A emissão de gases-estufa na atmosfera provoca um aquecimento global artificial que elevará a temperatura média da Terra em até 5 graus centígrados nos próximos cem anos. O resultado será um reordenamento da vida e das atividades produtivas no planeta, uma nova ordem que não será vivida pelas gerações atuais, na opinião do glaciólogo Jefferson Simões, professor do Departamento de Geografia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas (Nupac) da Ufrgs. “As calotas polares estão derretendo e isso vai modificar o ambiente. Vai sair muito caro para a humanidade, mais caro ainda para os pobres. Mas nada de pânico porque não é nada para amanhã. Claro que é para se preocupar. Se nós continuarmos com esse modelo econômico, não tenho dúvidas de que as conseqüências serão as piores possíveis, inclusive para a economia”, afirma Simões, que é Ph.D. pela Universidade de Cambridge (Inglaterra) e coordenador científico do Programa Antártico Brasileiro (ProAntar).
Extra Classe – Para além da emissão de gases-estufa, do aquecimento global e das alterações climáticas, qual é a grande agenda da comunidade científica?
Jefferson Simões – O aquecimento da Terra deve estar inserido em uma questão muito mais ampla, que são as mudanças ambientais globais. O que se discute hoje em termos de mudanças climáticas é uma questão pequena dentro de uma discussão muito maior sobre a interação do homem com a natureza. Claro que devido a uma série de fatos políticos, e a questão política do ano é a implantação do Protocolo de Kyoto, isso faz a agenda. Mas o que está em discussão são muitos processos, alguns conhecidos do grande público, outros não.
EC – Que processos?
Simões – Quando se fala em mudanças ambientais globais, as mais importantes são a intensificação do efeito estufa, a destruição da camada de ozônio e a redução da biodiversidade. A poluição gera uma série de conseqüências como a intensificação do efeito estufa que leva ao aquecimento global. Devido ao efeito estufa natural, que retém grande parte da radiação que deveria voltar para o espaço imediatamente, a temperatura média do planeta fica ao redor de 15 graus centígrados e subindo. Se não fosse isso, a temperatura deveria oscilar entre 10 e 15 graus centígrados negativos. O efeito estufa natural, que retém a radiação infravermelha refratada pela Terra, é um poderoso filtro formado por gases como o dióxido de carbono e o metano, que têm a propriedade de filtrar a radiação reemitida pela superfície terrestre.
EC – O que altera esse sistema?
Simões – Nos últimos 200 anos, a humanidade jogou na atmosfera uma quantidade muito grande de gases que aumentam a absorção e intensificam o efeito estufa. A principal fonte desses gases é a queima de hidrocarbonetos como carvão e óleos, mas existem outros gases artificiais que também contribuem. No caso do metano, a origem é diferente, vem de arrozais, de terrenos alagados e dos rebanhos de gado. Até onde a atmosfera pode sustentar esses gases, principalmente o gás carbônico, é uma incógnita. Parte dos gases-estufa é removida pelos oceanos, mas também não se sabe até onde os oceanos vão conseguir absorver. Tendo mais gases, mais energia fica retida. Isso levaria ao aquecimento global artificial. A intensificação do efeito estufa ocasionou um aquecimento global ao redor de 0,7 graus centígrados nos últimos 140 anos, e isso é muito.
EC – Quais são as conseqüências da elevação da temperatura?
Simões – Existe uma postura catastrofista com relação a esse processo ocorrido no passado no planeta, pois mudanças no clima sempre ocorreram. O que preocupa a comunidade científica é a velocidade com que esse processo está ocorrendo. O exemplo clássico que eu dou, como trabalho com a história do clima, é que entre a última idade do gelo e o presente, a temperatura média da Terra aumentou 7 graus centígrados. Isso levou mais de 12 mil anos para ocorrer. Em 140 anos, nós já aumentamos um décimo disso. O que preocupa é que, na velocidade com que estão ocorrendo essas mudanças do clima, os organismos não têm tempo suficiente para se adaptar e se desenvolver. Quando os processos são mais lentos, nós mesmos nos adaptamos. Uma coisa é absorver as mudanças internamente, tanto do ponto de vista biológico, no caso dos animais, quanto sob o aspecto cultural e tecnológico, no caso da humanidade. Quanto mais rápido o processo de mudança, mais agressivo ele é.
EC – Quais seriam esses sinais?
