Até o final de junho, o governo vai encaminhar ao Congresso Nacional o anteprojeto da reforma universitária. Os principais objetivos são ampliar o acesso das classes médias e pobres à educação superior, garantir o refinanciamento das universidades públicas e estabelecer um marco regulatório para todo o sistema universitário do país. A proposta coloca em lados opostos o MEC, com apoio da maior parte das instituições da sociedade civil, e o setor privado de ensino, capitaneado pelo Fórum Nacional pela Livre Iniciativa na Educação. Afinal, quem é contra a reforma universitária e por quê?
Em debate há dois anos, a reforma universitária causa polêmica às vésperas de ser enviada ao Parlamento – pressionado por representantes das universidades particulares, o governo prorrogou o prazo para receber sugestões ao anteprojeto até o final de março. “Queremos que, após as contribuições da sociedade, ele seja entregue aos parlamentares com a força de uma proposta consensual ou, pelo menos, apoiada por ampla maioria”, afirma o ministro da Educação Tarso Genro, em entrevista ao Extra Classe.
A reforma universitária tem o apoio de entidades como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secun-daristas (Ubes), Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino (Andifes), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Academia Brasileira de Ciências e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outras. “As críticas só parecem majoritárias porque a mídia é contra a proposta e acolhe predominantemente artigos e entrevistas contrários ao anteprojeto”, destaca o ministro.
Até os mais ferrenhos opo-sitores ao anteprojeto admitem que a discussão é democrática: “Não sou petista e não votei em Lula, mas reconheço que o governo nunca esteve tão aberto e disposto a discutir a questão como agora”, diz o secretário executivo da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) José Walter Pereira dos Santos. A entidade reúne 48 universidades com fins lucrativos, comunitárias e filantrópicas, abrangendo 1/3 dos universitários do país.
Para o diretor do Sinpro/RS e membro da executiva nacional da Contee Amarildo Cen-ci, a reforma é necessária, ainda que possa ser aperfeiçoada. Entre os avanços, cita o estabelecimento de um marco regulatório, a exigência de qualidade nos serviços prestados e a fixação de critérios rígidos para a abertura de novos cursos e faculdades.
Vale lembrar que, de 2002 a 2004, foram criados em média 4,5 novos cursos por dia. Com a proliferação desenfreada de novas instituições particulares nos anos 90, o percentual de universitários matriculados no setor privado pulou de 59 para 70%. “O crescimento desarticulado com um compromisso de desenvolvimento social não incorporou a parcela da população historicamente excluída. Na verdade, o que ocorre é uma disputa pela clientela das classes A, B e C”, afirma Cenci.
Romantismo revolucionário e metritocraicia
Há pelo menos três focos de resistência à reforma da educação superior. O primeiro é o das lideranças da extrema esquerda, para quem o anteprojeto do MEC é pura e simplesmente uma encomenda do Banco Mundial (BIRD) e Fundo Monetário Internacional (FMI). “Há um grande descontentamento com a traição de Lula”, declara o presidente nacional do PSTU José Maria de Almeida. Para Tarso, embora legítima, a posição reflete um “romantismo revolucionário”, que rechaça de antemão qualquer projeto que parta do governo. “A extrema esquerda ficou sem argumentos, uma vez que não há como apontar onde está o dedo do FMI no anteprojeto.”
O segundo foco de oposição está encravado em áreas acadêmicas que defendem o princípio da meritocracia tanto no acesso à educação superior como nos critérios de escolha dos dirigentes universitários. Um dos alvos da crítica é a política de cotas, que reserva 50% das vagas nas instituições estatais para alunos egressos das escolas públicas do ensino médio. Nesse universo de estudantes, os negros e os índios seriam contemplados com os respectivos percentuais populacionais, conforme o Censo do IBGE em cada região.
Para a pró-reitora de graduação da Universidade de São Paulo (USP) Sonia Penin, a política de cotas é assistencialista e compromete a qualidade da formação educacional. O ministro da Educação contrapõe que as cotas são necessárias num país onde pobreza e negritude andam de mãos dadas. “Além disso, têm durabilidade limitada (dez anos) e não dissolvem o mérito, uma vez que há a exigência de nota mínima no vestibular.”
O anteprojeto obriga que ao menos um dirigente universitário do setor privado, em nível de pró-reitor ou equivalente, seja escolhido por eleição direta com voto paritário e secreto de todos os membros da comunidade acadêmica. “Quando um pai decide em qual escola matricular o filho, não pergunta à cozinheira ou ao motorista qual é a melhor opção. Na universidade, que representa a sociedade do saber, deve prevalecer a meritocracia. Quem sabe mais tem que mandar mais”, dispara o representante da Anup.
Para o ministro, os críticos confundem elite intelectual, filosófica, científica e cultural com elite econômica. “A universidade é um espaço de elite, sim, mas precisa ter a participação de todas as classes sociais, e não só das classes média e superior, como acontece hoje.” Já a Contee quer ir mais longe: sugere a eleição direta de dois pró-reitores ou, na hipótese de se manter apenas um, que este seja o pró-reitor acadêmico.
