Nas profundezas da rede
No conto de fadas, a personagem Alice, ao se aproximar da toca de um coelho, foi parar em um mundo fantástico, regido pela lógica do absurdo, onde conviveu com personagens surreais. Se a história de Lewis Carroll fosse transportada do século 19 para os dias de hoje, a fábula poderia estar ambientada na Deep Web ou Internet Profunda, em uma tradução não literal. De difícil acesso e conhecido de poucos, este universo paralelo do mundo digital fica nos porões da internet comum e guarda segredos que assustam e questionam os limites da humanidade.
Enquanto na rede disponível na superfície existe uma limitação dos conteúdos que ferem leis ou regras morais, na profundidade não há qualquer controle. Protegidos pelo anonimato, usuários da Deep Web publicam e têm acesso a conteúdos de pedofilia, assassinatos cruéis, necrofilia, canibalismo, mutilação, rituais de satanismo e prostituição infantil. Páginas de tráfico humano, venda de órgãos e encomenda de mortes também podem ser encontradas com a apresentação semelhante a uma loja virtual.
Para entender o que é a Deep Web, primeiro é preciso conhecer as camadas que dividem a internet. As páginas acessadas por internautas diariamente ficam na Internet de Superfície, onde qualquer site é facilmente encontrado por ferramentas de busca como o Google. Ao digitar, por exemplo, “educação” em um buscador, o usuário encontrará uma lista de sites que falam sobre educação, ranqueados de acordo com sua relevância, considerando dados como o número de vezes em que a página foi acessada anteriormente, o conteúdo exibido e a quantidade de links em outros sites. Quanto maiores forem estes dados, mais relevantes são os resultados da busca.
A Deep Web é tudo aquilo que não é encontrado por esses buscadores. No artigo The deep web: surfacing hidden value (A rede profunda: trazendo à tona valores escondidos), o cientista da web, Michael Bergman, explica o motivo: “Para ser encontrada, a página deve ser estática e ligada a outras páginas. Motores de busca tradicionais não podem “ver” ou recuperar o conteúdo na internet profunda, pois essas páginas não existem até que sejam criadas dinamicamente como o resultado de uma pesquisa específica”. Sem uma data e autor específico, programadores desenvolveram na China o software e Onion Router, apelidado de TOR, para facilitar o acesso a sites bloqueados pelo governo.
Utilizado até hoje e melhorado com a colaboração de outros técnicos ao redor do mundo, o programa garante o anonimato do usuário ao realizar uma espécie de conexão disfarçada. O que era para burlar a ditadura do governo chinês logo virou a porta de acesso para as maiores bizarrices da humanidade. Na internet profunda as páginas não têm, em sua grande maioria, um layout como as da superfície, elas funcionam em diretórios onde são criados fóruns de discussão, abertos ou fechados, tudo para deixar difícil o rastreamento de informações.
Lá, qualquer assunto pode ser encontrado em uma busca na Hidden Wikki, página principal da Deep Web que funciona semelhantemente ao Google. De acordo com a empresa BrightPlanet, as informações armazenadas na Internet Profunda são 400 a 550 vezes maiores do que as disponíveis na rede de superfície. A Internet Profunda tem cerca de 550 bilhões de documentos individuais, em comparação com o 1 bilhão da internet acessível a todos, o que faz com que esses sites recebem mensalmente 50% mais visitas que os sites normais. “Não há como calcular o valor da Deep Web. Se a mercadoria mais cobiçada da era da informação é de fato a informação, então o valor do conteúdo da internet profunda é imensurável”, afirma Bergman. Foi neste espaço que o escritor Renato Alt navegou.