Simões – Sempre é bom lembrar quando se fala nas conseqüências, que existem impactos positivos no aquecimento global. E vem a outra pergunta: quem perde e quem ganha com o aumento da temperatura média do planeta nos próximos 100 anos, de quem sabe 4 ou 5 graus centígrados em média? O que ocorre é uma visão de catástrofe e de algo iminente e que vai afetar todo o planeta de maneira homogênea. Isso não existe. O que os modelos matemáticos indicam não é uma mudança geral. Vamos ter um período de mudança que já é preocupante porque parece que nós estamos começando a ter períodos de rápida oscilação em algumas variáveis do clima como temperatura, vento, condições de precipitação. Parece que o sistema está tentando se adaptar a um novo estado, e entre as várias previsões seria a intensificação da velocidade dos ventos, aumento dos fenômenos incomuns como ciclones mais intensos, quem sabe fenômenos como o Catarina. Não está claro se isso é o sinal, mas por outro lado o sistema indica que coisas como essas vão ocorrer com mais freqüência e intensidade.
EC – A incidência de ciclones e furacões em novas regiões seriam exemplos de efeitos do aquecimento global?
Simões – El niño é um processo cíclico que está mapeado há mais de meio século. O modelo indica que teremos basicamente intensificação dos ventos e ciclones mais fortes, levando até a casos absurdos como o Catarina. O que está claro é que uma maior variabilidade do clima implica períodos extremos como secas mais intensas e enchentes ao invés de uma distribuição mais homogênea das condições climáticas ao longo do ano.
EC – Quais seriam as conse-qüências dessa elevação prevista de 4 graus centígrados na temperatura média da Terra nos próximos cem anos?
Simões – Quem não mora no Norte do Canadá ou da Escan-dinávia não tem com o que se preocupar. O aquecimento em alguns graus centígrados vai ampliar a área para a agricultura e poupar a energia gasta com aquecimento. A biodiversidade nesses casos não sofre tanto. Agora, à beira de um deserto como o Saara, onde as condições climáticas estão no limite, ou no caso do Cerrado, os organismos terão que se adaptar rápido ou aumentará a área afetada pela seca no Nordeste em mais alguns milhares de quilômetros quadrados. Regiões tradicionalmente úmidas começam a se tornar mais secas, alterando toda a teia ambiental. Está comprovado que o centro da Antártida está aumentando, enquanto a periferia está derretendo. É de se prever o derretimento de cumes congelados das montanhas rochosas no extremo norte da Antártida e extremo sul da Groenlândia. O Monte Kiliman-jaro, que tem uma das menores geleiras do mundo e já estava no limite, com esse aquecimento deve sumir em 15 anos.
EC – Ao mesmo tempo em que o senhor condena uma postura catastrofista de setores da imprensa na cobertura sobre aquecimento global, confirma que os sinais de catástrofes seriam evidentes…
Simões – A conclusão é a seguinte: as calotas estão derretendo, isso vai modificar o ambiente, vai sair muito caro para a humanidade, mais caro ainda para os pobres. Mas sem pânico porque não é nada para amanhã. Claro que é para se preocupar. Se nós continuarmos com esse modelo econômico, não tenho dúvidas de que as conseqüências serão as piores possíveis, inclusive para a economia. O Rio Grande do Sul foi o único Estado do país em que a economia não cresceu no primeiro semestre por causa da seca. Imagina se isso começa a ocorrer com freqüência… Esse aquecimento de 4 graus centígrados vai expandir o limite geográfico do mosquito da dengue. Estamos mexendo numa cumbuca que não se sabe o que tem dentro. O aquecimento global também é apontado como o responsável por aparecimento de vírus como o hantavírus e o ebola. Quem acredita que as coisas irão ocorrer como no filme O dia depois de amanhã, em que o mundo desaba em 24 horas, vai se decepcionar. As mudanças são sutis e as mortes não irão aparecer no dia-a-dia.
EC – O senhor acha que o modelo econômico vigente pode acelerar essas situações extremas?
Simões – A grande questão que se coloca hoje em termos de mudanças ambientais é uma questão diferente para o ser humano, principalmente para um país emergente como o Brasil; envolve uma questão ética mais profunda: nós temos o direito de estragar o planeta para as gerações futuras? A economia não atende a grande massa, que se comporta mais ou menos assim: “Eu quero sobreviver, danem-se os meus filhos e netos”. Muitas atividades especulativas que predam o meio ambiente, como estamos vendo no desmata-mento da A-mazônia, não trazem retorno para ninguém, a não ser pa-ra grupos bastante restritos. A grande questão é saber quais os limites desse planeta, ou no caso do Brasil, em termos de meio ambiente. Até onde nós podemos agredir, inclusive sem o ambiente nos atacar de volta. E até onde nós temos esse direito? Não é na semana que vem que irão ocorrer esses processos, mas certamente nos próximos 20 ou 30 anos. E aí vêm as conseqüências. Elas serão boas ou ruins. Aquecimento global representa derretimento de parte do gelo e aumento do nível do mar.
EC – O impacto de uma elevação do nível do mar seria maior para os países pobres ou em desenvolvimento?
