O Uruguai em busca do tempo perdido
Para os brasileiros, em especial para os gaúchos, o Uruguai está geralmente associado à falsa imagem das praias de Punta Del Leste, aos cassinos, aos free shop da fronteira, ao seu sistema bancário, que rendeu o apelido de “Suíça” das américas. Porém, a verdadeira face de um país é a que está estampada no rosto do seu povo. O Uruguai é pequeno: tem apenas 687 mil quilômetros quadrados. A população é de 3,5 milhões de habitantes, algo como a Região Metropolitana de Porto Alegre. Um terço desta população ultrapassou a linha da pobreza. Foi neste país em dificuldade que a esquerda chegou pela primeira vez ao poder. O presidente é Tabaré Vasquez. Esta vitória também altera a face política da América do Sul ao configurar um bloco progressista somado aos governos brasileiro e venezuelano. O presidente Lula, do Brasil, Hugo Chavez, da Venezuela, e Nestor Kirchner, da Argentina, estiveram na posse. E já se fala abertamente em unir forças para negociar com os organismos financeiros internacionais. Nomes históricos da esquerda uruguaia ascenderam com Vasquez. No Ministério da Defesa, assume Azucena Berruti, advogada que defendeu presos políticos durante a ditadura. No Ministério da Agricultura assume José “Pepe” Mujica, ex-líder dos tupamaros, símbolo de toda a resistência. “As dificuldades não nos farão baixar os braços”, afirmou Mujica no ato de posse. Porque a fibra uruguaia transformou a resistência em esperança.
“E ‘la gente’ agüenta, agüenta, agüenta”, exclama Irio Santana, 69 anos, enquanto pastoreia pouco mais de 100 cabeças de gado ao longo da Ruta 8, nas imediações do povoado de Vergara, a quase 300 quilômetros de Montevidéu, capital do Uruguai. Aposentado, pequeno proprietário de terra, ele espera melhores dias. “Votei na Frente Ampla e espero que as coisas mudem”, afirma. E desfia histórias de pequenas tragédias cotidianas. O roubo de ovelhas por jovens famintos. O nome de Elena Quintero, desaparecida durante a ditadura e de quem nunca mais se soube notícia. Fala do amigo de infância Hermes Toledo, o professor que perdeu o emprego e hoje é deputado do departamento pela Frente Ampla. E conclui que quando há trabalho tudo melhora. “Quando tem emprego, cessam os roubos.” E essa fé no trabalho e na persistência alimenta um sentimento. “Esta gente que chegou ao governo trabalhou muito pra isso. Por isso tenho uma grande esperança que as coisas melhorem.”
Pela primeira vez em quase dois séculos de história, um governo de esquerda é eleito para dirigir o país: a coalizão Encontro Progressista – Frente Ampla – Nova Maioria (EP-FA-NM) ganha as eleições no primeiro turno, com 50,45% dos votos no dia 31 de outubro de 2004 e consegue fazer bancadas majoritárias no congresso e no senado. Esta vitória também reconfigura o mapa político da América do Sul, reforçando um bloco pro-gressista somado aos governos do Brasil e da Venezuela. O presidente Lula, do Brasil, Hugo Chavez, da Venezuela, e Nestor Kirchner, da Argentina, estiveram na posse. E já se fala abertamente em unir forças para negociar com os organismos financeiros internacionais. O Uruguai vai reforçar essa posição. Porque renasce do cansaço, das perdas, dos exílios. Calcula-se que há três milhões de uruguaios fora do país. O Uruguai está mais pobre. E tem contas a acertar com o passado, com a memória e com o futuro. Por isso a catarse coletiva.
Na madrugada de 1º de março, Montevidéu não dormiu. Foguetório no céu, bandeiraço nas ruas, carreatas, cantos de voz embargada sacudiram a Avenida 18 de Julho, no coração da cidade. Nessa mesma avenida, ao longo do dia, formou-se um corredor humano e, em meio a ele, o presidente Tabaré Vasquez e o vice Rodolfo Nim Novoa desfilaram em carro aberto até o Palácio Estévez, na Praça Independência. Nas ruas, gente protagonizando sinais de novos tempos. Como a poeta e escritora Adriana Camazzola, 48 anos, moradora de Montevidéu. “Pela primeira vez militei no Partido Socialista. Quero me comprometer, trabalhar pela cultura”, diz ela.