O impensável a um clique de distância
Acessar a Internet Profunda, segundo Alt, não foi fácil. Mas, por curiosidade, ele decidiu arriscar a pedido de um site que divulga a cultura produzida na internet. A função de Alt era achar o que havia de pior naquele espaço, “o que alguém puder imaginar de mais execrável, mais impensável, está relatado, documentado, fotografado e postado lá”, explica. Mas encontrar o que buscava não foi agradável. “Me arrependi de ter me colocado em rota de exposição a muita coisa que vi, mas não de ter entrado na Deep Web”.
Segundo ele, o arrependimento surgiu ao encontrar “um lado perverso do ser humano sendo alardeado, dividido e exaltado por tantos”. Fóruns de discussão exclusivos para canibais, pedófilos e estupradores, com imagens explícitas para ilustrar o relato, lutadores de artes marciais mistas (MMA) que só encerram a luta após a morte de um dos competidores e todo o tipo de pornografia são algumas das coisas que Alt encontrou disponível na Deep Web. “Fiquei muito incomodado com fóruns onde pessoas contavam vantagem sobre molestar crianças e outros de assassinos de aluguel”, explica.
Alt esteve em apenas uma das camadas da Deep Web. Cada nível requer um conhecimento técnico maior para ser acessado. A mais profunda, segundo Alt, é chamada de Mariana’s Web. Publicamente, apenas duas pessoas tiveram acesso a ela até hoje, uma delas foi Julian Assange, criador do WikiLeaks, site que divulga informações secretas de governos e empresas poderosas ao redor do mundo. “Apenas especula-se o que está nelas. Entre muitas teorias, as mais comuns alegam existirem documentos militares, provas da existência de vida extraterrestre, livros banidos e coisas do tipo”, relata Alt. Entrar neste espaço “seria como caminhar em um campo minado”, compara.
Para o escritor, a Internet Profunda é um lugar onde estão os conteúdos que, por algum motivo, devem ficar fora do alcance do usuário comum, “o que não significa, necessariamente, conteúdo ruim”, esclarece. “É importante deixar claro que Deep Web não é sinônimo de conteúdo doentio, este é apenas o que chama mais a atenção. Há livros, pesquisas, filmes raros e uma infinidade de informação”, explica Alt. Para ele a dificuldade de acesso é o que abre espaço para qualquer pensamento ser exposto sem julgamentos.
Liberdade vigiada – A livre expressão na Deep Web não é tão livre quanto parece. O delegado Emerson Wendt, do Gabinete de Inteligência e Assuntos Estratégicos da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, afirma que não é impossível identificar o usuário que comete algum crime neste espaço. “Pode ser mais difícil, sim. Por vezes, teremos de buscar a cooperação internacional, o que é bastante demorado”, esclarece. Wendt explica que ao tomar conhecimento de um conteúdo específico, a polícia passa a investigar a página, “tomamos todas as precauções no sentido de busca de dados e preservação de provas. Se for o caso, há uma atuação encoberta e com autorização judicial”.
Uma das dificuldades das investigações está no próprio funcionamento da Deep Web. Como as páginas são geradas dinamicamente, se o internauta não souber o caminho exato para ter acesso ao que deseja, a existência do conteúdo não será acusada. Segundo o delegado, acessar a Internet Profunda não é crime, porém, a visita repetida a sites com conteúdo ilegal, pode ser. “No caso da pedofilia, o acesso sequencial caracteriza, indiretamente, armazenamento das imagens no navegador, o que caracterizaria crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma.
No Rio Grande do Sul, ainda segundo o delegado, casos de pedofilia, extorsão e crimes contra a honra (difamação e injúria) já foram investigados pela polícia. São poucos os materiais oficiais sobre a Deep Web, o que abre espaço para a fantasia do usuário. É comum a Internet Profunda produzir no internauta dois sentimentos: a curiosidade e a incerteza sobre o que é verdadeiro. Renato Alt conclui seu relato definindo estas impressões. “É evidente que nem tudo ali é real. Mas é impossível dizer o que é e o que não é. Em um lugar onde todos podem fazer o que bem entendem sem dizer quem são, a única coisa que não há é um limite”.