Soldada, carteira, sargenta, goleira são palavras que não existem na língua portuguesa para designar cargo ou função. Se no mercado de trabalho as mulheres, mesmo desempenhando funções iguais, ganham até 30% menos que os homens (IBGE 2005), na língua, elas parecem ficar invisíveis quando o que está em jogo é denominar alguns cargos e funções no gênero feminino do substantivo. Machismo? Regras gramaticais? Opção dos falantes? Estas são algumas das questões levantadas e também razões apontadas para tal predominância masculina. O tema divide as opiniões de estudiosos e das próprias mulheres, inclusive das que atuam no exército e em empresas federais, por exemplo. Uns argumentam que deve ser mantida a forma neutra, visto que do ponto de vista da Lingüística, ciência que estuda a linguagem, só o gênero feminino é marcado, portanto o que se denomina masculino geralmente é comum-de-dois. Outros avaliam que é uma questão de tempo para a sociedade aderir cada vez mais à distinção de gênero.
O gramático Paulo Flávio Ledur é dos que defendem que prevalecerá a opção pelo feminino, visto que a função da linguagem é produzir significados que dão vida às relações. “No momento em que a mulher ingressa no mercado de trabalho onde ela não estava presente antes, a linguagem precisa acompanhar. Qual é o problema de chamar de sargenta. Feio? É que nós não estamos acostumados”, avalia. O fato de mulheres exercerem funções que eram ocupadas exclusivamente por homens é apontado por Ledur como uma das razões para predominar a forma tradicional. “A linguagem reflete a resistência, os tabus da sociedade”, explica o gramático, acrescentando que, além disso, há todo um conceito de fragilidade ligada ao feminino e que a demora faz parte do processo natural da linguagem de se acomodar à realidade social. Porém, ele ressalta que a não-aceitação é de ambos os lados. “A própria mulher, às vezes, não assume”, frisa.
A questão do gênero feminino não ser usado para designar determinados cargos não está relacionado com o machismo, segundo a pós-doutara em sociolingüística e professora da Unisinos, Ana Maria Zilles. “Seria precipitado afirmar que é machismo, porque o inverso poderia ser verdadeiro. Falaríamos de feminismo?”, questiona. Segundo ela, caso essas novas posições femininas se consolidem, receberão designações se os falantes sentirem necessidade de fazer distinção. “Acho que é mais um assunto de atitudes de valores sociais do que gênero gramatical”, enfatiza. A escritora gaúcha Claudia Tajes também não liga esses fatos a nenhum tipo de preconceito. Ela acha que é mais uma questão de estilo e estética. “Seria muito feio chamar uma mulher de ‘caba’, assim como me parece feio falar ‘presidenta’, palavra que existe na nossa língua”, diz.
No entanto, na prática, o que se verifica é que se muitos são os tabus para designar algumas ocupações no feminino, o mesmo não acontece quando a situação é inversa. Ninguém questiona, por exemplo, que o uso correto é professor, bibliotecário, cabeleireiro, faxineiro, empregado doméstico, secretário, profissões que também por muitos anos foram do domínio feminino. Para o gra-mático e especialista em Redação Técnico-Administrativa, Adalberto Kaspary, tal fato deve-se à predominância do domínio masculino. “O homem comandava a civilização, esta é uma característica de toda cultura ocidental”, avalia. No entanto, ele ressalta que muitos preconceitos relacionados às mulheres já estão ultrapassados, principalmente no judiciário, executivo e legislativo, realidade que ele vem acompanhando nos últimos 25 anos. Nas funções públicas, a denominação de gênero mais do que uma adequação à entrada da mulher nesse mercado foi garantida legalmente. Desde 1956, a Lei º 2.749 institui que nesses espaços quando se tratar de gêneros variáveis deve adequar-se ao sexo, ou seja, masculino ou feminino. Em 1976, Adalberto Kaspary resolveu incluir a lei na gramática Português para Profissionais (Editora Edita, 244 págs.), para orientar as pessoas sobre as normas designativas das funções públicas.
A língua pertence a quem fala
O ponto de consenso entre as mais variadas visões é que a língua pertence aos falantes e pelo que parece, sem se preocupar com as regras ditadas pela gramática, eles estão optando pelo feminino. Áurea Ramos Soares, carteiro por profissão, raramente escuta alguém falar a sua função no masculino. Sempre que as pessoas na rua querem chamá-la ou quando ligam para os correios usam expressão “a carteira”. “Isso acontece o tempo todo e nas mais diversas classes, independente das pessoas serem mais cultas ou não. Às vezes, eu é que digo que não existe a palavra no feminino, mas não adianta, só me chamam de carteira mesmo”, relata. Áurea Ramos revela não se incomodar com o termo masculino; encarou com naturalidade, mas confessa que é pouco utilizado no dia-a-dia. Mesmo entre os colegas de trabalho, o tratamento é pelo nome próprio e quando, por exemplo, repassam recado de algum cliente, o que prevalece é a opção de quem fala.
Segundo a sargento feminino Angela Denise Beschorner Gonsalves, do 17º batalhão da Brigada Militar, as pessoas nem sequer têm dúvidas ao chamá-la de sargenta. “Mesmo aqui dentro da Brigada, principalmente, os mais antigos sempre me chamaram de sargenta”, conta. Já ela prefere sargento feminino e muitas vezes explica para as pessoas que o correto é usar no masculino, já que não existe feminino. Gozando de prestígio junto aos superiores, acredita que o melhor é ser designada da mesma forma que os colegas de trabalho. Durante a entrevista, ela pára e pronuncia várias vezes a palavra sargenta. “Até que não achei muito estranho, a gente é que não usa, mas capitã acho tranqüilo”, diz.
A preferência de Angela é a mesma da soldado feminino Marieli Vanessa Hermes. Porém, o desejo dessas mulheres e dos falantes caminham por lados opostos. “De soldado ninguém me chama na rua. As pessoas sempre ficam na dúvida. É soldada? Perguntam. Quando eu explico a forma correta, imediatamente optam por bri-gadiana.” A busca por espaços iguais é um dos pontos levantados por Vanessa para preferir a forma convencional. Ela acredita que utilizar uma denominação igual a dos homens contribui para a equivalência entre homens e mulheres e para o reconhecimento da população. Ela conta que diariamente o fato de ser mulher é encarado com preconceito. “Tem gente que não aceita as minhas ordens da mesma forma quando é abordada por um homem”, conta.
Dicionários politicamente corretos
Contrariando a teoria de que a sonoridade estranha ou um significado um tanto quanto esquisito cause resistência ao uso de determinadas palavras, algumas expressões venceram as barreiras do som e da estranheza e já foram dicionarizadas, como presidenta, mestra, hóspeda. Talvez, como pondera Adalberto Kaspary, influência do politicamente correto. Ele lembra que o então presidente José Sarney foi um dos primeiros homens públicos a referir-se aos brasileiros e às brasileiras, estabelecendo uma prática de incluir nos discursos as designações femininas. Para Kaspary, palavras como presidente, amante, estudante são algumas das que podem ser vistas como agenéricas, neutras, como define a Lingüística, mas acha que marcar distinção faz parte do processo de mudança. “É natural. Para mudar, às vezes, é necessário radicalizar”, pondera. Já Ledur analisa o fato como um reflexo da presença da mulher nos mais diversos espaços da sociedade. “A posição da mulher na sociedade é outra. A linguagem acompanha, é um processo natural. Se o processo de formação da língua portuguesa iniciasse hoje, ela seguramente seria diferente”, finaliza Ledur.