcionava junto ao gabinete do secretário.

EC – Como eles procederam?
Bicudo
– Esses policiais, com o auxílio de dois juízes, conseguiram fazer que quatro presos, alguns deles condenados a mais de 20 anos de prisão, auxiliassem a polícia numa infiltração com um bando de criminosos para que a polícia pudesse atuar daquela forma. Mais tarde cheguei a ouvi-los pessoalmente no presídio onde eles se encontravam e declararam claramente que nesse episódio do Castelinho haviam estimulado 12 pessoas a cometer um assalto, e que eles forneceram, através da polícia, o armamento, munição e o ônibus para conduzi-los até onde estavam. Eles foram monitorando todo o percurso. A polícia estava esperando essas pessoas, cerca de 100 policiais, e pura e simplesmente fuzilaram as pessoas que queriam fazer o assalto, que na verdade não poderia existir. Eu consegui uma informação do Departamento de Aviação Civil que naquele dia, e há muitos anos, nenhum avião panador aterrissava em Sorocaba. Isso depois foi confirmado por uma carta que o Comandante da PM, que liderou o episódio, mandou para o jornal Folha de S.Paulo, praticamente assumindo a responsabilidade. Então nós fizemos essa representação, apontamos para o Procurador Geral da Justiça para que ações fossem feitas.
Assim, a coisa se dividiu em dois ramos: um ramo, pelo problema do fórum especial, do secretário de segurança e os dois juízes, foi para o Tribunal de Justiça; e o outro foi para a promotora pública, já que o pedágio de Castelinho se situa na Comarca de Itu. Ela começou a fazer as investigações por parte dela, e foi um grande sucesso, porque tudo aquilo que nós estávamos mostrando – ou tentando mostrar – tinha realmente fundamento, inclusive com testemunhas que ela conseguiu ouvir. E ficaram duas coisas separadas então: primeiro que eram 54 membros da polícia militar que ela denunciou. Não sei por que não denunciou o Comandante da PM que confessou a sua participação no episódio, dos dois juízes e do secretário no Tribunal de Justiça.

EC – Qual o desfecho?
Bicudo
– No Tribunal de Justiça, começou-se um inquérito onde eu fui ouvido, mas depois de dois anos a Justiça acabou concluindo pelo arquivamento do episódio por falta de provas. Conseguiu-se o depoimento dos quatro presos, mostrando que realmente tinha sido feito com a participação do secretário da Segurança e dos juízes, (e segundo a Lei de Execuções Penais, o réu não pode sair da prisão sem condições especialíssimas e sem escolta). É absolutamente ilegal. Esse caso vai se encaminhando para desfecho similar ao do Carandiru, porque até agora não se interrogou nenhum dos réus, pois eles são policiais militares, e quando chega a intimação a Polícia Militar informa: “Não, eles não estão mais nessa unidade, estão em outra”, e assim vai indo, vão jogando com o tempo.

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Foto: César Fraga

Foto: César Fraga

EC – Quanto ao caso do Carandiru, que é um caso que afronta os Direitos Humanos e que teve uma repercussão internacional, como o senhor avalia os desdobramentos ao suposto “inocentamen-to” dos responsáveis?
Bicudo
– No caso do Carandi-ru, a polícia não planejou a morte dos 111 detentos, e que já se diz que foram além de 111. Já no caso Castelinho, a polícia planejou e consumou a eliminação. Então eu acho que, embora tenham sido mais de uma centena de mortos no presídio, o caso Castelinho é muito mais grave, porque houve um planejamento para matar. Um planejamento demorado: até unir as pessoas, até entregar armamento, munição, ônibus para se deslocarem, ou seja, houve um planejamento para essa finalidade. Enquanto no Carandiru a polícia foi chamada e mandada para o presídio para sufocar uma suposta rebelião, que na verdade era uma briga de facções diferentes dos presos. Na verdade, o Carandiru, que aconteceu em 1993, só agora está se julgando e definitivamente o mandante da chacina, 13 anos depois.