Mantenedoras rejeitam projeto “soviético e estatizante”
Com maior poder de fogo na mídia, a principal voz contra a reforma universitária é a das instituições privadas, entrincheiradas no Fórum Nacional pela Livre Iniciativa na Educação, que reuniu, no início de fevereiro, em Brasília, representantes de 24 entidades. Sem meias palavras, eles firmaram um documento no qual qualificam o anteprojeto de “intervencionista, inoportuno, inadequado tecnicamente, eivado de inconstitu-cionalidades e ilegalidades e preconceituoso em relação à iniciativa privada”. Alguns diretores de universidades particulares classificaram a proposta governista de “soviética e estatizante”.
Eles entendem que, ao exigir que as universidades particulares cumpram uma função social, o anteprojeto submete as instituições a linhas de ensino e pesquisa determinadas pelo governo. Também garantem que não há na Constituição artigo que os obrigue a se adequar a um projeto de nação, o que é negado pelo ministro da Educação: “O item I do artigo 209 da Carta Constitucional determina que as universidades cumpram as normas da educação nacional. No item II, está escrito que estão sujeitas à autorização e à avaliação do poder público.”
Guerra de preços degrada condições de ensino
Mais radical é a oposição à formação de um Conselho Comunitário Social nas instituições universitárias, de caráter consultivo, com a participação de entidades da socie-dade civil. Conforme o anteprojeto, teria a função de estabelecer laços de interação com os grupos sociais, sem ferir a autonomia das universidades. Nele, os dirigentes das mantenedoras teriam assento em apenas 20% das cadeiras. “É uma intervenção que permite a grupos como o MST ditar o que a instituição vai fazer”, reclama o presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Gabriel Mario Ro-drigues.
Para o secretário executivo da Anup, “não é concebível que pessoas estranhas determinem os rumos de uma empresa particular com fins lucrativos”. Também o presidente da Associação Brasileira das Universidades Comunitárias (Abruc) e reitor da Universidade de Sorocaba, em SP, Aldo Vannucchi faz coro: “Dar a entidades como CUT, UNE e MST livre acesso ao campus é totalmente inconstitucional.”
É bem verdade que, no caso das comunitárias, os conselhos já existem. “Para nós, é chover no molhado. Mas o governo não pode adentrar em pormenores da formação desses órgãos, sem ferir a autonomia universitária”, diz o reitor da Universidade Católica de Pelotas e presidente do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung) Alencar de Mello Proença. Ele sugere que a criação dos conselhos seja apenas uma “recomendação” do anteprojeto.
Para Tarso, o julgamento do setor privado padece de um “equívoco na raiz”, que é o tratar a educação como bem meramente mercantil, e não como bem público. O ministro lembra que a concorrência e a guerra de preços ameaçam degradar as condições de ensino, como já ocorre em alguns estados, como Rio de Janeiro. “A reforma pretende estabelecer um marco re-gulatório absolutamente necessário para que as instituições privadas trabalhem com visão estratégica. Da maneira como está, elas vão se entredevorar.”
Anteprojeto institui plano de carreira
Um dos itens do anteprojeto é a exigência de plano de carreira para docentes e técnicos administrativos nas universidades. Além disso, a proposta do MEC estabelece a contratação através de editais públicos com ampla divulgação. Para o diretor do Sinpro/RS Amarildo Cenci, as medidas garantem maior transparência na relação dos professores com as instituições. “Entretanto, a lei precisa exigir a homologação dos planos de carreira junto ao Ministério do Trabalho. Além disso, eles devem ser estendidos a todas as instituições de ensino, e não apenas às universidades”, afirma Cenci. Outra questão a ser aperfeiçoada é o prazo de cinco anos para a implementação dos planos de carreira. Conforme Cenci, o ideal é que o período seja reduzido para três anos.
O anteprojeto prevê ainda pelo menos 1/3 do corpo docente com regime integral ou dedicação exclusiva nas universidades. No mínimo 50% dos professores deverão ter mestrado e doutorado. O Sinpro/RS defende que as exigências sejam igualmente estendidas para os Centros Universitários e que, no caso das faculdades, seja fixado o patamar mínimo de 1/5 dos docentes com mestrado e doutorado e com regime integral.
Os trabalhadores querem também a retirada do artigo 33 do anteprojeto, que abre a possibilidade de os estados passarem a ter a responsabilidade de autorizar e supervisionar centros universitários e faculdades, mediante convênio com o MEC. Por fim, sugerem que conste no corpo da lei o impedimento de concomitância de cargos na mantenedora e na mantida. “A não-concomitância garante maior autonomia aos órgãos superiores das instituições frente às mantenedoras”, conclui o diretor do Sinpro/RS. No último dia 25 de fevereiro, o presidente da República recebeu em audiência diversas entidades, entre elas o Sinpro/RS, Abruc, MST, Contee, UNE, sindicatos e reitores para tratar da reforma. No encontro, Lula garantiu que o projeto da Reforma Universitária será resultado da participação da sociedade como um todo. “A educação superior não pode ficar como está e precisa de uma reforma”, afirmou o presidente, enfático.