O compromisso de muita gente construiu esta vitória. Um longo trabalho ao longo de três décadas, que resiste a uma ditadura militar feroz e ressurge primeiro na capital do país, onde há 15 anos se sucedem governos da Frente Ampla. A raiz desta vitória está no trabalho de base que também se fez, pacientemente, no interior. O médico Miguel Roses Acu-ña, 50 anos, morador do bairro Maria Celina, na periferia de Treinta y Três, fala da conversa diária com vizinhos, da compreensão da necessidade de mudar o país aguçada por alguns episódios, como a grande crise de 2002, com a quebra de bancos e o desespero geral da população. Foi uma eqüação de perdas que explicitou a face do governo de Jorge Battle, do Partido Colorado. “Eles sempre preferiram dar dinheiro aos bancos do que dar ao povo para comer.”
A lógica agora mudou no Uruguai – O governo que sai deixa as marcas de um desastre. Por isso mesmo, a primeira medida do novo governo foi a criação de um Plano de Emergência, para atender a população mais pobre. “Há gente que perdeu demasiado e não pode ficar esperando. Porque assistir quem padece de desamparo social, que é mais grave que a pobreza material, não é um ato de caridade, é um dever da sociedade. Porque os pobres não são objeto de caridade, são sujeitos de direito.” Assim falou o presidente Tabaré Vasquez em seu discurso de posse a uma multidão de aproximadamente 500 mil pessoas que ocupava as ruas que cercam o Palácio Legislativo.
Um discurso emocionado que lembrou alguns princípios de José Artigas, o libertador uruguaio. “Minha autoridade emana de vocês e termina diante de vossa presença soberana”. Reafirmou também a reparação em outras feridas: os desaparecidos durante a ditadura. “Esses cidadãos desaparecidos transcendem a seus familiares, são cidadãos de toda a sociedade uruguaia e esta sociedade em seu conjunto tem que saber o que aconteceu com eles.”
Porque esta ferida aberta está também permeada por uma dura realidade de um país combalido. Vasquez mapeou com números o legado que recebe do governo anterior: uma dívida externa que nos últimos seis anos saltou de US$ 8,5 bilhões para US$ 13,5 bilhões; a pobreza que atinge 57% das crianças, 43% dos adolescentes e, em três anos, os pobres do Uruguai saltaram de 18% para 31%. Além disso, em 1999, o Produto Interno Bruto Uruguaio era de US$ 21 bilhões. Em 2004, chegou quase à metade: US$ 13 bilhões.
Há quase tudo por fazer no Uruguai. O modelo tradicional da economia, ligado à criação de gado e exportação da carne, reflorestamento e atrelado ao mercado financeiro perdeu fôlego. Todos esperam por isso. À beira da Ruta 8, três amigos – Sebastian, Diego e Horácio – exibiam a bandeira da Frente Ampla e pediam carona na beira da estrada. Iam para a festa animados. “Esperamos agora poder trabalhar, porque hoje é impossível”, revela Sebastian. Saíram de casa às sete da manhã. No meio da tarde estavam em Montevidéu. A noite seria longa e festiva na capital do Uruguai que despertou.
Resistência e solidariedade
No bairro Mandubi, em Rivera, Fernanda Lilian Vega Vargas ergueu um comitê da Frente Ampla numa precária peça de madeira. “Foram muitos anos de blancos e colorados e nós só andamos pra trás”, diz ela. Espera agora ter a própria casa, no plano de regularização fundiária do novo governo. Lilian não tem emprego mas trabalha por solidariedade. Ela e outros moradores construíram um salão de madeira onde servem comida às crianças do bairro. Quem traz o alimento é uma advogada que faz um trabalho voluntário e jamais revelou sua opção política. “Ela não quer trocar voto por comida”, conclui Fernanda.
Foi nos bairros que a esquerda cresceu, a partir de regras de convivência solidária e de participação. Uma experiência que Lilian Flores conhece bem. Moradora da região norte, ela integra um dos 18 comitês de bairro da cidade. Participa de campanhas para levar alimentos à periferia. “Temos muitos bolsões de miséria e precisamos criar um estado sadio. Cabeças bem alimentadas pensam bem”, afirma ela, que convive de perto com dramas da pobreza. Lembra o caso de crianças que morreram de fome, dos flagelos, onde o auxílio do governo não passou de promessa. “Eles diziam que havia 100 milhões de dólares para combater a pobreza, mas esse dinheiro nunca apareceu.” Para ela, o governo que sai é criminoso. “Eles são assassinos. Assassinaram a classe média.”