EC – Para a população ficou a sensação de impunidade? Explique melhor.
Bicudo
– Com relação a esse caso, o do Carandiru, o Cel. Ubiratan, comandante da operação, foi julgado pelo Tribunal do Júri, porque, no momento em que estava sendo julgado pelo Tribunal, ele não estava exercendo o mandato de deputado, que lhe daria foro privilegiado. Ele foi deputado antes e depois desse julgamento. Então foi julgado pelo júri e foi condenado a mais de 630 anos de cadeia em virtude de vários homicídios, tentativas de homicídios, ferimentos graves, etc. Ele recorreu ao tribunal, e nesse meio tempo foi eleito deputado estadual. Então o Tribunal de Justiça passou a ser o órgão julgador do recurso, e ele passou a ter foro especial. Ao invés da Justiça comum julgar rapidamente enquanto ele não era deputado, deixou o tempo correr, e ele foi eleito. Depois desse tempo todo, o relator e o revisor, as pessoas que realmente estudam o processo e que deram dois votos absolutamente técnicos, mostraram com isso que o julgamento tinha sido feito sem falha nenhuma, e que o mérito, ou seja, a vontade dos jurados, era a de condernar. Então a condenação devia ser mantida. Entretanto, o desembargador Walter Guilherme tomou a palavra depois de mais de duas horas de leitura dos votos do relator e do revisor, e, com meia dúzia de palavras, conduziu o restante dos desembar-gadores para a eliminação do processo e absolvição do réu, baseado no disposto artigo 23 do Código Penal, que eles não leram por inteiro, porque o artigo diz que “exclui a pena por necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever legal”. Mas, quando nesses três casos, o parágrafo único do artigo 23 diz que se deve considerar o excesso doloso ou culposo. O júri entendeu, portanto, que era legítima a atuação da polícia quando entrou no presídio porque ela vinha para sufocar, supostamente, uma rebelião de presos, mas consideraram que as mortes foram conseqüência de excesso cometido no cumprimento do dever.
O interessante é que o Tribunal Especial, que inocentou o coronel no dia do julgamento, formulou uma ementa que era: “O tribunal anula o julgamento pelo júri porque os quesitos não estavam devidamente formulados e absolve porque, no momento que o tribunal assume o julgamento, por força do foro especial, ele é competente para julgar mérito”, e ele absolve o réu. Isso depois teve uma repercussão muito negativa para o Tribunal, e acabaram se reunindo novamente para reformular a súmula, dizendo que anulavam o processo e mantinham a decisão do júri. Quer dizer, jogaram a responsabilidade de absolvição no júri e não na corte especial. É verdade que essa decisão cabe o recurso para o Superior Tribunal de Justiça.

EC – O Ministério Público fará alguma coisa?
Bicudo
– Eu não posso dizer com absoluta certeza, não sei se o MP vai. Eu acho que ele deve, mas, para evitar qualquer surpresa, nós estamos tentando um contato com a família das vítimas para que possamos ter assistentes da acusação. E com assistentes da acusação nós, na hipótese de omissão do Ministério Público, podemos recorrer ao Superior Tribunal de Justiça. Tudo isso é um jogo, desculpa para ganhar tempo. Ele daqui a pouco chega aos 70 anos. Esse processo, apenas para ser julgado no Tribunal de Justiça, demorou quatro anos, e se for para o Superior Tribunal de Justiça, que está atrasadíssimo nas suas decisões, em quanto tempo? Quantos anos? E então ele vai ganhar esse tempo para ultrapassar os 70 anos e assim consegue a prescrição, saindo livre de todos os processos e condenações.

EC – A decisão da Justiça e do Tribunal, inocentando o Coronel que comandou a ação no Carandiru, de certa forma é uma ‘licença pra matar’?
Bicudo
– Sem dúvida. Eu já escrevi sobre isso: essa decisão abre a porta para a impunidade, e através dela estimula a violência. O policial sabe que não vai ser punido. A repetição do Carandiru é o caso do Casteli-nho. Já existe um modus ope-randi para que as coisas fiquem por isso mesmo. Depois de 13 anos não se tem uma conclusão, e ele não é o único incriminado, tem outros soldados – e muitos dos casos de menor conteúdo letal, como ferimentos leves, estão prescritos. As pronúncias em relação aos demais componentes que cometeram a eliminação no Carandiru ainda estão em trâmite de julgamento de pronúncia. Pelo Tribunal de Justiça isso não irá terminar tão cedo. E agora, com a absolvição decretada pelo Grupo Especial do Tribunal de Justiça, isso pode realmente levar à impunidade todos. Não faz sentido se o maior culpado pela chacina foi absolvido e os outros, que foram comandados por ele, sejam punidos. Então se decretou na prática a impunidade dos autores da chacina no Carandiru, e isso, evidentemente, serve de alimento para que outras violências possam ser cometidas por PMs. Agora, veja bem: essa última decisão foi adotada pelo órgão especial do tribunal de justiça, supostamente pelos juízes mais experientes, que são juízes mais antigos. Isso leva também à questão de como se deve compor esse órgão especial do Tribunal de Justiça.

EC – A Justiça Brasileira, no âmbito atual, não consegue ter uma atuação à altura quando ocorrem fatos desse tipo?
Bicudo
– Eu acho que sim. Embora o Poder Judiciário dos Estados tenham uma certa autonomia, ele não tem toda autonomia porque depende, no seu orçamento, da boa vontade do governo do Estado em questão. Hoje a Polícia Militar é um poder em todos os Estados, e acho que tem mais poder que muitos. O próprio governador do Estado não se atreve a fazer algo que possa melindrar a PM. No caso de São Paulo, o Alckmin aplaudiu essa atuação e chegou mesmo a fazer uma representação contra minha atuação.

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