Simões – Aumentar o nível do mar para um país como a Holanda é uma coisa, para um país como Bangladesh é outra. Na Holanda não vai ter problema esse aumento de 60 centímetros no nível do mar, porque a previsão nos próximos 100 anos é, na pior das hipóteses, de 85 centímetros, no máximo um metro, não mais do que isso. Aumentar os diques da Holanda, se eles têm dinheiro suficiente, mesmo para Nova Iorque, vai custar alguns trilhões de dólares, como para o Brasil vai custar alguns trilhões de dólares de defesa costeira, de defesa da estrutura portuária, pois um metro é muito, destrói uma estrutura portuária. Os ingleses, que vivem em uma ilha, já fizeram estudos e sabem muito bem o impacto que poderá causar essa elevação do nível do mar. Como eu brinco sempre, eu não compro casa na beira da praia. Para quem tem recursos, esse processo terá um impacto muito menor que para um país miserável como Bangladesh, que já tem a costa muito plana, muito baixa. Mesmo hoje, qualquer furacão mata milhares de pessoas. No fundo, a gente vê que a questão do aquecimento global tem a ambiental, mas é uma questão política em termos de até onde nós podemos ir e o que queremos.
EC – Se essas são as previsões dos modelos científicos, por que não se tomam medidas preventivas, co-mo o cumprimento dos acordos para redução da emissão de gases-estufa?
Simões – O Protocolo de Kyoto tenta estabilizar a produção de gases-estufa a 5% menos do que a produção da década de 90. Isso para alguns países é mais fácil, e a meta só vale para países desenvolvidos. O Brasil não tem nada a ver com isso, porque o parque industrial brasileiro é pequeno, apesar de contribuir com 3% dos gases-estufa. A maioria é devido à mudança do solo e das queimadas, um meio burro de contribuir para o efeito estufa porque nem riqueza a gente gera.
EC – Por que os EUA não assinam?
Simões – Basicamente pelo mo-do de vida norte-americano. Isso aí é uma coisa tão evidente, basta ver desde o consumo deles, a produção de 36% dos gases-estufa. Um consumo desvairado, sem controle nenhum. Vai dos motivos da dieta, dos hábitos do dia-a-dia, do consumo de energia. É uma sociedade que não tem limites, que se dedica a consumir mais e mais e mais, mais que a classe média brasileira; chega a ser irracional. Tem que ver questões mais profundas, psicológicas, da estrutura da sociedade norte-americana. Isso traz questões sociais, culturais e íntimas mais profundas. Para mudar isso, não é um canetaço que resolve. Ainda mais um processo político muito complexo como é o norte-americano. Nesse momento, com um governo conservador, o país não quer nem ouvir falar em Protocolo de Kyoto, porque a redução dos gases-estufa implica mudanças no modo de consumo.
EC – Como cientista, como acha que isso vai se resolver?
Simões – Eu sou pessimista. Vai se resolver quando uma catástrofe natural ocorrer e verem que realmente as evidências, ou melhor, não serão nem mais evidências, quando as mudanças globais estiverem nos afetando de maneira muito danosa. Medidas drásticas terão que ser tomadas.
EC – Por que, no caso da camada de ozônio, foi mais fácil tomar uma medida na aprovação do veto ao uso de clorofluorcarbono?
Simões – Porque é um negócio muito mais agressivo. Nós estávamos perdendo e ainda estamos com pouco ozônio na parte alta da atmosfera, a estratosfera, entre 15 a 50 quilômetros. Teve anos em que a camada de ozônio era um terço da natural, e isso assustou. Também foi identificado claramente qual é a causa disso, o clorofluorcarbono e outros gases. Então foi muito mais fácil dizer tanto para o político quanto para a sociedade: “Olha, se vocês não fizerem isso agora, em 20 anos nós não vamos ter mais a camada de ozônio, e vai ser o caos”. O buraco na camada de ozônio foi confirmado em 1985/1986. Foi tão rápido, tão assustador que, em 1990, já estava sendo negociado o Protocolo de Montreal. Desde então, a legislação internacional é cada vez mais restrita. Agora já estamos passando para uma segunda fase que é negociar a restrição dos gases que substituíram o CFC e que também são perniciosos para a camada de ozônio da atmosfera. Achamos que agora a situação deve se estabilizar, mas nós só vamos ver realmente uma resposta daqui a 40 anos, 50 anos, porque esse é o tempo médio que esses gases levam para serem retirados da atmosfera.
EC – Então faltam evidências mais contundentes sobre o aquecimento global?