É na militância dessa gente que se forjou a vitória da esquerda. Vladecir e Carlos Fagundes, donos da Confeitaria Metropolitana, em Rivera, militantes do Partido Comunista, lembram de um tempo “politicamente nulo”, de regras militarizadas nas escolas, do autoritarismo da ditadura e da inoperância dos partidos tradicionais que sempre governaram o Uruguai. “Chegamos ao fundo do poço”, diz Carlos. Por isso, qualquer melhoria é sensível. “1% é 100% de nada”, calcula. O Uruguai comemora, na verdade, novas possibilidades. “Eu nunca tinha visto algo assim. As pessoas choravam de alegria na rua”, conta Valéria Gamarra, funcionária do comércio de Durazno. No dia da posse, ela assistiu, pela televisão, ao discurso do presidente Tabaré Vasquez. Sentiu-se recompensada. “Ele voltou a afirmar, como presidente, tudo o que havia dito durante a campanha.”
Novas palavras, velhas feridas
Há novos termos no vocabulário político do Uruguai. Um deles é reforma agrária. Palavra que assusta a classe dominante. “Me preocupo porque há grupos nesse governo que são contra a propriedade privada”, diz um fazendeiro de Tacua-rembó, que não quer se identificar. Ricardo, 55 anos, desempregado, ex-militante do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros, quer um governo sem trégua nas conciliações. “Não podemos ter inimigos históricos do nosso lado”. Ele também não revela o sobrenome. O medo sobrevive. Os fantasmas também.
Ficaram abertas feridas visíveis. De pé sobre uma carroça com a mulher e os filhos, pano vermelho na mão, Rodolfo Heber de Oliveira, 56 anos, ex-soldado do exército, espera reparação. “Me expulsaram do exército porque me filiei ao Partido Comunista e nunca me indenizaram. Nunca consegui trabalho por não ter atestado de boa conduta”, conta. Heber sobrevive catando papel pelas ruas de Montevidéu.
A ditadura marcou este povo. Luiz Carlos Lopez, 54 anos, marceneiro de Rivera, lembra bem os dias que viveu. A prisão que durou um ano e meio nos quartéis e em Punta Carretas, em Montevidéu. Quarenta e sete dias de olhos vendados. Os algozes que não via, mas depois reconhecia pela voz – a falta de visão aguça os ouvidos. A solidariedade do soldado que, depois dos interrogatórios, lhe levava ao banheiro e oferecia água. A humilhação da revista na filha de três anos. E a redenção da noite da vitória em Montevidéu. “Eu chorava como uma criança”, lembra Luiz Carlos.
Nessas noites redentoras – de vitória, de alegria, de recomeço –, gerações acertam contas consigo mesmas. Na rua em festa, Orlando Moreira, 84 anos, mecânico industrial aposentado, comemorava ao lado da neta Laura Perdomo, francesa de nascimento, de Toulouse. Orlando relatou um fato com orgulho. “A Universidade da República deu o título de Doutor Honoris Causa a José D’Elia, um sindicalista, e o presidente Tabaré estava lá para abraçá-lo.” A Universidade também volta à cena no Uruguai: vai ajudar na aplicação do Plano de Emergência Social.
“O Uruguai é o maior exportador de seres humanos”, constata Ricardo Meghdessian, 47 anos, dono do restaurante Anticuário, em Porto Alegre. Ele veio ao Brasil com a esposa Ana e os dois filhos há 10 anos. Eles integram o contingente de auto-exilados, mas em outubro voltou a Montevidéu para votar na Frente Ampla. Deixou o Uruguai por falta de oportunidades. Um dia, pretende voltar. Ele alimenta esperanças de que seu país volte a lhe oferecer oportunidades e que lhe permita o reencontro. Porque é este o movimento do Uruguai e sua gente. Uma nação que começa a ensaiar esse reencontro. Nas ruas, nos bairros nos cafés, nas livrarias, onde espoucam publicações sobre a vitória da esquerda, biografias de Tabaré Vasquez e o mais recente livro de Mario Benedetti, com o sugestivo título: Memoria y Esperanza – un mensaje a los jóvenes. O Uruguai marcha contra o tempo perdido para se reconhecer.