Simões – Exatamente. Não se tem evidências tão contundentes. Além de os processos serem muito mais lentos, o que não quer dizer que eles não estão ocorrendo, acontece que, para o planeta Terra, uma geração ou duas de humanos não é nada. Geralmente a gente pensa em 25 anos. Nossa memória é seletiva nesse sentido. Há cada vez mais uma variabilidade no clima, e isso estava previsto. Hoje está verão e vai entrar uma frente fria. É exatamente esse tipo de variação que prevê o quadro do Painel Intergovernamental (IPCC) da ONU sobre mudanças climáticas: o aumento da variabilidade devido ao aquecimento global. Não precisa ser cientista para sentir o que está acontecendo. A variabilidade natural do clima ocorre, sempre ocorreu e sempre vai ocorrer. O que é artificial, o que é induzido pelo homem, é aí que entra a pesquisa de vanguarda. Não se sabe muita coisa. Mas se olharmos qualquer gráfico dos últimos mil anos fica claro: o que ocorreu num período recente de 200 anos é artificial. O aumento do gás carbônico em 36% e de metano em 130% em 200 anos é artificial, não tem como ter sido natural.
EC – O senhor afirma que os hábitos de consumo precisam ser revistos numa perspectiva de mi-nimizar os efeitos das agressões ao meio ambiente. De que forma o consumismo desenfreado atinge o meio ambiente?
Simões – Simples, os recursos naturais são limitados. Sem um desenvolvimento auto-sustentável, vivemos um consumismo imediatista, sem planejamento. É claro que esse tipo de atitude leva à escassez dos recursos. Não podemos aumentar nosso consumo infinitamente. Pior do que isso é a nossa produção de energia para manter este consumo e estilo de vida, que é extremamente poluente. Veja o caso de Porto Alegre, que tem quase um carro para cada dois habitantes – extremamente poluente. Você pode examinar o impacto de várias maneiras, quer pelo consumo de energia, o desperdício, o tratamento do lixo que ainda é visto como algo para ser jogado para baixo do tapete. Mas é claro, isto é uma crítica à sociedade de consumo, que no caso da brasileira é extremamente pequena, ao redor de 20% da população. E o resto? Bom, este é o grande problema. Como trazer a maioria da população dos povos em desenvolvimento para um nível de consumo onde as necessidades básicas sejam atendidas sem destruir o ambiente? Eu acredito na atuação local, onde podemos gerir nossa casa, o município. Ou seja, pense globalmente, aja localmente, seja econômico no consumo, não compre por impulso, prefira produtos ambientalmente corretos, use transporte urbano e lembre-se: deste mundo nada se leva.
EC – Quais foram os objetivos da expedição brasileiro-chilena feita ao núcleo antártico em janeiro deste ano, da qual o senhor participou?
Simões – Foi uma expedição de chilenos e brasileiros de exploração geográfica, que envolve o pio-neirismo, e também de investigação do meio ambiente que é feita em equipe, há 14 anos, para o ProAntar. Foi a primeira vez que um brasileiro entrou na Antártica. Nunca tinha sido feita uma expedição brasileira para o interior do continente. É bom lembrar que velejadores e o próprio Programa Antártico Brasileiro vão na costa. Só para se ter uma idéia de escala, da estação Comandante Ferraz até o pólo Sul geográfico são 3,6 mil quilômetros. Isso é muito grande. Nós estamos tratando de um continente de 14 milhões de quilômetros quadrados, mais do que 99% coberto de gelo, um ambiente agressivo, desértico, frio, coberto por gelo com uma espessura média de 2 mil metros e ventos extremamente fortes. Foi a primeira vez que teve essa expedição de travessia na Antártida com 2,3 mil quilômetros ida e volta.
EC – Foi também um trabalho de investigação do clima…
Simões – Do ponto de vista de investigação científica utilizamos uma das melhores técnicas de reconstrução do clima do planeta, a paleoclimatologia, através de estudo das amostras de neve que com o passar do tempo se transformam no gelo acumulado tanto na Antártida quanto no Ártico (Groenlândia). Consiste em recolher amostras de neve de 10 mil, 50 mil e 100 mil anos e levar para laboratório para uma série de análises químico-físicas que, indiretamente, apontam as variações do clima e se houve erupções vulcânicas e a sua intensidade, se houve mudanças na circulação atmosférica, como é que o homem poluiu, detecta as explosões termonucleares que ocorreram na atmosfera. É uma técnica muito rica, que no jargão científico é chamada “testemunho de sondagem de gelo”, para conhecer como o clima da Antártida variou ao longo dos últimos 300 anos e como o continente interagiu principalmente com a América Latina, África e Austrália. O que nos interessa são os últimos 300 anos a 500 anos, durante e após a Revolução Industrial, estudar qual foi o impacto do homem na composição química da Terra e nas mudanças climáticas em termos globais. Em três ou quatro anos deveremos ter as primeiras conclusões dessas análises.